Banco de máscaras

Covid-19 ensinou que precisamos de estoque de máscaras para próximas pandemias, diz chefe da 3M

Beth Matias Colaboração para o UOL, em São Paulo Divulgação e Arte/UOL
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A covid-19 nos ensinou que o Brasil precisa de um banco de máscaras, assim como passaram a existir bancos de sangue após as guerras mundiais. Um bom estoque de proteção facial deve ser feito agora e será necessário para as próximas pandemias.

A avaliação é de Marcelo Oromendia, presidente da 3M Brasil, em entrevista exclusiva na série UOL Líderes. A empresa produz, entre outros itens, post-its, fitas adesivas e máscaras N95, usadas contra o coronavírus

Oromendia também diz que o brasileiro impressiona pela higiene pessoal ao escovar os dentes três vezes por dia, o que não é comum em outros países.

Na entrevista, ele afirma que o país tem condições de se tornar o maior fornecedor de produtos em geral para a América Latina, mas o principal entrave é o custo Brasil.

Engenheiro mecânico e industrial, o argentino Marcelo Oromendia está há 36 anos na 3M. Chegou ao Brasil no início de 2020, depois de ter passado uma temporada na China, com o desafio de criar um comitê de crise para enfrentar a pandemia.

Ouça a íntegra da entrevista com o presidente da 3M Brasil, Marcelo Oromendia, no podcast UOL Líderes. Também pode assistir à entrevista em vídeo com o executivo no canal do UOL no YouTube. Continue nesta página para ler o texto dos destaques da conversa.

Estoque de máscaras para próximas pandemias

UOL - Quais foram os principais aprendizados na pandemia?

Marcelo Oromendia - Tivemos muitos aprendizados. Assim como na Primeira e na Segunda Guerras Mundiais, o aprendizado para a humanidade foi que não poderíamos continuar sem bancos de sangue, agora aprendemos que não podemos continuar sem banco de máscaras.

Os chineses e os europeus começam a falar de "stockpile", que é ter máscaras armazenadas em grande quantidade em lugares diferentes, como hospitais, laboratórios, governos, empresas, apenas aguardando para a próxima situação. Não tenho nenhuma dúvida -e quem fala é a Organização Mundial da Saúde- de que vamos ter outras pandemias.

Espero que os governantes e as empresas aprendam que é preciso manter um "stockpile". Este é o momento porque temos máscaras disponíveis, não precisamos importar ou fazer loucuras para adquirir.

A beleza é que as máscaras não têm data de vencimento. É uma decisão política, mas também uma decisão pessoal das empresas.

Que setores da empresa foram mais impactados em 2020?

Temos presença em quase todos os países do mundo, com subsidiárias em 65 países. Quando a pandemia chegou ao Brasil, estávamos preparados porque conhecíamos o enredo do filme. Começou na China, quando tivemos o primeiro impacto, seguiu para Sudeste Asiático, Japão, Coreia, Tailândia, depois Europa, Estados Unidos e Brasil.

Em janeiro, quando ninguém falava da pandemia aqui, eu cheguei da China com o desafio de criar um comitê de crise e definir as nossas prioridades.

Identificamos duas prioridades críticas: proteger nossos funcionários e a cadeia de fornecimento para proteger os clientes. Isso foi um golaço. Imediatamente, antes da imposição da quarentena, fizemos mudanças nas fábricas, como distanciamento de pessoas, aumento da produção de respiradores e máscaras N95 —somos líderes mundiais de N95— e nos preparamos para enviar 1.500 funcionários para casa.

Abastecemos a cadeia de produção com matérias-primas. Sabíamos que as fitas de empacotamento seriam muito procuradas por causa do e-commerce.

Mais de 80% das caixas no Brasil são fechadas com fitas 3M. A fabricação das nossas fitas em Manaus [AM] e Itapetininga [SP] disparou, mas tínhamos as matérias-primas para fornecer isso.

