Comida no lixo

Brasil desperdiça alimentos no campo, nas rodovias e em supermercados, enquanto milhões passam fome

Viviane Taguchi Colaboração para o UOL, em São Paulo BirgitKorber/Getty Images/iStockphoto

Ao mesmo tempo em que 116 milhões de brasileiros não têm comida suficiente ou passam fome, o Brasil é o décimo país que mais desperdiça alimentos no dia a dia, segundo ranking da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) com 54 países, feito pelo Pnuma (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) e pela organização britânica de resíduos WRAP.

Se evitasse o desperdício, o Brasil poderia reduzir a fome em até 30%, de acordo com a FAO. O percentual, de 2019, contabiliza perdas na produção (do plantio à colheita), na logística de escoamento e conservação, no varejo e no comportamento dos consumidores.

Perdas estão presentes em todas as etapas da produção, e não existem dados oficiais que apontem, com exatidão, o volume de alimentos descartados no país, principalmente quando envolvem os perecíveis, segundo o pesquisador Murillo Freire Junior, da Embrapa Agroindústria de Alimentos.

A FAO afirma que pelo menos um terço de tudo o que é produzido no planeta é desperdiçado. "É um número teórico, mas que serve de referência para que ações sejam pensadas", disse.

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A insegurança alimentar no Brasil

  • 116,8 milhões (55%)

    passaram a conviver com algum grau de insegurança alimentar após a pandemia

  • 54,5 milhões (26%)

    não têm acesso a uma dieta nutritiva adequada

  • 43,4 milhões (21%)

    não têm condições de comprar alimento em quantidades suficientes

  • 19 milhões (9%)

    passam fome

  • *

    Fonte: Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan)

iStock

Prejuízo de R$ 4,5 bi com desperdício de soja e milho

A falta de armazéns, o mau estado de conservação das rodovias e as operações portuárias geraram perdas de 2,9 milhões de toneladas de soja e milho em 2020, um prejuízo de R$ 4,5 bilhões, apontou estudo do Grupo de Pesquisa e Extensão em Logística Agroindustrial (Esalq-LOG), da USP (Universidade de São Paulo).

Esses números representam 1,22% da produção total dos dois grãos no período. Se fossem colocados na lavoura, ocupariam uma área de 696 mil hectares, mais de quatro vezes o tamanho da cidade de São Paulo.

Em 2020, as perdas deixaram de disponibilizar para a sociedade 12 mil toneladas de proteínas, 24 mil toneladas de carboidratos e 6.000 toneladas de gordura.
Thiago Péra, coordenador da Esalq-LOG

    Alfribeiro/iStock

    Armazenagem concentra mais da metade das perdas

    A armazenagem inadequada é a maior responsável pelo desperdício na logística, de acordo com o estudo da USP. Segundo Péra, ela foi responsável por 52,3% da perda de soja e 61,51% da de milho.

    O Brasil tem um déficit de armazenagem de aproximadamente 122 milhões de toneladas por safra, informa a Conab (Companhia Nacional de Abastecimento). Só 14% das fazendas têm armazéns "dentro da porteira". Para efeito de comparação, no Canadá, país campeão nesse quesito, 85% das propriedades têm silos.

    O transporte rodoviário é a segunda principal causa das perdas de milho (12,2%). No caso da soja, foi a perda nos portos (13%).

    Para reduzir o problema, segundo Péra, é necessário investir em práticas de operações de armazenagem, com a criação de protocolos de pesagem e calibração das balanças, e em estradas rurais não pavimentadas, que têm um índice alto de perdas.

    Freire, da Embrapa, diz que há excesso de cargas para compensar o frete. Ele cita como problemas, no pós-colheita, "o armazenamento inadequado, com temperatura e umidade inapropriadas e até a mistura de produtos incompatíveis, embalagens usadas de forma errada, como caixas de madeira, provocam danos mecânicos e contaminam alimentos.

    Se o produtor não conhece as demandas do mercado, ele planta um produto que não tem destino comercial e, no final, vai para o lixo. Há mercados exigentes que não aceitam produtos fora do padrão, como um tomate amassadinho ou uma maçã pequena.

    Murillo Freire Junior, pesquisador da Embrapa Agroindústria de Alimentos

    Recursos naturais, insumos e mão de obra

    Quando o grão é desperdiçado, perdem-se também outras coisas. Na produção de 2,9 mi de toneladas em 2020:

    Fom Conradi/iShoot/Estadão Conteúdo

    O uso de combustível gerou 95 mil toneladas de gás carbônico

    É equivalente à derrubada de 665 mil árvores

    Nacho Doce/Reuters

    Foram consumidas 274 mil toneladas de fertilizantes

    É metade da produção média de fertilizantes em um mês no Brasil

    Pedro França/Agência Senado

    Gastaram-se 4 bilhões de metros cúbicos de água

    É suficiente para abastecer uma cidade de 200 mil habitantes por um dia

    Antonio Neto/Embrapa
    O "copinho" da Embrapa é usado para medir as perdas na lavoura

    'Copinho da Embrapa' reduz perdas

    Nos anos 1980, perdas em uma lavoura de soja geravam prejuízos de até oito sacas (480 quilos) por hectare. Hoje, a média brasileira, segundo pesquisadores da Embrapa Soja, de Londrina (PR), gira em torno de duas sacas (120 quilos) por hectare, mas para eles, o mínimo aceitável é de, no máximo, uma saca (60 quilos) por hectare.

