Café amargo para o bolso

Com preço alto, brasileiro recorre a marcas mais baratas de café e até reaproveita o pó coado

Filipe Andretta Do UOL, em São Paulo iStock
Filipe Andretta/UOL
Preço do café moído subiu 35% em média no acumulado de 12 meses até outubro de 2021, segundo o IBGE

"Dezoito reais? Não tem condição." O mau humor diante do preço do pacote de 500g foi tamanho que o consumidor paulistano virou as costas e não quis falar sobre o assunto. Café é coisa séria.

O valor (R$ 17,99) não era de uma linha especial ou gourmet, mas de uma marca tradicional que até o começo do ano era encontrada por cerca de R$ 10. O homem, que aparentava ter 40 anos, verificou outros rótulos na gôndola do mercadinho e escolheu um pacote mais em conta (R$ 15,49), sem esconder a insatisfação.

De acordo com representantes dos produtores de café, da indústria e do comércio, a cena presenciada pela reportagem será cada vez mais comum. O preço subiu, vai continuar subindo, e o consumidor terá de escolher entre: a) pagar mais caro; b) comprar um produto mais barato com qualidade inferior; c) tomar menos café.

Em casos de extrema pobreza, famílias estão abrindo mão do café ou coando o mesmo pó mais de uma vez.

O café moído subiu em média 35% no Brasil em 12 meses até outubro de 2021, segundo o índice oficial de inflação (IPCA) calculado pelo IBGE. Em algumas regiões, a alta passou de 50%.

Mas os números de 2021 mostram que, apesar da inflação e da pandemia, o consumo interno não diminuiu —um indicativo de que o brasileiro tenta de todas as formas manter sua quantidade diária de cafezinhos, mesmo com as contas apertadas.

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"Aqui é povão", diz Francisco Pereira, que vende café na porta do metrô Marechal Deodoro, em São Paulo

Comerciantes se viram para segurar o preço

Em frente a uma das portas da estação de metrô Marechal Deodoro, na região central de São Paulo, o cafezinho pequeno do seu Francisco Pereira sai por R$ 0,50. O grande custa R$ 1 e o café com leite é R$ 2. Todos já vêm adoçados, como é do gosto da freguesia.

"Não dá para mudar [o preço] né, cara? Aqui é povão. Se eu subir, eles [os clientes] vão para a padaria, para a cafeteria", diz o dono do carrinho que vende também pães, bolos e desodorantes para trabalhadores que circulam sob a sombra do Minhocão (como é conhecida via elevada João Goulart).

Com 53 anos, ele trabalha há cinco vendendo café. Está indignado com o preço. "Pode meter a boca aí na tua reportagem, é uma reclamação geral. A gente nem sabe se está tendo lucro".

O comerciante se queixa também de outros custos que aumentaram, como o gás de cozinha e o combustível para transportar o carrinho.

Francisco diz que antes comprava da marca Pilão, e que agora já não consegue. Pesquisa na internet mercados que vendam pacotes de 500g de café extraforte (que rende mais) por até R$ 11. "Mudei para Pelé, Brasileiro, Caboclo, essas daí."

A estratégia de usar marcas mais baratas para segurar o preço talvez explique porque o cafezinho fora de casa tenha subido "apenas" 9% nos últimos 12 meses no IPCA.

Mas nem todos os comerciantes podem fazer o mesmo. Na região da República, uma das cafeterias mais tradicionais de São Paulo trabalha apenas com uma marca padrão exportação. Lá, a xícara de expresso custa R$ 6.

Segundo a balconista, que pede para não ser identificada, está difícil não reajustar o preço do menu. Ela diz que o estabelecimento se mantém graças à fama que adquiriu nos mais de 40 anos de atividade e porque está em um ponto turístico da cidade.

Arquivo pessoal
Soraia Campos tem dificuldade para comprar café em Vitória (ES), onde o preço subiu 54% em 12 meses

Menos café na garrafa e até pó reaproveitado

De segunda a sexta, Soraia Campos, 27, acorda às 5h30, a tempo de levar as três filhas à escola. Antes, passa uma garrafa de café adoçado para elas e o marido.

A família mora no centro de Vitória (ES). O café moído subiu 54% em 12 meses na região metropolitana da capital do Espírito Santo —a maior alta dentre as 16 regiões pesquisadas pelo IBGE.

Como quase 14 milhões de brasileiros, Soraia está desempregada. Para contornar o preço do café, ela diminuiu a quantidade de pó em cada garrafa e está comprando de marcas mais baratas. Diz que tem levado pacotes de 500g por R$ 7, em média. Às vezes pede um punhado de café emprestado para vizinhos e amigos.