Isso aconteceu também com esponjas, materiais de limpeza. As pessoas que antes compravam Scotch Brite só para limpar mudaram o conceito e passaram a comprar para proteger a família.

Por que então faltaram máscaras no mercado brasileiro?

Para montar uma fábrica de máscaras, são necessários cerca de 18 meses e muitos milhões de dólares. Com pequenas modificações, com inovação, criatividade e com mais funcionários, triplicamos a nossa produção. Não foi suficiente? Claro que não foi suficiente.

Imagine que convido você para ir jantar em casa com a sua família, sem pandemia. E você aceita. Em cima da hora, você pede para levar os vizinhos, e eu aceito. Porém, você chega com todo o seu condomínio, com 500 famílias. Não tenho a capacidade de alimentar tanta gente, nem sequer com petiscos.

Foi isso que aconteceu aqui com as máscaras. A demanda aumentou 20 vezes, e é impossível atender por mais que a fábrica esteja esperando. Nós triplicamos, mas aumentou muito mais. Isso foi uma dor porque foi totalmente impossível de prever.

O governo de São Paulo confiscou produtos da 3M no auge da pandemia. É uma atitude justificável?

Essa é a primeira pandemia da minha vida e deve ser a primeira na vida dos governadores, governantes e de todos os políticos. Só não é a primeira pandemia para a 3M. Com seus quase 120 anos, a empresa passou pela gripe espanhola.

A 3M esteve disponível desde o primeiro dia porque sabíamos o que estava acontecendo no mundo inteiro, principalmente o que já tinha acontecido na China. Conversamos e disponibilizamos os números da nossa produção tanto para o governo federal como para os governos estaduais.

As primeiras semanas foram de pânico. Todo mundo saiu para comprar tudo porque parecia que o final do mundo estava chegando. Imagino que o mesmo tenha acontecido nas áreas governamentais. Por boa intenção, os governantes tentaram proteger a população dos estados que governam.

No caso do estado de São Paulo, tínhamos uma licitação. Em contato direto com o governador, 72 horas antes [do confisco], ele me pediu para incrementar a compra em meio milhão de máscaras. Dissemos a ele que podíamos. Não alteramos nenhum preço desde o início da pandemia até agora. Nem mesmo os respiradores, apesar de o dólar ter subido.

Surpreendentemente, 72 horas depois, tivemos o confisco com a presença de sete canais de televisão. Uma situação desagradável, até porque em nossa fábrica tínhamos 450 mil máscaras prontas para serem enviadas a Brasília. Um pedido do Ministério da Saúde, cujo titular era o ministro [Luiz Henrique] Mandetta. Todos aprendemos com essa pandemia. Os governos também. A prova é que não houve mais confiscos depois disso.

O Brasil está preparado em recursos de saúde para outras ondas do coronavírus?

Estamos preparados. Nossas fábricas do Brasil produzem três vezes mais do que quando começou a pandemia. É importante, porém, fazer os estoques, mas a decisão é de nossos clientes, sejam públicos ou privados. Muitas instituições de saúde, principalmente as privadas, estão preparando seus estoques.

Agora se a demanda crescer 500% ou 5.000%, vamos ter que importar. Sabemos o que acontece, as fronteiras fecham, a demanda é enorme. O aprendizado existe.

A 3M Brasil é assim:

  • Fundação

    1902 (mundo); 1946 (Brasil)

  • Funcionários

    96 mil (mundo); 3.400 (Brasil)

  • Fábricas e escritórios

    70 no mundo, incluindo o Brasil

  • Centros de inovação (mundo)

    55

  • Tipos de produtos

    55 mil

  • Faturamento (2019)

    R$ 4,3 bilhões (Brasil); US$ 32,1 bilhões (R$ 175,8 bilhões, mundo)

  • Participação do Brasil nos resultados

    Entre as 10 principais operações da 3M no mundo

  • Principais concorrentes

    Basf, Dupont, Johnson & Johnson e Norton

Brasileiro escova muitos os dentes

UOL - O senhor morou algum tempo na China. Qual é a diferença entre os dois mercados consumidores?

