Favela S/A

Conglomerado de 23 empresas que só atua em comunidades faz riqueza produzida na quebrada ficar por lá

Henrique Santiago Colaboração para o UOL, de São Paulo Fernando Moraes/UOL

Para Celso Athayde, empresário de 57 que criou a CUFA (Central Única das Favelas), a riqueza produzida pelos pobres deve ser compartilhada entre eles.

Em 2015, essa filosofia deixou de ser ideia e ganhou vida: nascia a Favela Holding, uma empresa-mãe com participação em 23 empreendimentos focados no desenvolvimento do cotidiano dos moradores de favela, desde a Comunidade Door, de instalação de placas publicitárias, até a Favela Log, de entrega e distribuição de produtos.

Emprega diretamente 60 funcionários, enquanto as 23 companhias em que que ela tem participação ocupam direta e indiretamente 18 mil profissionais. Juntas, atendem 9,5 milhões de pessoas que vivem em comunidades espalhadas por mais de 500 cidades do Brasil. A expectativa é que o conglomerado eleve o faturamento em 12% neste ano e chegue a R$ 40 milhões.

A Favela Holding faz parcerias com empresários que queiram investir nas comunidades. As marcas apresentam a ideia, e as empresas do grupo idealizam o projeto, tendo como premissas a aposta no potencial dos empreendedores e a capacidade de consumo de quem vive ali. Não é pouca coisa: os 13,6 milhões de moradores desses locais movimentam R$ 119,8 bilhões por ano, segundo o Data Favela, braço de estudos da holding.

Como é tudo pensado para que a geração de riquezas fique nas favelas, a divisão dos resultados é de 50% para cada lado.

Fernando Moraes/UOL

Não há outra maneira de fazer a revolução neste país se não for por meio de uma postura agressiva daqueles que sofrem as consequências das diferenças sociais. Ou se divide com a favela toda a riqueza produzida por ela ou vamos continuar dividindo as consequências da miséria que a elite produziu até aqui.

Celso Athayde, CEO da Favela Holding

A favela tá on

Em cinco anos de atuação, as empresas do grupo já se aliaram a gigantes como Uber e Facebook. As marcas começaram a olhar para a favela com atenção só nos últimos anos, diz o CEO da Favela Holding. Elas passaram a enxergar a possibilidade de manter uma relação de trocas, não de exploração de mercado, diz ele. Para o empresário, a comunicação ainda é o principal obstáculo para empresas que queiram entrar nas comunidades.

A favela não quer mais ser catequizada, quer ser a melhor versão dela mesma e só vai se comunicar com a empresa que melhor fala a sua língua. Não adianta usar certos ícones pretos para falar com a massa. Aquele ícone, apesar de preto, não necessariamente fala para a massa preta. Ele pode ter um tipo de comportamento, de postura e de linguagem que fazem parte de outro mundo. [As empresas] precisam entender melhor esse território para ter vantagem sobre seus concorrentes
Celso Athayde, CEO da Favela Holding

A mais nova parceria da holding, estabelecida em outubro, é exemplo de como falar a língua dos moradores. É a operadora de telefonia móvel Alô Social, que vende pacotes de dados não usados pela empresa de telecomunicação TIM, um serviço permitido pela Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações).

Para o consumidor, os planos saem a partir de R$ 19,90 e permitem acumular os dados e minutos não utilizados para o mês seguinte. Os vendedores ganham de duas formas: com a venda dos chips e 5% sobre as recargas de linhas ativas. Até junho de 2021, a expectativa é chegar a 4 milhões de clientes.

Habilidades sem diploma

Segundo o Data Favela, o gene empreendedor está na veia do morador de favelas. Um estudo mostrou que 35% deles sonham com o negócio próprio. Desse percentual, três em cada quatro estão confiantes nessa possibilidade no futuro.

