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De transmissão de jogos a liquidação antecipada, Amazon devora o que vê pela frente

Para professor da USP, com essas jogadas, a Amazon busca atrair mais assinantes para todo o universo da companhia - Sundry Photography/Getty Images
Para professor da USP, com essas jogadas, a Amazon busca atrair mais assinantes para todo o universo da companhia Imagem: Sundry Photography/Getty Images

Da RFI

16/06/2021 09h33Atualizada em 16/06/2021 09h33

Depois de se consolidar no mercado mundial de vendas pela internet e se lançar no serviço de streaming, o novo pulo do gato da plataforma Amazon é o cobiçado negócio dos direitos de transmissão de jogos. Por 259 milhões de euros por temporada, a gigante americana acaba de abocanhar 80% das partidas da primeira e da segunda divisões do Campeonato Francês de futebol, até 2024.

Isso ocorre logo depois de a companhia realizar parte da difusão de outra competição apreciada mundo afora, o torneio de tênis de Roland Garros. Irritado com decisão, o Canal+ — emissora paga que tradicionalmente exibia os jogos —, se retirou da concorrência.

Esse tipo de investida teve início nos Estados Unidos, em 2017, com partidas de futebol americano, e agora se espalha pela Europa: timidamente no campeonato inglês, desde 2019, antes de se expandir para o alemão e, na Itália, com os jogos da Liga dos Campeões.

O economista e professor da USP Gilson Schwartz, especialista em novas tecnologias, nota que as empreitadas representam um passo a mais rumo ao desaparecimento das emissoras tradicionais - historicamente, as transmissões de jogos eram uma das joias mais preciosas dos canais de TV.

"Essa mudança estrutural na tecnologia, o seu impacto sobre a prática da recepção, o modelo de negócios e a própria infraestrutura tecnológica não condenou definitivamente a televisão, mas colocou essa plataforma numa crise muito grande. A Amazon investiu alguns bilhões de dólares em cabos de fibra ótica submarinos que a permitem se colocar em uma posição quase monopolista para garantir transmissões ao vivo, em tempo real, de espetáculos e partidas como as de futebol", explica.

Mercado brasileiro

No Brasil, a mudança começa a chegar. O contrato atual da Globo e da Warnermedia para a transmissão do Brasileirão vai até 2024 — uma transmissão que vale entre R$ 1,5 e R$ 2 bilhões. Mas a emissora brasileira acaba de fechar um acordo com a Prime Video para a retransmissão de jogos do Campeonato Brasileiro, Série B, Copa do Brasil e campeonatos estaduais, já em 2022.

"Devemos ter, sim, um acesso um pouco maior dessas empresas de streaming a partir do ano que vem, com a Amazon e um processo mais forte dos canais Disney, que no Brasil é basicamente a ESPN", comenta Cesar Grafietti, analista de finanças esportivas. "A Globo tem um risco de perder algum mercado, mas desde que o processo de negociação seja um pouco diferente do que é feito no Brasil hoje. O modelo não é centralizado: cada clube negocia o seu pacote individualmente."

Grafietti observa que a crise gerada pela pandemia e o aumento da concorrência baixaram os valores dos contratos, que estavam superestimados nos últimos anos.

"Quando entram novas empresas de streaming, elas entram pagando menos, porque a capacidade delas de monetizar esses direitos é mais baixa. O único valor que o usuário paga é a mensalidade, que também serve para ver qualquer outro programa do canal", constata. "Elas são importantes nessa construção, mas ainda têm um poder de fogo menor do que se imagina. Na Inglaterra, por exemplo, hoje eles compram só 20 partidas da Premier League", pondera.

O professor da USP sublinha ainda que, com essas jogadas, a Amazon busca atrair mais assinantes para a sua plataforma multimídia, mas também para todo o universo da companhia.

"As pessoas talvez não se deem conta, mas o maior ícone em termos de seguidores na esfera das mídias sociais, os chamados influencers, é um sujeito chamado Cristiano Ronaldo, com nada mais, nada menos do que 517 milhões de seguidores. Um superstar do futebol, e não um cantor ou uma personalidade política relevante, é a pessoa mais seguida tanto do Instagram, quanto do Facebook", ressalta Gilson Schwartz.

"E tem mais: Lionel Messi tem 298 milhões de seguidores e Neymar, 283 milhões. O próprio mercado de futebol, de forma geral, tem um tamanho e um crescimento absurdos: o faturamento global com futebol mais do que dobrou nos últimos 10 anos. Só o futebol europeu chegou à marca de 28,9 bilhões de euros", destaca.

"Guerra" com comerciantes

Enquanto isso, a empresa não perde tempo (literalmente) nas suas atividades "tradicionais". Ainda na França, a Amazon anunciou que vai adiantar em uma semana o início oficial das liquidações de verão, causando a fúria dos comerciantes. Reunidos em um coletivo de mais de 500 mil estabelecimentos, eles denunciam "uma declaração de guerra" e pedem ao governo francês que bloqueie o plano do grupo americano, em nome da igualdade concorrencial entre "todas as formas de comércio".

A rusga ocorre num momento delicado em que o setor começa lentamente a se recuperar dos efeitos da pandemia de coronavírus e se esforça para vender toneladas de estoques acumulados ao longo dos meses de fechamento das lojas. Gilson Swhartz observa que, não só na Europa como nos Estados Unidos, a tendência é por mais regulação da atuação das plataformas digitais, que até então escaparam de impostos e outros mecanismos aos quais o comércio tradicional é submetido.

"Há, sim, um movimento de regulação tanto da Amazon, quanto de outros grandes grupos de tecnologia, que de fato concentram a capacidade de orientar o comportamento das pessoas, suplantando o direito público, os Estados nacionais", afirma.

A partir de julho, entra em vigor um acordo europeu que passará a impor o pagamento de 20% de impostos sobre bens fabricados fora do bloco e comercializados pela internet, até então isentos de tributação.