Os que mais sofrem na crise

Empreendedor negro, da periferia e baixa escolaridade sente mais a pandemia, diz estudo

Claudia Varella Colaboração para o UOL, em São Paulo

A microempreendedora individual Luciane de Oliveira Santos Cardozo, a Didi, é negra, só cursou até o 1º ano do ensino médio e tem um pequeno negócio em Santo André, na região metropolitana de São Paulo.

A Didi tem o perfil de empreendedor que foi mais impactado pela crise causada pelo covid-19 nos últimos meses: negro, da periferia e com baixa escolaridade.

Os negros são os mais prejudicados pela situação da pandemia. A crise realçou a fragilidade desses pequenos negócios tocados por eles.
Marco Aurélio Bedê, analista em Gestão Estratégica do Sebrae

É o que mostra a 4ª edição da pesquisa "O impacto da pandemia de coronavírus nos pequenos negócios", do Sebrae com a Fundação Getulio Vargas (FGV). A pesquisa, feita entre 30 de maio e 2 de junho, ouviu 7.403 empresários de pequeno porte. Um dos cortes é a cor/raça do empreendedor.

Em geral, esse empreendedor negro está na periferia das regiões metropolitanas e trabalha em pequenos negócios que dependem da presença física do cliente. São negócios simples, pouco estruturados e mais difíceis de serem oferecidos online. Eles também têm menos acesso à informática e registram menor uso de ferramentas digitais [aplicativos de entrega, sites, comércio eletrônico e redes sociais, como WhatsApp, Instagram e Facebook].

Marco Aurélio Bedê, analista em Gestão Estratégica do Sebrae

Salgadinhos para compensar queda na venda de marmitas

Dona da Dindé Culinária Artesanal desde 2007, Didi, 49, viu o faturamento da empresa cair drasticamente com a pandemia.

Antes, vendia de 50 a 60 marmitas congeladas por mês. A maioria dos meus clientes era gente que levava marmitas para o trabalho. Com a crise, as vendas caíram para menos da metade. Hoje só tenho três clientes fixos por mês.
Luciane de Oliveira Santos Cardozo, a Didi, dona da Dindé Culinária Artesanal

Mesmo tendo colocado a empresa num app de entrega, ela não viu as vendas crescerem.

Didi teve que se reinventar. Tirou do armário uma máquina modeladora de salgados e começou a fazer coxinhas, risoles, esfirras e bolinhas de queijo para fora, sob encomenda. Hoje, os salgados representam 50% do faturamento que tinha antes da crise. Ela vende a R$ 35 o cento. "E o meu delivery é o Alexandre, meu marido."

Como MEI, ela fez o cadastro para receber o auxílio emergencial do governo, mas não recebeu nada até agora. Para pagar as contas de luz, que atrasaram, Didi pensou em pedir empréstimo no banco, mas desistiu.

Estamos numa situação indefinida. Preferimos ralar com o que a gente tem e cortar gastos para conseguir pagar as contas.
Didi, da Dindé Culinária Artesanal

Criou catálogo para enviar às clientes mais velhas

Moradora de Duque de Caxias (região metropolitana do Rio), Tânia Valéria da Silva (na foto, à esquerda), 65, é uma empreendedora individual negra e dona de um pequeno negócio tocado de casa: a Mocinhas Elegantes, que há cinco anos vende produtos feitos de crochê e buquês de noiva. Ela tem curso técnico de enfermagem, mas nunca exerceu a profissão.

Para driblar a crise, já que as vendas presenciais foram interrompidas, Tânia e a filha, Maria Luiza, 36, produziram um catálogo para mostrar os produtos em estoque e os que podem ser encomendados (roupas, por exemplo) e distribuíram às clientes via email e WhatsApp.

A empresa tem uma loja online, mas pouco acessada pela maioria das suas clientes, que são pessoas idosas sem familiaridade com a internet.

Antes, as clientes vinham buscar as encomendas em casa, ou enviávamos as peças via correio. Agora, com a pandemia, evitamos sair até para comprar a matéria-prima. Mas, às vezes, não tem jeito mesmo: a minha filha sai para entregar as encomendas e fazer as compras.
Tânia Valéria da Silva, dona da Mocinhas Elegantes

Colagem feita pela artista Yasmin Ayumi com foto de Pablo Saborido/UOL

Coletivos ajudam pequenos negócios marginalizados

Alguns coletivos e entidades civis podem ser a saída para ajudar esses pequenos empreendedores a sobreviver à crise gerada pela pandemia.

Uma aceleradora e incubadora de negócios negros é a Feira Preta, idealizada por Adriana Barbosa (foto acima), em 2012.

Damos oportunidades àqueles que são deixados à margem pela sociedade. São eventos exclusivamente criados para o segmento negro. Capacitamos os negócios e fazemos com que o conhecimento circule entre eles.
Adriana Barbosa, idealizadora da Feira Preta

A Feita Preta promove workshops e imersões: o AfroLab para os empreendedores, o Pretas Potências para os jovens artistas e o Festival Feira Preta.