Para o presidente do Instituto Locomotiva, Renato Meirelles, o ímpeto empreendedor da favela existe. Mas nasce da falta de oportunidade, após exclusão do mercado formal de trabalho. São empresários que aprendem a se virar na dificuldade e, a partir da inclusão em um modelo de negócio social, elevam a qualidade de vida de suas famílias.

"Essas pessoas desenvolveram habilidades que são desejadas em todas as grandes empresas no mundo: trabalho em equipe, lidar com diversidade e adversidade, capacidade de se virar em situações de crise. Isso explica muito do sucesso dos empreendedores ligados à Favela Holding", avaliou.

Ele andava a pé, mas já conseguiu comprar um carro

Quando conheceu a Comunidade Door, Alessandro Costa, 40, procurava emprego havia três anos. Ele era porteiro e fora demitido. Passou a vender roupas com a esposa, mas encarava meses de aperto financeiro com os cinco filhos na favela de Vila Prudente, zona leste de São Paulo. Começou há um ano e meio, por indicação de um primo, a trabalhar instalando placas publicitárias em casas nas favelas.

Nos primeiros meses, carregava nas costas dez placas de 1,70 m de comprimento por 1 m de altura. Vez ou outra conseguia carona de amigos. Na maior parte do tempo, andava a pé 40 minutos para ir ao emprego e voltar dele. Em média, ele coloca 50 placas por mês nos muros de residências. Por cederem o espaço, os moradores ganham um valor simbólico.

Com o novo trabalho, Costa consegue uma renda mensal em torno de R$ 3.000, o que lhe permitiu comprar um carro. Agora, dispensa as longas caminhadas: usa a Fiorino ano 1993 para se locomover e trabalhar.

Imagina andar naquele solzão com aquelas placas pesadas. Às vezes, dava uma 'atrasadinha' [na entrega do trabalho]. Com carro, eu faço tudo mais rápido. Agora eu imploro para chegarem mais placas todos os meses.
Alessandro Costa, instalador de placas

Fernando Moraes/UOL
Arquivo Pessoal/Aline Barbosa

Microinfluenciadores da quebrada

Depois que deu à luz seu segundo filho, a pedagoga Aline Barbosa, 31, deixou de ser contratada por empresas. Obrigada a abandonar o trabalho como professora do ensino infantil, passou a trabalhar em decoração de festas infantis. Há três anos, aventurou-se como criadora de conteúdo digital, produzindo publicações sobre maternidade e representatividade negra. Hoje, a mãe de quatro filhos e moradora em Loteamento do Bosque, uma favela de Porto Alegre, fez da vida de influenciadora digital uma profissão.

A vontade de conversar com um público maior veio com o lançamento em junho deste ano da Digital Favela, plataforma da Favela Holding com influenciadores das favelas, que têm entre 1.000 e 100 mil seguidores. Com mais de 10 mil cadastrados, a rede faz a ponte entre marcas interessadas em patrocinar campanhas online e personalidades da quebrada que atingem 10 milhões de moradores de favelas em todo o Brasil.

Aline é uma delas. Sua primeira campanha patrocinada, vista por seus 15,9 mil seguidores, foi sobre ensino a distância para o Alicerce Educação. Estrelou ainda uma ação para o banco Santander que explica como funciona o sistema de pagamento Pix. Somando as suas campanhas, Aline recebeu R$ 750 para divulgar três posts no feed e uma sequência de quase 20 stories. Ela só conseguiu viver das redes sociais em março deste ano, com renda mensal de R$ 1.800. Para aprimorar o trabalho, começou a cursar faculdade de Marketing Digital.

Eu só consumo de empresas em que eu me enxergo. Estou em um momento em que não consigo fechar os olhos para isso. [A aposta em influencers negros] tem que ser constante, não é apenas fazer um trabalho uma vez com um negro. É fazer isso sempre e não lembrar da gente só em novembro [mês da Consciência Negra]. Existimos o ano inteiro
Aline Barbosa, pedagoga e influenciadora digital

Nos primeiros dias de novembro, foi a vez de outra influenciadora conduzir uma campanha do Digital Favela. Danubia Santos, estudante de Publicidade e Propaganda de 34 anos, também falou a seus 2.400 seguidores no Instagram sobre o Pix, a pedido do Santander. Atuando nas redes sociais desde 2018 com conteúdos sobre penteados trançados para mulheres negras, a moradora da Favela do Sussuarana, em Salvador (BA), quer mesmo é trabalhar com produtos de beleza e estética negra.

