Programando desde cedo

Brasileiro deveria aprender programação na escola, não importa que profissão ele siga, diz chefe do GetNinjas

Beth Matias Colaboração para o UOL, em São Paulo Arte/UOL
Marcelo Justo/UOL

Mais investimentos em ciência e tecnologia, com foco na formação de programadores, podem colocar o Brasil um passo à frente de outros países no mundo. Em entrevista na série UOL Líderes, Eduardo L'Hotellier, CEO e cofundador do app GetNinjas, de busca de profissionais, afirma que, independentemente da carreira, é preciso aprender programação ainda no ensino médio. A plataforma diz ter mais de 1 milhão de profissionais cadastrados, como pintores, encanadores, eletricistas, diaristas, professores de inglês e técnicos de celular.

De acordo com o executivo, a maior preocupação dos usuários do aplicativo na América Latina é em relação à segurança -o medo de colocar um desconhecido dentro de casa. Ele também diz que empreender no Brasil é complicado e pede um sistema de impostos mais simples.

Bê-a-bá da programação

Ouça a íntegra da entrevista com o CEO do GetNinjas, Eduardo L'Hotellier, no podcast UOL Líderes. A entrevista completa em vídeo com o executivo está disponível no canal do UOL no YouTube. Continue nesta página para ler o texto.

Brasil da programação

UOL - O que exatamente faz a plataforma GetNinjas?

Eduardo L´Hotellier - É um site e um aplicativo onde clientes podem contratar qualquer tipo de serviço, desde o pintor, diarista, personal trainer, professor de inglês, professor de piano, assistência técnica de celular, de eletrodoméstico. O que o cliente precisar, encontra em nosso site e em nosso aplicativo.

Como surgiu a ideia de criar um site de serviços?

Em 2010, precisei contratar um pintor. Fui aos classificados tradicionais e não encontrei. Ligava para um, ligava para outro e ninguém atendia o telefone. Quando finalmente consegui um profissional, ele fez o trabalho e não ficou muito bom. Não tinha com quem reclamar. Não tinha avaliações. Eu não sabia se aquele profissional era bom ou não. Neste momento, vi uma oportunidade incrível de criar uma plataforma que ofereceria facilidades aos clientes de encontrarem bons profissionais, e de profissionais divulgarem seus serviços e crescerem nos seus negócios.

Qual é o maior desafio hoje na área de inovação e tecnologia aqui no Brasil?

Definitivamente, atrair e reter talentos excepcionais. O Brasil, como país, precisa investir mais em ciência e tecnologia, precisa investir mais na formação desses jovens, porque existe um mercado de trabalho com desemprego por um lado, mas sobra oferta de empregos de outro.

O número de vagas para engenheiro de software excede muito o número de engenheiros disponíveis no mercado. Isso no Brasil, mas também acontece em outros países do mundo. É óbvio, então, para a nação que investimentos nessas profissões irão colocar o Brasil um passo à frente dos outros países no mundo. Temos que começar a investir. Isso tem acontecido, mas é preciso que aconteça ainda de forma mais acelerada, mais investimentos em ciência e tecnologia no país.

A educação no Brasil atende essa demanda por cursos de tecnologia? Onde investir?

Primeiramente, fazer o básico. O estudante brasileiro está nas últimas colocações em línguas e em exatas nos rankings internacionais. Desenvolver os dois é fundamental. Segundo, acredito que ciência da computação, programação, engenharia de software deveriam ser disciplinas ensinadas no ensino médio, independentemente da profissão que as pessoas queiram seguir no futuro.

Estudamos biologia para entender como o organismo funciona, e deveríamos estudar ciência da computação, tecnologia, para entender como esses aparelhos que hoje quase fazem parte do nosso corpo também funcionam.

A sociedade civil tem trabalhado bastante nisso, mas precisa trabalhar ainda mais para desenvolver alternativas a esses jovens. Hoje, temos um gap histórico que vem desde a infância, começando pelos brinquedos: o menino ganha a nave espacial e a menina, a boneca. Isso passa também por como os pais criam os filhos.

