O desejo da carne

Com alta nos custos, bife só fica mais barato em 2022; carne de segunda ganha espaço e se gourmetiza

Viviane Taguchi Colaboração para o UOL, de São Paulo CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil)
Embrapa
Corte de carne

Toda semana é assim: o consumidor vai ao supermercado e se depara com preços cada vez mais altos para a carne bovina. Então, aqui vai um recado: essa alta só deve parar a partir de 2022, analisam especialistas em pecuária de corte e mercado de carne. Existem muitas razões para isso, que envolvem problemas no campo e na cidade.

Nas fazendas de pecuária de corte, os problemas que encarecem a produção de carne esbarram no ciclo 'alto' da pecuária, em que faltam animais prontos para o abate, na seca que atinge todo o país e reduz a qualidade das pastagens disponíveis e na alta dos custos de produção em dólar, necessários para suprir a falta de pastos para o rebanho.

Já na cidade, os problemas são econômicos: o poder de compra da população foi reduzido, o que levou os consumidores a substituírem a carne bovina por outras fontes de proteína mais baratas, como o ovo.

"O consumo já vinha caindo desde o começo da pandemia e o fim do auxílio emergencial fez com que a população realmente ficasse sem possibilidade de comprar carne", diz Guilherme Cunha Malafaia, especialista do Centro de Inteligência da Carne (Cicarne), da Embrapa Campo Grande (MS).

Arquivo pessoal
Zootecnista Eveline Alves, especialista em produção e nutrição de ruminantes pela Unesp

Custo com genética, nutrição e saúde dos bois

Criar boi, hoje em dia, não acontece apenas no velho sistema extensivo, onde os animais ficam só pastando até chegarem ao peso ideal para o abate. Ainda que boa parte do rebanho (85%) seja criada no pasto, há outros fatores que formam o preço.

"Existe um complexo agroindustrial por trás da produção de carne, que inclui o antes, o dentro e o depois da porteira", afirma Malafaia.

Antes mesmo da criação, o pecuarista investe em genética, insumos, nutrição e sanidade dos animais. A tecnologia genética inclui processos de seleção, fertilização in vitro, inseminação artificial em tempo fixo e cruzamentos que geram animais de carne saudável, com maior ou menor teor de gordura e mais eficientes (engordam mais rápido em menos tempo). "Os insumos foram os componentes que mais registraram alta nos últimos 12 meses", declara.

Outro custo é a ração, usada para engordar o gado ou suplementar a dieta quando a pastagem está comprometida, como agora, pela seca.

"Em período de estiagens, as forrageiras (pasto) ficam comprometidas, por isso há a necessidade de suplementar com minerais", diz a zootecnista Eveline Alves, especialista em produção e nutrição de ruminantes pela Unesp, Jaboticabal (SP) e fundadora do portal AgroPriori.

Juliana Sussai/Embrapa
Criação extensiva de gado de corte

Ração também encareceu

Em sistemas de criação a pasto, a suplementação da alimentação é realizada quando a pastagem não consegue suprir todas as necessidades do gado, já em sistemas de confinamento ou semiconfinamento as rações são oferecidas ao rebanho, prioritariamente, em grandes quantidades diárias.

Além de rações preparadas com farelos de grãos, o gado consome alimento volumoso, que pode ser capim, silagem, feno ou palhada, também em grandes quantidades.

Farelo de soja, farelo de milho e minerais, itens básicos da ração destinada a bovinos, vêm registrando fortes altas desde 2020.

De acordo com o Sindirações, neste ano milho e soja já subiram 43% e 54%, respectivamente, e devem subir ainda mais, influenciadas pelo mercado internacional.

O aumento no valor de commodities também afeta os minerais, como o fosfato, que em novembro do ano passado custava US$ 357,10 a tonelada e hoje já sai por US$ 543,40 a tonelada. "Todos os minerais registraram alta, mas principalmente o fosfato, que é um componente essencial", afirma Eveline.

Entre os minerais, os bovinos também necessitam de cálcio, fósforo, cloro, sódio, cobalto, iodo, manganês, cobre, ferro, zinco,manganês, selênio e enxofre.

Juliana Sussai/Embrapa
Criação intensiva de gado

Maior oferta em 2022 e preço menor para consumidor

Na pecuária de corte, setor que utiliza 160 milhões de hectares do território com um rebanho de 213 milhões de cabeças, os sistemas de produção passam pela cria, recria e engorda. Cria compreende a reprodução e o crescimento do bezerro até o desmame, que ocorre entre seis e oito meses.

As fases de recria e engorda vão do desmame ao início da reprodução, para as fêmeas, e engorda, para os machos. "São fases que variam de 24 a 36 meses", declara Malafaia.

Ele explica que essas fases se intercalam com o mercado, o que faz a pecuária ter ciclos de alta e baixa. "Quando a arroba do boi está em baixa, o pecuarista vende as fêmeas para pagar as contas. Isso vai gerar, lá na frente, uma menor oferta de bezerros e consequentemente, preços mais altos", diz.