Marcelo Oromendia - A limpeza do brasileiro é algo impressionante. Não só a limpeza dos lares, mas também a higiene pessoal. Quando eu falo a um estrangeiro que o brasileiro escova os dentes três, quatro, cinco vezes ao dia, ninguém acredita. Eu mesmo não acreditava, então conversei com a presidente da Colgate/Palmolive, e ela confirmou. É incrível.

O mesmo acontece aqui com o tema da limpeza doméstica, com as esponjas. O nosso negócio de esponjas, em plena pandemia, cresceu 40% porque as pessoas perceberam que não era só uma questão de limpeza, e sim de proteção. A marca Scotch Brite disparou.

Na China, é bem diferente neste sentido. Meu trabalho lá foi muito mais orientado na área automotiva, aeroespacial, que é o foco que temos na China.

E a forma de fazer negócios, também é diferente?

Muito. Primeiro, antes de falar de mercado, vamos falar de cultura. Eu sou argentino e gosto muito do Brasil. Passamos férias no Brasil desde que meus filhos —eu tenho cinco filhos— eram pequenos.

Florianópolis, em Santa Catarina, era o paraíso para nós. Mas eu não sabia que brasileiros e argentinos eram tão primos-irmãos. No Brasil, estamos em casa. Temos diferenças, claro, como os primos têm diferenças, mas as coisas que nos aproximam são muito maiores.

A forma de fazer negócio na China e no Brasil é bem diferente. No Brasil, damos muita importância aos relacionamentos, à história, às parcerias a longo prazo, à palavra. Na China, apesar de ser um país asiático, não é assim. Na China, as coisas são muito mais imediatas. Em cada operação, esquecemos o passado. O importante é o agora.

Essas coisas não acontecem no Brasil. Conservamos muito a tradição, a história de quem trabalhou com meu pai e agora vai trabalhar comigo. A história não se esquece e não se perde aqui. Mas a forma de tomar decisões, na China, é muito mais rápida. O Brasil é um pouco mais burocrático, não tanto quanto a Índia.

Custo Brasil impede país de ser grande exportador

UOL - Por que o Brasil ainda não se posicionou como o player distribuidor de produtos para a América Latina?

Marcelo Oromendia - Se nós olharmos, o Brasil, está de costas para a América Latina. Ele olha o tempo todo, historicamente, para um mercado de 220 milhões de habitantes, quando o mercado real é de quase 600 milhões de habitantes. Quais são as travas que temos hoje? São as relacionadas ao custo Brasil.

Conversando com amigos da área de computação, a maior dor é fornecer impressoras para o Uruguai vindas da China em vez do Rio Grande do Sul. Não tem nenhum sentido. Se olharmos o Brasil, temos escala, manufatura, infraestrutura (rodovias, portos aeroportos), talentos, universidades entre as melhores do mundo, patentes, institutos de pesquisa por todo o país.

Não temos uma base positiva que nos ajude a exportar. A 3M já exporta há muito tempo. De Manaus, exportamos fita isolante elétrica para o mundo inteiro. Os alemães hoje estão utilizando fitas feitas em Manaus. Poderíamos exportar muito mais. Nossas fábricas estão trabalhando com 60% a 70% da capacidade produtiva. Poderíamos duplicar isso. Imagine o impacto que teria na contratação de mão de obra brasileira.

A 3M possui cerca de 25 mil produtos diferentes no Brasil. Nosso objetivo é fornecer regionalmente, e o Brasil, na expectativa da 3M, tem condições de se transformar em um fornecedor regional. E isso deve acontecer com as reformas do governo.

Com a pandemia, houve muitos questionamentos sobre a globalização. Qual sua opinião a respeito, inclusive sobre a China?