    Na safra 2019/2020, os pesquisadores conseguiram reduzir as perdas e manter a média do Paraná abaixo do recomendado, em 0,67 saca (40 quilos) por hectare, de um jeito bem simples: usando um kit composto por um copinho, um pedaço de barbante, pinos e uma armação de madeira, que "mede" determinada área da lavoura. O sistema custa menos que uma saca da oleaginosa, hoje em cerca de R$ 174 no Paraná.

    Ele recolhe grãos soltos no solo ou em vagens após a passagem da colhedora. O copinho, que é um medidor, indica se na área houve uma perda aceitável ou desperdício.

    O método, segundo Osmar Conte, pesquisador e coordenador do estudo, permite fazer ajustes necessários nas colhedoras, responsáveis por 70% a 90% do desperdício ocorrido no processo de colheita.

    Não evitamos 100% das perdas, mas precisamos trabalhar com o nível tolerado de uma saca por hectare. A otimização do processo de colheita passa pela quantificação das perdas e o entendimento de suas causas.
    Osmar Conte, pesquisador da Embrapa

    Nicolas Wagner/Divulgação

    12% das perdas acontecem nos supermercados

    Pesquisa realizada pela Ufscar (Universidade Federal de São Carlos) revelou que 40% do desperdício acontece na distribuição, após o processamento. O varejo é responsável por 12% das perdas.

    Os supermercados não dizem aos fornecedores o quanto esperam vender ou quanto costumam vender daquele produto. A falta de informação e medição gera problemas enormes. Há dificuldade em prever a demanda e planejar a produção.
    Camila Moraes, pesquisadora da Ufscar

    O setor varejista, que faturou R$ 49,9 bilhões em 2020, teve perdas de R$ 7,6 bilhões com desperdício, número equivalente ao faturamento da sexta maior companhia do setor, o Grupo Mufatto, do Paraná. O dado é de uma pesquisa da Abras (Associação Brasileira dos Supermercados).

    Legumes, frutas e verduras geraram prejuízo de R$ 2 bilhões, segundo o vice-presidente da entidade, Marcio Milan, com destaque para tomate, batata, morango, laranja e cebola.

    Em seguida, veio a seção de rotisseria e comidas prontas, que tiveram perdas de 4,32% sobre o faturamento, e de padaria e confeitaria, com 2,75% sobre o faturamento.

    Segundo a Abras, dos produtos desperdiçados no varejo:

    • 36,9% têm validade vencida
    • 30% ficam impróprios para o consumo
    • 19,8% foram furtados
    • 18,2% tinham avarias
    • 13,5% por erros no inventário
    • 4,8% foram danificados por equipamentos com problemas
    A soma é superior a 100% porque cada produto pode estar em mais de uma categoria.
    shironosov/IStock

    'Mesa farta também gera desperdício'

    Além dos problemas estruturais na distribuição, também existe um fator cultural, afirma Andrea Lago da Silva, pesquisadora que orientou a pesquisa da Ufscar.

    O consumidor aperta o produto e o abandona, amassado. Preferimos comprar alimentos com uma estética perfeita. Crescemos acreditando que precisamos ter uma mesa farta, e isso também gera muito desperdício.
    Andrea Lago da Silva, pesquisadora da Ufscar

    Uma das estratégias traçadas pela Abras para reduzir o desperdício, de acordo com Milan, é estreitar a comunicação com os setores produtivo e de logística e com os 28 milhões de consumidores que frequentam, diariamente, supermercados no país.

    O consumidor está mais consciente sobre o desperdício. Hoje ele também tem opções nas lojas, como as seções de produtos próximos do vencimento, que são mais baratos. Antes nenhum supermercado tinha essa seção, hoje quase todos têm.
    Marcio Milan, vice-presidente da Abras

    As ações de marketing criadas por empresas também têm ajudado, segundo o empresário, a reduzir a rejeição do consumidor.

    "Antigamente, as maçãs pequenas não tinham saída no mercado, agora estão em pacotes voltados para o público infantil. O mesmo vale para laranjas menores, fora do padrão. Antes, eram descartadas, agora são laranjas para fazer suco", afirmou.

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