'O pior ano da minha vida'

Brasileiros contam como 2021 foi um ano difícil para se alimentar, trabalhar e pagar as contas em dia

Henrique Santiago Do UOL, em São Paulo Getty Images/iStockphoto/FG Trade

O ano de 2021 ficou marcado pela piora em alguns dos principais índices de economia do Brasil. Na continuidade da pandemia de covid-19, a inflação oficial do país, medida pelo IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) voltou a bater dois dígitos, chegando a quase 11% no acumulado de 12 meses, maior resultado desde 2003.

Como resultado, o brasileiro sentiu no bolso o aumento de produtos essenciais. A carne vermelha ficou mais cara e, com isso, o seu consumo despencou ao menor nível em 16 anos. Outros itens básicos, como arroz, feijão e café também ficaram mais escassos na mesa de milhões de pessoas.

A taxa básica de juros da economia (Selic) chegou a 9,25% em dezembro, maior patamar em quatro anos, como uma tentativa do governo de reduzir o consumo e derrubar os preços.

O desemprego tem tido reduções, mas ainda afeta muita gente. No trimestre móvel de agosto a outubro de 2021, 12,9 milhões de brasileiros estavam desocupados (taxa de 12,1% de desemprego). Também houve queda de 4,6% no rendimento mensal em relação ao trimestre móvel anterior: a média foi de R$ 2.449.

Nos trechos a seguir, o UOL conta histórias de pessoas que sentiram a crise econômica atingir suas vidas em meio aos apuros causados pela pandemia.

Janayna alimenta seus filhos pequenos com água e açúcar; Tamara vendeu o carro para pagar dívidas acumuladas; e José foi demitido meses depois de se tornar pai.

Arquivo pessoal
Janayna de Paula viu a fome bater à sua porta em 2021

Água com açúcar para enganar a fome do bebê

Janayna de Paula do Carmo, 30, ainda trabalhava como diarista em uma empresa terceirizada antes de dar à luz seu segundo filho, em março deste ano. A maternidade veio acompanhada da dispensa das funções e da perda brusca de um salário mínimo (R$ 1.100) todo mês. Ela tem um companheiro, mas não fala muito sobre a relação nem a participação dele nas despesas da casa.

Sem trabalho, ela usa a única fonte de renda atualmente, os R$ 268 que recebe do Auxílio Brasil, para tentar garantir pelo menos o leite das crianças. Mas nem sempre dá certo.

"Eu já dei água com açúcar para meus filhos, o menorzinho [de nove meses] estava gritando de fome e eu não tinha de onde tirar comida. Tive que pedir um copo de leite para a vizinha e ela me deu uma caixa de um litro", diz Janayna, que vê a situação se repetir com frequência dentro da casa onde mora, em Pindamonhangaba, no interior de São Paulo.

Às vezes, falta água com açúcar até mesmo para ela. O jeito que ela encontra para enganar o estômago é bem conhecido no Brasil: dormir, quando o cansaço é maior que a preocupação. A família de Janayna se junta aos 20 milhões de brasileiros que passam fome.

Uma preocupação que já tirou seu sono foi a falta de dinheiro para comprar fraldas descartáveis para o caçula. No lugar, utilizou as de pano em diferentes ocasiões. "Meu bebê ficou com as pernas vermelhas e irritadas por causa disso. Ninguém quer ter filho para passar por essas situações."

De vez em quando, um ovo frito para a filha

Em 2021, Janayna passou a depender de doações de alimentos de ONGs e igrejas. É na cozinha onde calcula a quantidade de arroz e feijão que vai cozinhar e até o tempo em que o fogão vai ficar ligado. O botijão de gás não sai por menos de R$ 100 e tem durado pouco mais de um mês.

Virou rotina preparar as refeições uma vez por dia e esquentá-las no micro-ondas ao longo da semana. O prato de arroz e feijão, que vez ou outra ganha um ovo frito, é feito para a filha de 4 anos. Janayna chega a passar mais de um dia sem comer. "Eu me sinto deprimida, é uma fase difícil. É o pior ano da minha vida", lamenta.

Ela espera começar o ano de 2022 com um trabalho novo e os filhos matriculados na creche. Tem preferência por montar uma barraca de verduras ou ovos, mas aceita o que vier pela frente.