Nesse mundo globalizado, 59 países fecharam suas fronteiras em 30 dias. O mundo globalizado estourou, acabou. Outras multinacionais tiveram que fechar suas unidades porque não havia matéria-prima. Suas próprias subsidiárias não podiam exportar. A China era um desses países que se fecharam. O mundo globalizado virou um mundo muito mais regionalizado.

Os industriais não vão esquecer a dificuldade que tiveram. Eu prefiro sinceramente pagar 2% ou 3% a mais para um fornecedor do Rio Grande do Sul ou do Ceará do que trazer o produto do Oriente ou da Europa.

O parceiro do Rio Grande do Sul vai manter o fornecimento. Ele não precisa de um governo que aprove, não precisa de barcos, não tem problemas com furacões, terremotos. Hoje o que vale para mim e para muitos empresários é ter um custo maior, mas mais tranquilidade.

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Na pandemia, 59 países fecharam suas fronteiras em 30 dias. O mundo globalizado acabou. Multinacionais tiveram que fechar suas unidades porque não havia matéria-prima. Suas próprias subsidiárias não podiam exportar. A China era um desses países que se fecharam. O mundo globalizado virou um mundo muito mais regionalizado.

Marcelo Oromendia, Presidente da 3M Brasil

Maioria dos clientes não voltará às lojas físicas

UOL - Qual a expectativa da 3M para 2021?

Marcelo Oromendia - Eu sou otimista, mas também realista. Minha parte otimista está baseada nos dados. Acreditávamos que a recuperação seria mais devagar do que realmente está acontecendo. Nos últimos três meses [outubro, novembro e dezembro de 2020], a recuperação acelerou. Em algumas áreas, estamos melhor do que em 2019.

Acredito que muitos setores da economia vão mudar. Áreas como a automotiva, aeroespacial, turismo estão voltando devagar, e isso vai requerer alguns ajustes. Algumas companhias estão quebrando, muitos terão que se reinventar. Nós também teremos que fazer isso. Tirar recursos de uma área e colocar em outra..

E quais os desafios para os próximos anos?

Temos uma distribuição muito grande e muito tradicional. Muitas empresas abraçaram o conceito do e-commerce, mas outras não. E infelizmente essas outras não irão sobreviver se não se atualizarem de forma muito rápida.

Nosso trabalho é ajudá-los a se atualizar, mas é sempre uma decisão da liderança, dos donos dessas companhias. Sabemos que esse é o caminho, olhando para o futuro, que é a China, a Europa, o sudeste asiático, os Estados Unidos.

Sabemos que o consumidor voltará para as lojas, mas fará uma compra combinada, parte na internet e outra na loja física. Se nossos distribuidores não se prepararem, não vão sobreviver.

E quais serão os efeitos residuais da pandemia?

Conversei com o presidente do Google, e ele me disse que, em 50 dias de pandemia, avançamos cinco anos em aceitação das técnicas digitais. Não foi só o comércio. Falamos de avaliações médicas, de reuniões online.

Algumas pessoas irão voltar para as lojas, mas a maioria não, porque é muito mais fácil, limpo, simples. Você não precisa ter um MBA para fazer uma compra online, só precisa ter um acesso, um critério para fazer a sua pesquisa. Isso mudou muito mesmo.

Outra coisa que mudou muito é a informação do consumidor. Hoje ele é mais ciente de que muita informação está lá, que precisa menos dos vendedores para tomar uma decisão. O consumidor tem muito mais poder do que tinha há dez meses.

No futuro, pós-pandemia, acredito também que termos um híbrido entre visitas presenciais e essas discussões virtuais, porque é muito mais rápido. Muita coisa vai ser feita em forma digital, treinamento, primeira aproximação. Somos latinos e para nós o contato pessoal é muito importante, mas ele irá diminuir.

Outra área que está ganhando força é a do "faça você mesmo". Com mais tempo para arrumar a casa, muitas pessoas, inclusive eu, descobriram habilidades que antes não sabiam que tinham. Foi uma área de nossas vendas que disparou também.

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