Brasileiro redescobre o comércio de bairro na pandemia
Henrique Santiago, colaboração para o UOL, em São Paulo
Henrique Santiago, colaboração para o UOL, em São Paulo
Fernando Santana, 27, conta ter pensado que a quarentena em São Paulo causaria o fechamento de seu pequeno negócio, erguido há quatro anos. Mas o dono do Mercadinho Confiança, no Jardim Peri, periferia da zona norte da capital, se surpreendeu com o aumento de vendas.
Com apenas um caixa, o minimercado recebe até seis clientes por vez na loja de 70 metros quadrados. Em média, são 600 clientes por dia. O faturamento cresceu em torno de 20% nos últimos 90 dias, motivando a contratação de um funcionário.
As vendas aumentaram. No início, houve um pico de pessoas desesperadas para estocar mercadorias. Hoje isso passou. Como muitos aqui na região recebem doações, a venda de itens como arroz e feijão se estabilizou. Mas todos os outros itens, de bebidas a bolachas, estão em alta.
Fernando Santana, dono de um minimercado na zona norte de São Paulo
A redescoberta dos mercadinhos de bairro pelos brasileiros foi registrada em uma pesquisa da consultoria Kantar já no início da pandemia. Ela revelou que, no primeiro trimestre de 2020, mais de dois milhões de lares passaram a comprar em pequenos varejos. Além disso, mais de 1,2 milhão incluiu os varejos tradicionais em sua rotina de compras, e mais de 200 mil famílias passaram a frequentar supermercados perto de casa.
Antes da pandemia, as compras se concentravam principalmente em atacarejos, segundo a Kantar. Mas muitos passaram a ter medo de frequentar esses estabelecimentos e se contaminar com o novo coronavírus.
Entre os que passaram a apoiar pequenos comércios locais, os principais motivos foram evitar aglomerações (60,2%) e grandes deslocamentos (59,6%) e procurar preços mais acessíveis (53,5%), de acordo com a pesquisa.
Para concorrer com um hipermercado da região e fidelizar a clientela, Fernando Santana cortou preços. Vende a R$ 14 um pacote de cinco quilos de arroz que chega a custar R$ 18 na concorrência, diz.
Grandes mercados podem ter mais variedade, espaço e comodidade, mas em preço não perco para nenhum deles.
Com o orçamento doméstico menor, são os preços que fazem o autônomo Paulo Pereira, 41, percorrer mais de 20 quilômetros da sua casa, na Vila Prudente, até o Jardim Peri.
"Em uma época como essa, temos que comparar preços", diz Pereira. "Os supermercados de rede têm muito mais potencial para comprar [variedade de] mercadorias, mas o básico — e de qualidade — se encontra com facilidade nos mercadinhos".
Até setembro, Santana pretende abrir outro mercado, na mesma rua, com 340 metros quadrados, quase cinco vezes a loja atual.
Na região do Brás, no centro de São Paulo, o Mercadinho do seu Theo perdeu a clientela que circulava por ali de passagem, devido ao fechamento de comércios. Mas os moradores do entorno garantiram as vendas, conta Joelma Florêncio, 46.
A operadora de caixa do minimercado de sua família, no local há quatro anos, se aproximou de clientes de longa data, em especial idosos, para oferecer o serviço de entrega sem custo.
Quando o freguês se recusa a usar máscara, funcionários entregam produtos do lado de fora. São até 100 clientes por dia -no máximo quatro de cada vez.
O supermercado de rede mais próximo está a quase três quilômetros, mas há vários mercadinhos como o dela no bairro.
Se um mercado grande fecha, o dono tem como se manter. Já o dono de um mercadinho de bairro, não. O nosso sustenta a família do meu pai, a minha e a de dois funcionários.
Joelma Florêncio, dona de um mercadinho no centro de São Paulo
Freguesa frequente do Mercadinho do seu Theo, a funcionária pública Aida Cristina, 59, recebe entregas pelo menos duas vezes por mês, e paga as compras mensalmente, no sexto dia útil. "Acredito que não fazem isso para muita gente", disse. Sua filha faz compras mensais para ela em um supermercado de rede, mas ela diz que sempre é "socorrida" por Joelma quando falta alguma coisa em casa.
Ela diz que não gosta dos hipermercados, mas recorre a eles quando os preços compensam. "Os mercados grandes dão a chance de [encontrar] uma promoção. Além das muitas opções, temos que recorrer aos grandes nesse ponto. Os pequenos não conseguem, mas seus preços são bons", disse.
Eduardo Kobayashi, 36, sentia seu negócio, a quitanda Pé na Roça, ameaçado pela abertura de hortifrutis de redes nas proximidades nos últimos dois anos. Desde o início da quarentena, porém, seu comércio, que chegou ao terceiro ano, tem se fortalecido na vizinhança da Vila Hamburguesa, zona oeste de São Paulo.
