Triste regresso

Famílias da Baixada Santista perdem renda na pandemia e voltam a morar em favelas anos após conseguir sair

Maurício Businari Colaboração para o UOL, em Santos (SP) Marcelo Justo/UOL

Famílias que melhoraram suas condições de vida e saíram das favelas nos últimos anos tiveram que voltar para as comunidades durante a pandemia, porque perderam renda.

A Cufa (Central Única das Favelas) alerta que esse movimento já é visível nas favelas da Baixada Santista, no litoral de São Paulo.

"Famílias que haviam conseguido estruturar uma vida melhor, que tinham, por exemplo, um lava-rápido ou uma lanchonete na garagem de casa, perderam o poder econômico e estão voltando para esses territórios de maior vulnerabilidade social, onde o aluguel é menor ou, às vezes, nem existe", disse Deraldo Silva, coordenador da Cufa na região.

O Brasil deve somar 61,1 milhões de pessoas vivendo na pobreza este ano, segundo estudo do Made/USP (Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo). O aumento é de 5,4 milhões de pessoas em relação aos níveis pré-crise.

Para Saulo Abouchedid, professor da Facamp (Faculdades de Campinas), o cenário dramático no mercado de trabalho vai continuar depois da pandemia. "Mesmo após a vacinação, a recuperação será marcada por uma maior precarização do trabalho, comprometendo a renda do trabalhador", disse.

O UOL conversou com trabalhadores da Baixada que perderam tudo e retornaram à favela. Veja os relatos abaixo.

Marcelo Justo/UOL
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'Era passar fome ou voltar para a favela'

A dona de casa Karina Lima, 34, viveu até os 18 anos em uma palafita de um cômodo, com os pais e cinco irmãos, na comunidade Dique do Sambaiatuba, em São Vicente (SP). Conseguiu melhorar de vida, se mudando para Americana (SP). Mas não imaginava que teria que voltar.

Era ficar [em Americana] e passar fome ou morar com meu pai [na favela]. Foi um baque. Eu já estava acostumada a um padrão de vida alto e tive que descer tudo de novo.

Karina foi para Americana aos 20 anos, para encontrar um rapaz que conheceu pela internet. O relacionamento não deu certo, mas ela se apaixonou por um amigo dele.

Com o tempo, o casal melhorou de vida. Karina cuidava da casa e dos quatro filhos, enquanto o marido trabalhava em uma padaria em um bairro nobre da cidade.

A gente tinha carro, celulares, muita comida na geladeira. Fazia churrasco todo final de semana, chegava a comprar barris de chope para reunir os amigos. Eu vivia no shopping, comprava roupas para as crianças. Enchia o carro com compras no supermercado. Era uma vida muito boa.

O casal se separou em 2017, e o ex-marido de Karina se casou novamente, mas as famílias continuaram morando na mesma casa.

Até que veio a pandemia, e o ex-marido de Karina perdeu o emprego. Ela passou a trabalhar como diarista. Quando as faxinas minguaram, em maio do ano passado, ela voltou ao Dique com os filhos, levando só uma cama, para morar em um cômodo. Para acomodar os filhos, construiu um beliche improvisado.

"No Réveillon, eu não tinha o que dar aos meus filhos. Dei um pão de forma embolorado, que tinha guardado do Natal. Fomos parar no pronto-socorro", diz.

Passei meses chorando. Dói ver meus filhos nessa situação. Mas não perco o otimismo. Se Deus me ajudar, vou conseguir construir um cantinho para mim e os meus filhos.

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'Não vamos mais conseguir sair daqui'

O gesseiro Willians Pinto Assis, 43, cresceu na favela Sá Catarina de Moraes, em São Vicente (SP). Saiu de lá três vezes ao longo da vida. Nas duas primeiras, ainda era criança e foi morar com os avós, no sertão do Alagoas. Na terceira, em 2011, saiu adulto, junto com a esposa, Danyelle.

O casal conseguiu alugar uma casa mais confortável e se sustentar com os três salários mínimos que Willians recebia e o salário mínimo de Danyelle, que trabalhava como babá.

Tínhamos uma vida boa. Mas meses antes de explodir a pandemia, o serviço começou a diminuir. Pagávamos aluguel já com dificuldade, e minha mulher engravidou, depois de ter perdido um bebê. Como a gravidez era de risco, ela precisou parar de trabalhar.

Quando a pandemia eclodiu, Willians perdeu o emprego, e a situação piorou. Em dezembro de 2020, teve que voltar para a favela, para morar em um cômodo nos fundos da casa da mãe de Danyelle, comprado por R$ 1.000 na época em que o casal ainda morava lá. Desta vez, Willians não voltou sozinho, mas com a esposa e o filho Davi, de dois anos.