"Nessa pandemia, a falta de contato tem sido um desafio. Para empreendedores que trabalham em feiras, com contato direto com o consumidor, reduzir esse acesso também impacta psicologicamente", declarou.

Iniciativa em favela de BH auxilia empreendedores

Criado em 2014 no Morro do Papagaio, uma das maiores favelas de Belo Horizonte (MG), o Fa.vela (na foto acima) é uma iniciativa liderada por empreendedores sociais negros, LGBTQI+ e periféricos. Oferece educação empreendedora e aceleração de negócios e projetos, por meio de cursos, eventos, palestras, oficinas e outras atividades. Já foram acelerados cerca de 260 negócios e projetos em 25 municípios em Minas, Espírito Santo e Pará.

Como uma mãe empreendedora negra de baixa renda, com filhos em casa por estarem com aulas suspensas, pode gerenciar um negócio com eficiência a partir de somente um celular? E isso se tiver acesso à internet.
Tatiana Silva, cofundadora e diretora executiva do Fa.vela

Hoje, a comunidade empreendedora gerenciada pelo Fa.vela é formada por jovens, adultos e idosos, sendo 82% pessoas negras, 70% mulheres e quase 30% LGBTQI+. A maioria recebe até dois salários mínimos, e 67% têm até o ensino médio completo.

Fundo banca empreendedoras para sobreviver à crise

Para ajudar financeiramente os empreendedores, seis organizações (Instituto Feira Preta, Agência Solano, Fa.vela, AfroBusiness, Vale do Dendê e Instituto Latinidades) se uniram e criaram o fundo Éditodos.

"São recursos para que os empreendedores negros consigam sobreviver à crise", disse Adriana.

O fundo já apoiou 40 empreendedoras da faixa de risco (acima de 50 anos de idade).

Projeto conecta costureiras a empresas

Em meio à pandemia, três coletivos ligados ao empreendedorismo negro (Negras Plurais, Feira Preta e Crioula Criativa) criaram o projeto Afro Máscaras, uma rede de costureiras de comunidades que já vinham trabalhando na produção de máscaras.

O Afro Máscara faz o mapeamento dessas costureiras, divulga nas redes sociais e auxilia na conexão com empresas que desejam ajudá-las com a compra das máscaras ou de insumos, como linhas e tecidos.
Caroline Moreira, idealizadora do projeto

Segundo ela, em três meses, o projeto reuniu 60 mulheres e conseguiu a adesão de cinco empresas.

Contabilidade para mulheres que atuam por conta própria

Ludmila da Silva Hastenreiter (na foto), negra e nascida em Duque de Caxias. é especialista em contabilidade e gestão financeira para microempresas. Em 2017, ela criou, no bairro de Irajá (zona norte do Rio), a Empoderamento Contábil. Desde então, já atendeu cerca de 2.000 mulheres à frente de seus micronegócios localizados nas favelas e periferias na Baixada Fluminense e de várias partes do estado.

A maioria da população dessas áreas é negra e nordestina.
Ludmila da Silva Hastenreiter, da Empoderamento Contábil

Segundo ela, quase 80% das mulheres que trabalham por conta própria não têm CNPJ. Destas, 85% são empreendedoras negras.

Outra saída: buscar crédito em fontes alternativas

Como a pesquisa do Sebrae/FGV mostrou, apenas 14% dos empreendedores negros conseguiram empréstimos bancários na pandemia.

É difícil ver futuro num empreendimento que não tem capital de giro para uma boa liquidez. Ou seja, não tem dinheiro suficiente para manter a operação da empresa e pagar as contas em dia, enquanto essa empresa não dá lucro.
Ludmila da Silva Hastenreiter, da Empoderamento Contábil

Para Bedê, analista do Sebrae, há outras opções além dos grandes bancos para buscar crédito e linhas de financiamento.

É possível buscar em outras instituições bancárias com regras menos rígidas, usando até o Fundo de Aval, que é uma garantia complementar dada aos bancos. O Sebrae oferece o Fundo de Aval para Micro e Pequenas Empresas [Fampe]. A Caixa é um dos bancos que aceita esse fundo. Mas cada banco tem autonomia para aceitar ou não.
Marco Aurélio Bedê, analista em Gestão Estratégica do Sebrae

Outras opções são o microcrédito (oferecido pelo Banco do Povo, em São Paulo, por exemplo) e as cooperativas de crédito, em que a taxa de sucesso na obtenção do crédito é maior do que nos bancos comerciais, segundo Bedê.

Para Ludmila, essas cooperativas e os bancos digitais têm boas opções de linhas de crédito. Para que MEIs, micro e pequenas empresas possam se autogerir nesse período de recessão, ela também aponta o Pronampe (Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte), que oferece, via bancos, linhas de crédito para capital de giro.

"Mas é importante conversar com um profissional da área contábil", ressalta Ludmila.

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