Arquivo pessoal
José Belizário cortou gastos básicos em alimentação e viu sua saúde piorar

Ele descobriu a paternidade e o desemprego

Os últimos 12 meses de José Belizário, 25, foram marcados por duas surpresas bem distintas. Em julho, descobriu que seria pai quando sua companheira já estava na mesa de parto -ela teve uma gravidez silenciosa, quadro que acontece pela falta de percepção da mãe ou problemas físicos e psicológicos.

Nos primeiros dias de dezembro, foi demitido com mais 100 colegas depois de cinco anos de serviços prestados como atendente de telemarketing.

O valor que recebeu dos direitos trabalhistas garantirá o pagamento do aluguel em dia nos próximos três ou quatro meses. Com o revés financeiro, Belizário passou a dividir um apartamento na periferia de São Bernardo do Campo (SP) com dois amigos, e sua parceira voltou a morar com os pais.

Ele começou a procurar emprego desde então, porém ainda espera ser chamado para entrevistas. A vantagem, conta, é que sua área costuma contratar funcionários com mais facilidade. Seu último salário era de R$ 1.500.

"Minha esperança é que em janeiro eu esteja empregado, mas não é o que as estatísticas recordes de desemprego me mostram. Não posso desanimar, manter um pingo de sanidade é necessário", diz.

Legumes, verduras e frutas dão lugar a salsicha e batata

Se manter a saúde mental em dia é um desafio, o mesmo pode ser dito sobre o bem-estar corporal. Praticante de capoeira e jiu-jitsu, ele costumava incluir verduras, legumes e frutas no seu prato. O dinheiro hoje permite a compra de embutidos, como linguiça e salsicha, alimentos processados. "Isso quando eu não como arroz e batata frita."

Como o prato de comida tem mais embutidos e menos alimentos saudáveis, Belizário acusa indisposição e baixa imunidade frequentemente, uma vez que há carência de vitaminas e minerais de que seu corpo necessita.

Ele observa a contradição da piora da insegurança alimentar no Brasil enquanto as exportações de carne alcançam bilhões. "O agronegócio está com lucros recordes, e nós aqui", critica.

Com uma recolocação no mercado de trabalho, Belizário pretende alugar uma casa para morar com a filha e a companheira em 2022. Por enquanto, ele as visita todos os dias, sem exceção.

Arquivo pessoal
Tamara Dias perdeu o apartamento financiado e vendeu o carro por causa de dívidas

Cabeleireira mora no trabalho, vendeu carro e desistiu de apartamento

A cabeleireira Tamara Dias, 34, começou 2021 com um caminhão de contas a serem pagas no ano anterior. E assim vai encerrar dezembro. Sem conseguir negociar um desconto com o proprietário, entregou o antigo salão e o apartamento, ambos alugados, e trocou por um sobrado que hoje é o seu sustento e moradia.

Ela continua atendendo a clientela na Vila Mariana, bairro de classe média-alta da capital paulista, mas ainda estranha essa nova realidade. Tamara mora na parte de cima com o marido e os filhos de 8 e 4 anos. "Eu tive que adequar e remodelar a casa. Agora só temos um quarto para quatro pessoas. Tudo mudou muito."

Em menos de seis meses, a cabeleireira vendeu o carro da família e foi forçada a desistir do apartamento financiado na planta. Tamara iria pegar a chave do tão sonhado imóvel em julho de 2022. Pela quebra de contrato, juntou uma dívida de R$ 30 mil, que é quitada aos poucos.

Embora procure encarar a situação como um aprendizado, Tamara não esconde a frustração ao falar da casa perdida, localizada na Vila Carrão, zona leste de São Paulo. "É meio dolorido passar lá em frente, mas faz parte. Não posso desanimar."

Sonho de pagar dívidas e ter uma casa, mas não em 2022

Ela também carrega o lema de esperança no trabalho. O fim de ano costumava ser uma época de muitos atendimentos diários, só que em 2021 as cadeiras estão mais vagas do que nunca -antes do coronavírus eram seis; agora, a metade. Uma manicure e uma depiladora também trabalham com ela. "O movimento está bem fraco", resume.

A partir de janeiro próximo, Tamara tem duas ambições bem desenhadas: trabalhar mais para pagar as dívidas pendentes. A casa própria ainda está nos planos, talvez não em 2022.

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