"É o que estamos presenciando: ainda não há bezerros prontos para o abate, e a valorização [da carne] está atingindo preços recordes."

O ciclo alto deve começar a cair no ano que vem, segundo o Cicarne. "Não é do dia para a noite que o pecuarista consegue ofertar bezerro e, analisando os últimos anos, acreditamos que no primeiro semestre de 2022 o preço da carne possa começar a cair pela maior oferta que vai surgir."

De acordo com o Cicarne, esses ciclos variam entre cinco e seis anos e, para tentar acelerar o ganho de peso dos bezerros, é preciso investir em mais tecnologias e insumos. "Isso encarece ainda mais o custo de produção e o preço, de qualquer jeito será repassado para a indústria e o consumidor, testando seus limites."

Pequenos e médios frigoríficos sofrem com pandemia

Na outra ponta, os frigoríficos também enfrentam problemas. Segundo a Embrapa, médios e pequenos empreendimentos enfrentam dificuldades para continuarem competitivos. Frigoríficos precisaram dar férias coletivas e paralisar suas atividades por um período da pandemia.

A consequência da crise reforçou a concentração da atuação de grandes frigoríficos, que conseguem manter a competitividade com as exportações - e as vendas para fora estão aumentando, principalmente para a Ásia.

Em 2020, de acordo com a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec), o Brasil exportou 2 milhões de toneladas de carnes, uma alta de 9% em relação a 2019, e nos quatro meses deste ano, as vendas externas já somam 560 mil toneladas.

Nas estatísticas da Abiec, China e Hong Kong aparecem como os principais compradores da carne bovina, com 41% e 14,3% do total, respectivamente. Em seguida, vem os Estados Unidos (6%), Chile (5%) e Filipinas (4%).

"As economias asiáticas, sobretudo a China, já estão estabilizadas após a pandemia e o consumo de proteínas nesses países só aumenta", declara o especialista do Cicarne. Do volume total de carne produzida no Brasil, 75% abastece o mercado interno, e os outros 25% é exportado, de acordo com o Ministério da Agricultura (MAPA).

Embrapa
Guilherme Cunha Malafaia, especialista do Centro de Inteligência da Carne (Cicarne)

Carne de segunda substitui cortes nobres

Na contramão do mercado internacional, está o mercado doméstico, que registrou queda acentuada no consumo de carnes. Dados da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) apontaram que, em 2019, o consumo médio per capita de carne pelos brasileiros foi de 30,7 quilos por habitante e em 2020, a média já havia caído 5%, para 29,3 quilos por habitante.

Em 2021, estatísticas preliminares apontam que esse consumo já é de 26 quilos por pessoa.

Para tentar minimizar o problema, houve uma inversão no jeito de vender carne, disse Malafaia. Os cortes dianteiros, antes considerados carnes de segunda e mais consumidos pela população de baixa renda, registraram alta no preço de 17,97% em 2020, de acordo com o IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo), impulsionados pelo auxílio emergencial.

Em 2021, os preços desse grupo também subiram: coxão duro encareceu 52,7%, músculo, 40.9%, acém, 38,34% e costela, 38,4%.

Pedro Kislanov, gerente do IPCA, explica que existem dois fatores para a alta. "O primeiro é o fim do auxílio emergencial, uma renda direcionada para famílias mais pobres para a compra de itens essenciais, como a carne. Segundo, devido à inflação, houve uma migração do consumo de cortes mais caros para os mais baratos", afirma. No índice geral, a carne acumula alta de 2,37% entre janeiro e abril.

Gourmetização da carne de segunda

Apesar da queda no consumo, Guilherme Malafaia acredita que a demanda por carne bovina no mercado interno deve se recuperar nos próximos anos, com o controle da pandemia.

"O setor acredita que, após a superação do desafio sanitário, o consumidor retome a renda, o produtor consiga reduzir o custo de produção e o consumo volte a ser o que era antes", diz. "Porque o setor é elástico: se há aumento na renda do consumidor, há aumento no consumo de carnes."

O consumo gourmet, que teve uma queda brusca com o fechamento de restaurantes, bares e casas especializadas, também se recupera. "É uma tendência mundial e no Brasil não é diferente. Em 2022, o preço da arroba do boi deve cair, o consumidor vai recuperar seu poder de compra e não vai deixar de comer carne, de fazer churrasco."

Para ele, com a introdução dos cortes dianteiros, haverá um "novo mercado". "Do boi, aproveita-se tudo, existem cortes dianteiros extraordinários que vão entrar em definitivo na lista de compra. O consumidor está despertando, criando um novo mercado", afirma.

"Com a crise, o consumidor aprendeu a preparar esses cortes, foi a gourmetização da carne de segunda e o vendedor aprendeu a capturar valor no boi inteiro."

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