Mas a humanidade vem caminhando para um espaço no qual os jovens estão sendo expostos aos mesmos desafios. E, com isso, acredito que vamos conseguir, em alguns anos, fechar esse gap. Não será de um ano para outro. Não existe pílula mágica, mas acredito que estejamos indo por um caminho certo.

A tecnologia ainda é muito masculina?

Ainda é muito masculina. Infelizmente, mais homens se formam em tecnologia do que mulheres. Isso é algo que deve ser mudado.

Mas é apenas uma questão cultural?

Isso é algo cultural. Vem desde a infância quando o menino recebe um brinquedo de nave espacial, e a menina recebe uma boneca. Isso vai criando gostos ao longo da infância, que se refletem no ensino médio, no ensino superior.

Conversando com amigos dessa nova geração de pais, existe uma mentalidade diferente. Quando comecei o GetNinjas, era difícil encontrar uma mulher programadora, que desenvolvesse software. Hoje ainda é muito difícil. Na nossa plataforma, metade do público é homem e a outra metade é de mulheres. Isso deveria ser refletido na empresa, mas não é uma realidade.

Acredito que em alguns anos isso vai ser mudado, mas não começa na faculdade, não começa no curso técnico. É algo que dever ser mudado desde a infância, e acredito que estamos caminhando para o caminho correto.

Quem consome mais serviços, homens ou mulheres?

Na verdade, 60% dos nossos clientes são mulheres, 40% homens. Em termos profissionais, esses números se invertem. Há mais profissionais homens do que mulheres. Precisamos refletir isso no desenvolvimento da plataforma. Queremos ter mais mulheres gerentes de produto, designers, programadoras, para trazer essa vivência para dentro da empresa.

Quais são os serviços profissionais que as mulheres oferecem dentro da plataforma?

Temos mulheres prestando todos os tipos de serviço na plataforma, desde os mais tradicionais até alguns que não são tão ocupados por mulheres. Temos a história incrível da Marie, imigrante do Haiti, que veio para São Paulo e criou uma pequena agência de serviços de construção. Ela faz o serviço e emprega homens e mulheres para trabalhar com ela. A avaliação dela é incrível.

O GetNinjas é assim

  • Fundação

    2011

  • Funcionários

    Cerca de 100

  • Volume de transações

    R$ 400 milhões por ano

  • Serviços na plataforma

    200 tipos

  • Países

    Brasil e México

  • Profissionais cadastrados

    1 milhão

Medo de ladrão

UOL - Quais são as características do consumidor brasileiro e o que os diferencia dos outros mercados?

Eduardo L´Hotellier - O consumidor brasileiro e o mexicano são muito parecidos. A diferença está entre brasileiros e europeus e americanos. Uma das principais questões dos consumidores da América Latina é em relação à segurança.

Existe uma crise de segurança enorme em todos esses países. É a primeira questão que todos pensam ao contratar [um serviço] online. "Será que esse profissional irá fazer algum mal a mim e à minha residência, à minha família?" Os americanos e os europeus estão mais preocupados com valor, com a qualidade do serviço. Por isso, estamos investindo em segurança.

Como funciona esse investimento em segurança?

O profissional, ao entrar na plataforma, faz uma foto dos seus documentos, envia e internamente fazemos a aprovação ou não daquele profissional. Depois buscamos avaliação do serviço prestado para entender como está sendo o comportamento desse profissional. Bloqueamos qualquer profissional que não tenha comportamento adequado dentro da plataforma.

Como funciona essa avaliação?

Checamos os documentos, conferimos em algumas bases para buscar os antecedentes e vemos algum comportamento de uso. Por exemplo, se o celular informado já foi usado por outro profissional que foi bloqueado, se aquele email foi utilizado. Também temos uma inteligência e, com isso, mantemos na plataforma os profissionais que acreditamos serem os adequados.

E as avaliações dos serviços?

Os clientes avaliam esses profissionais, dando uma nota de uma a cinco estrelinhas e escrevem um comentário falando a respeito daquela avaliação, enaltecendo os pontos positivos e fazendo as críticas, quando convém alguma crítica.

