Do nariz ao rabo

Sangue de porco, pena de galinha e orelha de boi viram farinha e pincel; restos rendem R$ 8 bi a empresas

Viviane Taguchi Colaboração para o UOL, de São Paulo jess311/iStock

O Brasil é um dos maiores produtores de proteína animal do mundo, com um rebanho de 213 milhões de bovinos, 40,6 milhões de suínos e cerca de 1,6 bilhão de aves comerciais. Mas nem só de carnes vive o setor frigorífico.

Nas indústrias do setor, a reciclagem animal é um lucrativo e sustentável negócio que, em 2020, movimentou R$ 8,3 bilhões, de acordo com a Associação Brasileira de Reciclagem Animal (Abra) com a transformação de 13,5 milhões de toneladas de resíduos. E a expectativa é que, neste ano, o setor supere os resultados, com a abertura de novos mercados externos.

Ossos, vísceras, couro, penas, casco, chifres, gorduras e sangue, um conjunto que compõe, em média, 30% do peso dos animais, são transformados por indústrias especializadas em farinha, gorduras, gelatina e hemoderivados (derivados de sangue).

Esses materiais servirão de matérias-primas para segmentos que produzem itens da rotina da população, mas que poucos se dão conta: ração para pets e animais de criação, produtos de limpeza, cosméticos, biodiesel, energia e medicamentos.

A reciclagem animal transforma 100% dos resíduos gerados pela cadeia da pecuária bovina, avicultura, suinocultura e piscicultura. "É um setor que não tem controle da quantidade de matéria-prima, pois depende do abate de animais pela indústria frigorífica, mas tudo o que é gerado, é transformado", declarou o presidente da Abra, Decio Coutinho.

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Restos viram ração, produto de beleza e combustível

O segmento de reciclagem animal aproveita tudo o que é descartado em frigoríficos e açougues. Do abate de bovinos, 38% são resíduos, sem contar o couro; dos suínos, 20%; das aves, 28% e dos peixes, 45%.

Os materiais são transformados principalmente em dois produtos, farinha proteica e gorduras, que são matérias-primas para a indústria de comida de pets (13,4%), rações para animais de produção (55,5%), saboaria (13,7%), biocombustíveis (13%), entre outros.

O processo funciona assim: os resíduos são coletados nos frigoríficos e em açougues até 24 horas depois do abate dos animais e transportados em caminhões vedados até as recicladoras.

De lá, seguem para a área de recebimento, onde são triturados e, posteriormente, aquecidos para eliminar contaminações. Água e gordura são separadas da matéria seca e cada item segue para setores diferentes.

As partes sólidas são prensadas, moídas e transformadas em farinhas, embaladas e direcionadas às indústrias de rações, enquanto a gordura é decantada e processada, armazenada em tanques para, finalmente, seguir o rumo das usinas de biocombustíveis ou indústrias do ramo de limpeza, beleza e farmácia.

Cascos e chifres moídos são enviados a indústrias químicas. Já o couro vai para fábricas de revestimentos ou calçados.

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Farinha proteica é usada como ração para a criação de suínos, aves, peixes e crustáceos

Produtos reciclados são usados de volta na pecuária

De acordo com a Abra, as 13,5 milhões de toneladas de resíduos gerados pela indústria frigorífica em 2020 geraram 5,7 milhões de toneladas de farinha proteica e gorduras.

Mais da metade desse volume voltou para a cadeia produtiva da pecuária, em forma de rações, para animais de criação (para suínos, aves, peixes e crustáceos, exceto ruminantes) e o setor de biocombustíveis, com a produção de biodiesel, que é misturado ao diesel.

"É um dos setores mais sustentáveis da cadeia produtiva, que retira da natureza toneladas de resíduos", disse Coutinho. "O que não volta para a fazenda vira biodiesel, que é utilizado na frota que leva os produtos até a fazenda."

Coutinho afirmou que, mesmo com a pandemia, em 2020 a movimentação no segmento se manteve estável, e em 2021, o comportamento do mercado tende a se repetir, com um faturamento perto de R$ 9 bilhões.

"Houve um considerável aumento no consumo de carnes de aves e suínos, a manutenção do consumo de pescados e uma queda no consumo de carne bovina", disse. "No entanto, a demanda elevada dos países asiáticos impulsionou o abate e a geração da matéria-prima para a reciclagem animal."

A alta dos custos de produção da soja e do milho também fez com que a demanda por farinhas proteicas se mantivesse alta no mercado. "A farinha proteica é uma alternativa para o produtor rural reduzir o custo de produção."