Foi um período muito difícil. Tivemos sintomas de covid-19 e já não podíamos mais contar com os R$ 1.200 do auxílio emergencial, porque o governo tinha suspendido. Conseguimos sobreviver graças à minha sogra, que fornecia almoço e janta quando podia, e a doações de cestas básicas. Eu tinha vergonha, para mim era humilhante. Mas eu ficava muito grato, porque na nossa geladeira só tinha água para beber.

A família levou só cama de casal, guarda roupas, geladeira e fogão. Não puderam montar o berço do menino, por falta de espaço.

A gente vive dos bicos que eu consigo. Meu sonho é conseguir construir um cômodo a mais, subir uma laje, para o meu filho ter o quartinho dele, porque, do jeito que a situação está, acho que não vamos mais conseguir sair daqui.

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'Quando o governo cortou o auxílio, não tinha dinheiro para mais nada'

A cuidadora de idosos Nádia de Melo, 57, conta que viveu os últimos 14 anos em uma casa com dois quartos, sala, cozinha e banheiro, com o filho, no bairro Jardim Rádio Clube, em Santos (SP).

Recebia um salário mínimo e ajuda do ex-marido. Em dezembro do ano passado, porém, teve que retornar ao Dique da Vila Gilda, onde morou até os 43 anos. A favela é considerada a maior sobre palafitas do Brasil, com 20 mil habitantes.

A pandemia acabou com a gente. A entidade onde eu trabalhava me dispensou —eu não tinha registro na carteira. Meu ex-marido parou de ajudar, porque brigamos. Enquanto eu recebia R$ 1.200 do auxílio emergencial por mês, a gente conseguiu se segurar. Mas quando o governo cortou, fiquei numa situação muito difícil, não tinha dinheiro para mais nada. O jeito foi voltar para a favela.

O retorno não foi fácil. Moradores antigos queriam mais de R$ 3.000 por um "pedaço de lama", como Nádia chama, onde ela pudesse instalar as palafitas para montar um barraco. A cobrança, apesar de ilegal, é comum nas favelas.

Acabou encontrando um morador que ofereceu um espaço já reservado por ele sobre a maré.

Consegui um empréstimo de R$ 5.000 no banco para montar a estrutura do barraco. Só que não tinha dinheiro para a mão de obra, queriam outros R$ 5.000. Um genro do meu atual marido e um amigo se ofereceram para erguer a casa de graça.

Soldador de 59 anos, o marido de Nádia está desempregado e vivendo de bicos há mais de um ano. Ela diz que também não encontra trabalho nem como faxineira. A família sobrevive de doações de amigos e parentes.

Faltou ajuda do governo, eles não podiam ter parado de dar o auxílio. E agora o valor que estão dando, de R$ 250, só dá para pagar uma conta ou outra. Ou a gente compra comida ou paga as contas. Se você abrir minha geladeira, só vai encontrar uma garrafa de água da torneira.

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'Teve dias em que não tivemos o que comer'

A história de Alessandra Ferreira Paulino, 42, de Praia Grande (SP), é diferente. Até o ano passado, ela nunca havia morado em uma favela, muito menos na rua.

Ela começou a trabalhar aos 15 anos, quando o pai, que sustentava a casa, morreu.

A partir daí, sempre trabalhei como babá, mas minha carteira de trabalho nunca recebeu uma assinatura. Eu ajudava minha mãe em tudo que podia, até que ela adoeceu e também morreu. Eu tinha 37 anos e estava grávida. O pai da criança não ajudava em nada. A gente se separou e eu tive que sair pela vida quebrando a cara.

Em junho do ano passado, com dificuldade para encontrar trabalho por causa da pandemia, foi morar com uma prima. Com os R$ 1.200 do auxílio emergencial, ajudava nas despesas. Quando o auxílio acabou, em dezembro, ela diz que a prima pediu que ela fosse embora.

Alessandra passou aquela noite na rua, debaixo de um viaduto, com o filho Pietro.

Foi uma noite horrível, eu sentia muito medo. Passei em claro, vigiando meu menino no meu colo. Minha cabeça girava. Pensei tantas coisas ruins, nem gosto de lembrar.

Alessandra foi acolhida por uma amiga quando amanheceu, e moraram juntas por um tempo. Mas ela ficou sem teto de novo em abril.

Como sou evangélica, busquei ajuda na igreja. Uma senhora que ouviu minha história se ofereceu para ajudar. Graças a Deus, não tivemos que passar outra noite na rua.

Desde então, Alessandra e Pietro vivem num quartinho com banheiro, na entrada da Favela da Porvinha, em Praia Grande. Ainda desempregada, está vivendo de doações de amigos e conhecidos.

Teve dias em que não tivemos o que comer. Toda noite peço ajuda para Deus. Eu só queria conseguir um cantinho e um serviço para pagar as contas e comer. Meu filho não merecia passar por isso. Sofro muito quando vejo que ele está triste. Tento disfarçar, brincar, mas a verdade é que o nosso futuro é incerto.

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