Ele atribui isso a um movimento feito por moradores, que usaram o boca a boca para estimular o consumo local. A comunicação deu resultado, afirma, e as vendas cresceram 50% na pandemia. Nas primeiras semanas da pandemia, o tíquete médio chegava a R$ 100. Hoje, seus fregueses gastam até R$ 40 por compra.
O microempresário diz que o engajamento dos clientes foi maior em março e abril. Com o afrouxamento do isolamento social, diz estar preocupado com os supermercados e hortifrutis mais cheios.
É com o serviço de delivery, que atinge 90% das compras, que o comerciante tem sido mais bem-sucedido. Os pedidos são feitos apenas por WhatsApp e telefone, mas Koyabashi diz que vai se cadastrar em aplicativos de entrega em breve, "para continuar vivo".
"Acredito que uma parcela vai continuar comprando do pequeno [no pós-pandemia], mas é muito difícil concorrer com a praticidade do supermercado. Ao contrário do grande, tenho que paparicar o cliente —troco produto, mando brinde. Não é só comprar e vender."
Eduardo Kobayashi, dono de uma quitanda na zona oeste de São Paulo
A relação próxima conquistou a professora aposentada Maria Cristina Lozano, 66. Moradora de Pinheiros, ela deixou de lado a facilidade dos supermercados para valorizar o comércio de bairro. "Falei para ele [Eduardo] que virei freguesa e vou continuar comprando mesmo com o fim da pandemia. Inclusive, passei o contato dele para vários amigos. Minha vizinha está comprando também", disse ela.
As vendas também dobraram no açougue Center Carnes Weber, há 23 anos na Vila Leopoldina, zona oeste da capital paulista. Willians Soares, 43, viu uma transformação inesperada com a fidelização do consumidor pelo sistema de delivery. Comprou um celular exclusivamente para atender essa demanda.
"A pandemia veio para modificar o jeito de consumir do brasileiro. Quem ia imaginar que o freguês compraria por lista enviada no WhatsApp? Antigamente, eles ligavam ou passavam aqui para ver o corte da carne."
Willians Soares, dono de um açougue na zona oeste de São Paulo
No bairro de classe média alta, ele diz que a freguesia costumava desembolsar R$ 200 em carnes "em uma boa semana", mas tem optado por cortes mais econômicos. Também passou a procurar mais carne desossada e embalada a vácuo, além de itens como mel e palmito.
"Compravam muito filé mignon e picanha. Agora sai bastante coxão mole, patinho e filé de frango. Antes eu não vendia carnes de segunda, mas agora estou vendendo bem. O pessoal tem comprado, mas tem pensado no bolso."
É o próprio Soares quem realiza as entregas e não cobra um centavo a mais por isso, garante —-o pedido mínimo é de R$ 15. Ele conta que as vendas normalmente despencam no meio do ano, mas não é o que tem acontecido agora. Há dias em que roda os bairros da redondeza para entregar mais de 70 pedidos. Apenas 30% das compras são feitas diretamente no balcão.
Morador da Lapa e cliente de Soares, o radialista Fábio Ricardo Assunção, 45, diz que uma das principais vantagens do grande comércio é aceitar pagamento com vale-alimentação, o que é menos comum no pequeno, já que as taxas cobradas podem chegar a dois dígitos.
"Como o preço está interessante, eu só tenho comprado mel dele [Soares]. Acredito que nós deveríamos fazer a nossa parte e preferir compras mais 'regionalizadas' por um bom tempo. Os grandes ainda faturam, ainda mais no ramo de alimentos."
Superada a crise de covid-19, o receio do pequeno comerciante é que o cliente volte a comprar das grandes redes, afirmou Rafael Moreira, analista de inteligência do Sebrae. Em parceria com um grupo de empresários, a entidade participa do Movimento Compre do Bairro.
Segundo o especialista, o consumidor será fiel ao mercado, quitanda ou açougue de bairro que oferecer serviços diferenciados. "Aqueles que agora valorizam o pequeno viram que, ao fazer isso, fortalecem o seu bairro. É uma conexão que veio para ficar. Existe espaço para os dois, o grande e o pequeno", disse.
Um desafio para alguns microempresários, destaca, será superar a resistência às vendas online, que se consolidaram durante a pandemia.
Quem não se preparou e não se preparar estará em grande risco de não conseguir prosperar após a pandemia, Rafael Moreira, analista de inteligência do Sebrae.
Publicado em 28 de julho de 2020.
Reportagem: Henrique Santiago; Pauta e edição: Mariana Bomfim, Fotos: Fernando Moraes; Edição de Imagens: Lucas Lima