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Decio Coutinho, presidente da Abra

Vietnã é o maior importador de reciclados animais do Brasil

A demanda por produtos reciclados de origem animal também é um mercado em expansão não só internamente, mas também para outros países. Em 2020, as exportações do mercado somaram US$ 115 milhões, segundo Decio Coutinho, e só não foram maiores porque a pandemia impôs a suspensão das feiras de negócios programadas.

Segundo ele, isso freou as negociações com Rússia, Indonésia, Coreia do Sul, Filipinas, Tailândia, Peru e México. "Mas os negócios estão sendo retomados aos poucos e acreditamos que, até o final deste ano, conseguiremos a abertura de novos mercados."

O que pode ajudar é a tecnologia. "Assim como os frigoríficos estão realizando auditorias virtuais para habilitar novas plantas de exportação para a Ásia, vamos utilizar esta tecnologia para ampliar a participação brasileira nos mercados asiáticos", afirmou.

Para ampliar os mercados, a Abra firmou, com a Apex-Brasil, um convênio chamado Brazilian Renderers, para promover o setor no exterior. Coutinho retornou da Rússia no último fim de semana, após uma feira de negócios, "com muitas prospecções de negócios".

Hoje, o maior importador de derivados animais reciclados do Brasil é o Vietnã, seguido de Chile, Colômbia, Estados Unidos e África do Sul.

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Gerente de suprimentos do grupo RPF, Alexandra Lukianou

Farinha de sangue de porco

Em Ibiporã (PR), os 19.600 suínos abatidos por dia nas duas unidades do frigorífico RPF Group geram 60 toneladas de matérias-primas para o segmento de reciclagem animal. "Tudo sem cheiro, porque todo o processo é realizado de forma asséptica", explica a gerente de suprimentos do grupo, Alexandra Lukianou.

"A tecnologia dos equipamentos permite que todo o processo de reciclagem seja completamente limpo, sem aquele cheiro de sabão feito no fundo de casa com sebo de boi", comparou. "Isso não existe mais".

Alexandra explica que além dos resíduos cárneos dos cortes (aparas cárneas, ossos, vísceras e gordura), também são aproveitados o sangue dos porcos, que na indústria transformadora, vira farinha derivada de sangue, um produto em pó, resultante do cozimento do sangue do animal. A farinha é usada em ração animal para melhorar o paladar.

"O sangue fresco utilizado é coletado em estabelecimentos fiscalizados por órgãos competentes e o seu processamento tem que ocorrer inteiramente dentro das normas", explicou.

Além de o setor seguir regras rígidas de controle da origem dos resíduos, todo o processo precisa ser rastreado, segundo ela. "As indústrias compradoras exigem a rastreabilidade e o controle rigoroso das matérias-primas, pois são elas que vão compor os produtos finais de diversas marcas", disse.

Cápsula de remédio, extintor de incêndio e xampu

Farinhas e gorduras são o carro chefe, mas segundo a Embrapa, outros 55 segmentos diferentes da indústria demandam derivados reciclados. "Além da rentabilidade, a maior vantagem é a sustentabilidade para o uso dessas matérias-primas", disse o pesquisador Evaristo de Miranda, da Embrapa Territorial.

"A agropecuária é um dos setores que mais contribui com a economia circular e o setor de reaproveitamento de resíduos é importantíssimo para a sustentabilidade da cadeia."

Miranda destaca números curiosos: "Dos cerca de 39 milhões de bovinos abatidos por ano no país, são gerados 150 milhões de cascos, milhares de chifres, toneladas de couro e pelos", afirmou.

"Na reciclagem animal, as penas dos frangos abatidos são aproveitadas e se transformam em farinha de pena, rica em proteínas, os pelos, de dentro da orelha de bovinos, viram pincéis."

Os usos para os derivados da reciclagem animal são tantos que a Embrapa publicou uma cartilha sobre o tema. A pele do bovino, além de seguir para as fábricas de bolsas, calçados e revestimentos (como bancos de carro, avião, sofás) e materiais esportivos, também tem utilidade na indústria farmacêutica.

É dela que se extraem colágeno e gelatina, item das cápsulas de remédios. Das glândulas suprarrenais, tireoide e pâncreas do boi é extraída a insulina. Do intestino, fios cirúrgicos. E os chifres, em pó, vão parar em extintor de incêndio, porcelanas, xampus, colas e fertilizantes.

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