A estratégia de recorrer a microinfluenciadores funciona porque eles conversam com um público que conhecem, diz Celso Athayde. O número de seguidores pode ser relativamente baixo, mas são pessoas próximas, diferentemente do que ocorre com um nome famoso, que desconhece a realidade daquele espaço. "Quem está falando tem territorialidade e propriedade."

Fernando Moraes/UOL

Autoestima sem preço

Depois que conheceu o empreendedorismo da Favela Holding, Fernanda Messias, 38, passou a enxergar a favela de outra forma. Antes, ela se via com o olhar de quem deprecia moradores da comunidade ("para alguns 'visionários', quem desvaloriza o bairro somos nós"), mas, agora, a situação é outra: os favelados são a "potência" da quebrada.

Com a covid-19, pensou que ela, o marido e os quatro filhos passariam fome, como ocorreu com alguns dos vizinhos da Favela do Boqueirão, na Saúde, zona sul de São Paulo.

Sem registro em carteira há cinco anos, a autônoma viu na pandemia um momento para nova estratégia de trabalho. No início, revendia produtos da Natura em parceria com o serviço de entrega da Holding, o Favela Log. Teve que interromper, porque os clientes consumiam menos itens de beleza e cuidados pessoais.

Ela passou a vender tigelas, chinelos, doces e itens de cozinha. Mas focou não só os moradores da favela, como estava acostumada. Usou as redes sociais para se aproximar das classes B e C, como moradores do bairro vizinho de Vila Mariana. E adicionou uma pitada de criatividade. Para entregar em Heliópolis, por exemplo, usa o ponto de encontro do Uber feito em parceria com a CUFA.

"O que as pessoas me pedem eu vendo, mesmo que eu não tenha. Eu vou a alguns lugares, tiro fotos, pergunto se [clientes] têm interesse, compro, entrego e dou uns dias para me pagarem. Pensei que ou eu seria uma sobrevivente ou morreria nessa pandemia. Precisei me reinventar", explicou.

Se a renda mensal de Fernanda era de R$ 250 antes do coronavírus, hoje ela ganha dez vezes mais. Para ter um ponto de venda físico, fez da garagem uma loja. É lá que ela e o marido pretendem abrir uma franquia de uma das empresas da Holding. Estão em dúvida se será da agência de viagem Favela Vai Voando ou do restaurante Box Mineiro.

Eu quero que as pessoas daqui [da Favela do Boqueirão] acreditem no seu potencial. Que batam no peito e falem: 'eu sou favelado, mas sei falar inglês ou alemão'. Algumas pessoas acham que não podem ir até certo lugar, que não é possível porque já é outro patamar. Eu quero ir muito longe, o céu é o limite.

Fernanda Messias, Empresária

A favela que impediu o Brasil de quebrar

Athayde chama quem não entende a favela de "pessoas do asfalto". Para quem não compreende essa realidade, diz, é difícil notar as diferenças entre o empreendedorismo da favela e o da classe média.

"Não adianta dizer para o favelado separar o que é [dinheiro] de caixa e o que é de casa. Se for juntar dinheiro para empreender, não vai juntar nunca. [Quando vai empreender] A classe média faz até pesquisa para entender que impacto terá no meio ambiente. A favela não empreende pensando nos próximos cinco anos", enfatizou.

Para Renato Meirelles, foi a favela que impediu o Brasil de quebrar na pandemia. "A pessoa que recolhe lixo, a auxiliar de enfermagem, o cobrador e o motorista do ônibus são moradores de favela. As classes A e B só conseguiram entrar em quarentena porque os moradores de favela continuam trabalhando."

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