Os clientes têm acesso a esse histórico de avaliação e podem decidir se aquele profissional é o mais adequado. É transparente para os dois lados, e isso gera segurança também para os dois lados.

E como a empresa atende as reclamações?

Na verdade, o consumidor, quando tem algum problema, reclama com todo mundo, tanto com o profissional quanto com a plataforma, quanto nos fóruns públicos. Temos um ótimo serviço de atendimento ao consumidor e, sempre que é preciso, nossa equipe está disponível para mediar conflitos.

Na maioria das vezes, é um mal-entendido; o cliente falou A, o profissional entendeu C, e o correto seria o B. A plataforma entende esses dois lados, conversa com o cliente, conversa com o profissional, e na maioria absoluta das vezes, conseguimos um acordo entre os dois lados.

Marcelo Justo/UOL Marcelo Justo/UOL

A lei sobre segurança de dados é necessária, mas o "tecniquês" dela está causando alguns atritos na Europa. Os cidadãos precisam ter o controle da segurança sobre os seus dados, mas também deve haver maneiras de as empresas conseguirem atingir seus objetivos e continuar rodando o seu negócio.

Eduardo L´Hotellier

Festa do skate

UOL - Quais os serviços mais procurados dentro da plataforma hoje?

Eduardo L´Hotellier - São os relacionados à reforma, principalmente pequenos reparos. Todo mundo algum dia vai precisar contratar algum profissional de reforma, terá um problema de encanamento, elétrico ou vai precisar fazer uma pintura. Sabemos que é muito difícil encontrar bons profissionais.

Ao mesmo tempo, há uma massa muito grande de profissionais querendo trabalhar sem ter uma plataforma que divulgue os seus serviços e preze pela meritocracia, porque no GetNinjas o profissional, após fazer um serviço, é avaliado. Um bom profissional fica dentro da plataforma e, com isso, consegue mais clientes.

Quais foram os serviços mais diferentes que passaram pela plataforma?

Tivemos vários. Todo o final do ano começa a ter uma grande procura por Papai Noel, pessoas que se vestem de Papai Noel e vão para pequenas reuniões familiares, pequenas lojas, pequenos shoppings. É um serviço curioso que virou recorrente do final do ano.

Outro foi o feedback que recebemos de um cliente sobre o sucesso da festa de seu filho. Ele contratou um professor de skate para uma festa infantil. Faz todo o sentido, a criançada hoje quer uma coisa diferente, uma coisa mais radical. Nem todos querem o tradicional palhaço ou mágico.

Quais são os próximos planos de expansão?

O nosso mercado ainda é 99% offline. Temos muito a construir no Brasil e no México. Está nos nossos planos ir para outros países da América Latina, mas o foco ainda é e será por muito tempo crescer nesses dois países, preferencialmente no Brasil, onde começamos, onde somos fortes, onde entendemos de forma plena a cultura do país. Há espaço para multiplicar esse tamanho da nossa plataforma por 10, 20, 30 vezes nos próximos anos.

E aporte de investimentos?

Estamos sempre abertos a conversar com potenciais parceiros que sonham, querem sonhar esse projeto conosco, mas a empresa hoje já é lucrativa, está crescendo. Se vier um aporte nos próximos meses, é para acelerar ainda mais o crescimento, e não para fechar o caixa porque já passamos aí dessa fase.

É verdade que, para começar, vocês compraram uma plataforma na Índia por US$ 700?

É verdade. Logo no comecinho do GetNinjas, eu não tinha tempo de desenvolver a plataforma do zero. Nesse momento, comprei uma plataforma pré-desenvolvida na Índia, lancei e foi o suficiente para testar o mercado.

Era uma boa plataforma? Em hipótese alguma, mas pelo menos consegui testar o mercado e, logo depois, reconstruí a plataforma com uma tecnologia muito mais robusta, com usabilidade muito melhor e, com isso, conseguimos crescer muito rapidamente.

Sem arrogância

UOL - Quais foram os principais desafios no início do GetNinjas?

