O carro do ovo na sua rua

Na pandemia, venda ambulante é fonte de renda na periferia de SP e 'invade' reuniões no home office

Henrique Santiago Colaboração para o UOL, em São Paulo André Porto/UOL

Erik Santana, 22, foi demitido de uma startup de patinete elétrico no início da pandemia, em março de 2020. Preocupado com o sustento da filha de um ano, ele conversou com sua mãe, a avó da menina, e passou a usar o carro dela, que ficava a maior parte do tempo na garagem, para rodar pelo Grajaú, periferia da zona sul de São Paulo, vendendo ovos.

Determinado, mas receoso, Erik ouviu conselhos do tio, que trabalha na área há anos. Ele pagou R$ 120 em uma caixa com 360 ovos, pôs as 30 cartelas no porta-malas do Fox vermelho, ano 2006, e dirigiu lentamente à tarde pelas ruas do bairro onde nasceu. Para sua surpresa, o teste deu certo.

"Foi uma coisa de louco, eu vendi tudo muito rápido. As cartelas de ovo saíam em minutos. Acho que foi assim porque eu conheço muita gente aqui", diz.

Depois do primeiro sucesso, ele quis se firmar no novo negócio. O primeiro passo foi criar uma marca a partir do próprio sobrenome, "Santana Ovos". Depois escolheu um horário para rodar, das 9h às 19h, para pegar o cliente que volta do trabalho no início da noite. Para finalizar, adotou a mensagem no alto-falante do carro para avisar a clientela que o carro do ovo está passando na rua (escute abaixo).

André Porto/UOL

Com alta no preço da carne, clientes apelam ao ovo

Erik diz que trabalha mais de 40 horas entre segunda e sexta, como autônomo informal. Aos sábados, o turno é das 9h às 14h, e os domingos são para descansar. Por mês, tem um lucro de cerca de R$ 3.000, que não é muito dinheiro, mas dá para manter a família, ele diz. Em um cenário de pandemia, o vendedor diz que um emprego com carteira assinada faz falta, mas está motivado a seguir no ramo.

Com o aumento do preço dos alimentos, sobretudo da carne vermelha, ele afirma que moradores da periferia acabam ficando com o ovo, que está mais em conta. Para incrementar as vendas, adicionou queijos, mel e bolachinhas doces ao porta-malas.

Já ouvi muitos clientes falarem que não vão comprar carne por um bom tempo. Se alguém compra uma cartela de ovos por R$ 15, daqui a 15 dias compra outra. Com R$ 30, uma pessoa consegue comprar a 'mistura' do mês.
Erik Santana, vendedor de ovos do Grajaú, em São Paulo

Erik conta que planeja abrir uma distribuidora de ovos no Grajaú no final de 2022. Também quer comprar mais um carro para empregar pessoas que queiram trabalhar com ele.

Grupo no WhatsApp e cartão-fidelidade

Jairo dos Santos, 30, começou a vender ovos na rua nas folgas do fim de semana, há dois anos. Ao notar que as cartelas eram vendidas rapidamente, decidiu pedir demissão do supermercado onde trabalhava como "faz-tudo". Ele mora em Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo, mas percorre as ruas dos bairros paulistanos Ermelino Matarazzo e Ponte Rasa, na zona leste, com um Corsa ano 2000.

No início, sua ideia de rota era dirigir em linha reta, cruzar avenidas movimentadas e depois retornar. Hoje, tem um itinerário com bairros onde passa diariamente, sem repetir ruas. O trabalho começa antes mesmo de ir à distribuidora de ovos diariamente, pois ele criou grupos no WhatsApp com mais de 2.000 clientes, que recebem informações sobre preços e novos produtos e fazem encomendas.

As vendas seguem em alta na pandemia, mas não como em 2019, diz Jairo. Para ele, a suspensão do auxílio emergencial do governo federal, no final do ano passado, deixou as pessoas da periferia sem conseguir se alimentar. O governo retomou o auxílio em abril, mas com valores mais baixos. Para manter o freguês perto, Santos criou um cartão-fidelidade —quem completa dez cartelas de ovo compradas leva mais uma de graça.

Jairo conta que pagava R$ 80 por uma caixa com 360 ovos em 2019. Hoje, não desembolsa menos de R$ 145 pelo mesmo produto.

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Custo alto impede anúncio de '40 ovos por R$ 10'

Aquele preço de 30 ou 40 ovos por R$ 10, tão comum entre vendedores que virou até música na voz de Zeca Pagodinho, é impossível de ser feito na pandemia, segundo Jairo. Para ter lucro, as três dezenas não saem hoje por menos de R$ 15.

O preço está alto porque o milho e a soja subiram. Se o preço do ovo cai, eu vendo mais barato. Se aumenta, eu fico no prejuízo.
Jairo dos Santos, vendedor de ovos na zona leste de São Paulo

Diariamente, o vendedor gasta R$ 40 de gasolina para fazer o seu roteiro na zona leste. Como política de trabalho, decidiu não cobrar taxa de entrega de nenhum cliente que pede encomenda. As formas de pagamento vão de moedinhas a transferência por Pix. Para ele, tudo é dinheiro.

Mesmo com a subida nos custos, Jairo fecha o mês no azul, com uma renda de R$ 2.500, já descontando as despesas. Ele é registrado como MEI (microempreendedor individual). "Conheço muitas distribuidoras e não compro em lugar que está muito barato, pois sei que a qualidade não está muito boa. E não fico com ovo parado no carro", diz.

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O carro do ovo está passando na sua reunião

Fonte de renda para os vendedores, o carro do ovo se tornou mais presente na rotina dos paulistanos na pandemia, por causa do home office.

Com muita gente trabalhando em casa, para evitar contaminações, o som do carro do ovo acaba, sem querer, vazando em ligações ou reuniões online de trabalho. Veja abaixo o que contam alguns moradores ouvidos pelo UOL.

"Ovo, ovo por R$ 1"

Estava na casa do meu namorado e fui trabalhar na varanda, pois tinha obra do lado de dentro. Entrei em uma reunião para apresentar um projeto de site para o cliente. Eu estava com o microfone ligado, e do nada passou um carro anunciando bem alto 'ovo, ovo por R$ 1'. Comecei a rir e todo mundo riu também. Nós levamos numa boa porque acontece mesmo, eles precisam anunciar que estão passando para vender.

Paula Martins, 28, designer, moradora do Jabaquara, zona sul de São Paulo

"O vendedor estava brigando com uma cliente"

Participei de uma reunião por vídeo e comecei a ouvir uma discussão na rua. Eu conseguia ouvir, mas ainda dava para trabalhar. Do nada, percebi que era o vendedor de ovos discutindo com uma cliente. Em algum momento, ele simplesmente decidiu ligar o alto-falante do carro e brigar com ela. Eu tive que sair [do encontro virtual], porque o som oscilava, ficava alto e depois desligava.

Gabrielle Neves, 21, assistente de marketing, moradora do Jardim Brasil, zona norte de São Paulo

"Todo mundo deu risada"

Troquei de emprego na pandemia e aprendi que no home office você se faz presente a distância. Um dia, apresentei uma proposta de mudança operacional. No momento em que eu liguei o microfone [do computador], passou um carro com o alto-falante estourado. Eu não podia desligar o microfone, porque estava apresentando o projeto. Todo mundo deu risada. Do mesmo jeito que estou trabalhando, essas pessoas [vendedores] também estão. Seria injusto dizer que isso me atrapalha.

Marina Oliveira, 33, jornalista, moradora do Campo Belo, zona sul de São Paulo

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