"A gente compra o que cabe no bolso. Esses dias comprei um que estava baratinho, que eu nunca tinha comprado, mas era horrível", afirma.

No dia 2 de dezembro, a Cufa-ES (Central Única das Favelas do Espírito Santo) distribuiu pacotes de café para pessoas de baixa renda. "São muitas famílias passando por situações desesperadoras em relação à alimentação, que muitas vezes abrem mão do café para comprar outros itens como arroz e feijão", afirma o presidente da ONG, Gabriel Nadipeh.

Em casos mais extremos, diz Nadipeh, o café chega a ser reaproveitado. "Após coado, as famílias colocam o pó para secar, torram e passam de novo."

CNA
Lavoura de café em Minas Gerais, uma das regiões mais atingidas pela seca

Seca, geada e dólar fizeram o preço disparar

Segundo representantes dos agricultores e dos industriais do café, o preço disparou por diversos motivos:

  • A produção de café é maior em anos pares, por questões biológicas da planta. A safra de 2021, que seria naturalmente menor que a de 2020, ainda foi prejudicada pela seca e por geadas. Quanto menos café disponível, maior a pressão sobre os preços.
  • Como a seca perdurou em 2021, estima-se que a próxima safra também será afetada. O mercado internacional já coloca isso na conta.
  • O custo de produção subiu, principalmente com fertilizantes, com herbicidas e com o combustível para transporte e torra do café.
  • O café é negociado em dólar. Com a desvalorização do real, fica mais vantajoso exportar o produto, o que faz subir o preço para o consumidor brasileiro.
  • Dificuldades logísticas no mundo todo durante a pandemia elevaram o custo das commodities em geral (matérias primas como petróleo, soja, minério de ferro e o próprio café).


Silvio Farnese, diretor de comercialização e abastecimento do Ministério da Agricultura, diz que os produtores ainda não repassaram todo o aumento de custo que tiveram. Portanto, o consumidor não deve esperar uma queda no preço tão cedo.

Segundo Farnese, não há risco de faltar café para a população. O Brasil tem estoque para garantir o abastecimento, mas não em quantidade suficiente para regular o preço do produto no mercado interno.

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Brasileiro não troca café por outros produtos

O Brasil é o maior produtor e exportador de café, e fica atrás apenas dos EUA na quantidade absoluta consumida. Em 2020, o Brasil exportou 44,7 milhões de sacas de 60kg (cerca de 35% do mercado internacional) e consumiu 21,2 milhões.

Maciel Silva, coordenador de produção agrícola da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil), afirma que a pandemia trouxe uma redução do consumo em bares e restaurantes, mas que ela foi compensada pelo aumento nos lares.

Assim, mesmo com os preços em alta, o consumo médio de café no Brasil não caiu. E isso, segundo Silva, porque o brasileiro não abre mão da bebida, ao contrário do que acontece em outros países.

Existem populações que mesclam café e chá. Quando um está mais caro, consome-se mais o outro. Não é o caso do Brasil: somos consumidores de café.
Maciel Silva, da CNA

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Café gourmet virou luxo difícil de bancar

A qualidade e o sabor do café são influenciados por fatores como a variedade da planta, a região de cultivo, o tamanho do grão, a forma de manuseio e a torrefação. Os produtores vendem lotes de melhor ou pior qualidade, que são misturados conforme a conveniência e estratégia dos fabricantes.

A Abic (Associação Brasileira da Indústria de Café) classifica os cafés, do pior para o melhor, entre "Não recomendável", "Tradicional/Extraforte", "Superior" e "Gourmet".

Um empresário da indústria de moagem e torra que prefere não ser identificado disse que já se esperava um aumento na procura por marcas mais baratas. A surpresa, diz, foi a quantidade de consumidores que compravam cafés especiais ou gourmets e que voltaram para o café tradicional.

Bruno do Carmo, 33, pesquisador do Museu do Café em Santos (SP), é um desses consumidores. Ele costumava comprar grãos selecionados em uma torrefação local, mas o hábito virou um luxo que não consegue mais bancar.

"O blend gourmet deles foi de R$ 15 para R$ 25. Mesmo no mercado, era possível encontrar um tipo de café melhor por R$ 18 até o ano passado, e hoje foi para mais de R$ 30. De vez em quando ainda me faço um agrado e compro, mas não é mais o principal café que tenho em casa", diz Bruno.

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