Eduardo L´Hotellier - Ser um engenheiro tem suas desvantagens, e uma delas é achar que sabe demais. Na primeira plataforma que foi ao ar, não houve uma conversa com os prestadores de serviço para saber o que eles queriam. Tirei muito da minha cabeça e percebi depois que a realidade desses profissionais era completamente diferente da minha.

No primeiro ano, cometemos vários erros que poderiam ter sido evitados com uma simples conversa, diretamente, um a um, com os profissionais cadastrados. Nesse começo, eu logo aprendi que, antes de fazer qualquer coisa, é preciso conversar com os dois lados, clientes e profissionais.

As correções deram certo?

Não adiante olhar só o dado, não adianta olhar o que está acontecendo nos Estados Unidos, na China, em outros países do mundo. Não adianta só a inspiração do time. É preciso realmente conversar com o cliente, mostrar um protótipo, testar a solução, tirar dúvidas, perguntar, para entregar um produto que tenha valor.

Pode parecer óbvio quando se fala, mas é um erro muito comum de empreendedores não fazerem isso, porque o que eles sabem parece ser suficiente. Uma certa arrogância deve ser quebrada logo no começo da empresa.

Existe alguma restrição de oferta de serviço no app?

Obviamente serviços adultos e serviços ilícitos não são permitidos na plataforma. O nosso time de atendimento bloqueia qualquer anúncio suspeito de ser algo não familiar ou ilícito.

Quais deveriam ser os temas tratados na reforma tributária?

Como empreendedor e empresário, a dificuldade que se tem para pagar todos os impostos em dia é enorme. Com certeza, simplificação das guias é fundamental.

Essa complexidade é inimiga das empresas, principalmente empresas que estão nascendo, que têm toda uma dificuldade de encontrar ainda quem é seu público-alvo, seu cliente, seu profissional, melhorar o seu produto e seu serviço, e está gastando tempo dos fundadores ou do time financeiro para pagar o imposto em vez de gerar mais valor para pagar mais imposto.

O problema não é só o valor do imposto. Se fosse o mesmo valor, mas for mais simples, uma guia só, seria muito mais rápido. Fora que toda essa complexidade gera uma insegurança jurídica muito grande.

Que dicas práticas o senhor daria para quem quer seguir uma carreira de liderança?

Como temos alguns titãs da tecnologia, cria-se o falso mito de que não é preciso estudar. O caso do Mark Zuckerberg, que saiu de Harvard, do Bill Gates, que também saiu de Harvard, e o Steve Jobs que não se formou. As pessoas confundem o não ter se formado com o não ter estudado.

Bill Gates lê mais de um livro por semana há anos. Estudar é importante. Uma das maneiras mais práticas de ganhar esse conhecimento é fazer uma boa faculdade. Estude, independente se é formal ou de uma maneira informal. A partir disso, é muito mais fácil empreender, criar uma empresa, ou seguir na sua profissão que você escolheu.

GetNinjas, de onde surgiu esse nome?

Encontre o ninja. E ninja é o profissional que faz muito bem um tipo de serviço. Então, quando fala que a pessoa é ninja em alguma coisa, ela é muito boa, extraordinária naquela atividade.

Qual a sua opinião sobre a lei de segurança de dados?

É uma lei necessária, mas o "tecniquês" dela está causando alguns atritos na Europa onde ela foi implementada. As pessoas, cidadãos, precisam ter o controle da segurança sobre os seus dados, mas também deve haver maneiras de as empresas conseguirem atingir seus objetivos e continuar rodando o seu negócio.

Um exemplo que eu posso dar de um amigo que tem uma empresa na Europa. Um ex-funcionário pediu para a empresa deletar todos os registros que tinha sobre ele. Só que nesses registros havia mensagens trocadas pelo chat interno da empresa, que eram mensagens que deveriam constar ali, no histórico. Na interpretação estrita da lei, deveriam apagar, inclusive esses dados que, por segurança, a empresa deveria de certa forma manter. É preciso a um equilíbrio.

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