Minha Casa perto do fim?

Programa habitacional popular faz 10 anos com menos dinheiro e sob pressão para mudar nome e regras

Leda Antunes Colaboração para o UOL, no Rio Eduardo Anizelli/Folhapress

O programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) foi criado em 2009 para facilitar o acesso à moradia no Brasil. O programa subsidia a compra da casa própria para famílias de baixa renda e oferece juros menores no financiamento do imóvel para famílias com renda mensal até R$ 9.000.

Marca dos governos petistas, o MCMV chega aos 10 anos desidratado, com menos verba, alcance menor e sob pressão para mudar de regras e de nome.

Veja a seguir como nasceu o programa, como funciona, resultados alcançados, situação atual e perspectivas para o futuro.

Eduardo Anizelli/Folhapress
Leonardo Wen/Folhapress

Contra a crise de 2008 e a falta de moradia

O ano era 2009. A economia brasileira ia bem —havia crescido 6,1% em 2007 e 5,1% em 2008. Esse crescimento era impulsionado pela construção civil, mas só as famílias de média e alta renda estavam sendo atendidas, segundo Ana Maria Castelo, coordenadora de Estudos da Construção Civil do Ibre/FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas).

"A crise financeira que atingiu os Estados Unidos em 2008 gerou uma preocupação sobre o que ia acontecer com a oferta de crédito no Brasil", afirmou a pesquisadora.

Num primeiro momento, o governo do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva reforçou a oferta de crédito imobiliário nos bancos públicos. Em março, anunciou a criação do Minha Casa Minha Vida, com dois objetivos centrais:

  • combater a falta de moradia entre a população de baixa renda
  • estimular a atividade econômica e conter os efeitos da crise mundial de 2008

O programa tinha como meta construir 1 milhão de moradias para a população de baixa renda, ao custo de R$ 34 bilhões em empréstimos e subsídios (R$ 60,8 bilhões em valores atuais, corrigidos pela inflação).

O programa foi concebido para ser uma política anticíclica, para combater os efeitos recessivos de uma crise econômica. Ao mesmo tempo, visava atender uma demanda de moradia das famílias de baixa renda. Apesar do crescimento da economia nos anos anteriores, essas famílias não tinham acesso ao mercado de crédito.

Ana Maria Castelo, Coordenadora de Estudos da Construção Civil do Ibre/FGV

Arte/UOL Arte/UOL
Pedro Ladeira/Folhapress

Mais pobres perderam espaço nos últimos 5 anos

As famílias mais pobres, atendidas pela faixa 1 do Minha Casa, com subsídio integral do governo, foram o foco do programa nos cinco primeiros anos (2009 a 2013). De todos os contratos fechados, 80% foram para essa parcela da população, com 1,5 milhão de moradias.

Nos cinco anos seguintes, o programa ficou concentrado na faixa 2, que recebe menos subsídio do governo e mais do FGTS. Nesse período, foram 1,6 milhão de unidades para a faixa 2 e apenas 387 mil para a faixa 1.

Isso aconteceu porque o aumento do rombo nas contas públicas e as restrições orçamentárias levaram a uma queda significativa no volume de subsídios. "À medida que o subsídio do Orçamento foi diminuindo, a faixa 2 ganhou mais peso", disse Ana Maria Castelo, da FGV.

Até o final de julho de 2019, segundo dados do próprio ministério, não houve nenhuma contratação para a primeira faixa do programa. O cenário deve permanecer assim até o final do ano, segundo especialistas e representantes do setor da construção.

De onde vêm os recursos

Para as famílias mais pobres, que se encaixam na faixa 1, o governo federal banca 90% do valor do imóvel —o recurso sai do Orçamento da União. Há também recursos vindos do FGTS para subsídio em outras faixas e para o financiamento de obras.

Resultados alcançados

De maio de 2009 a julho de 2019

  • Contrato para construção de 5,7 milhões de unidades
  • 4,3 milhões de unidades entregues
  • 222 mil unidades em construção
Arte/UOL Arte/UOL
Arte/UOL Arte/UOL
Alf Ribeiro/Folhapress

Impactos na economia do país

O Minha Casa teve impactos positivos na oferta de moradia e na economia do Brasil na opinião de representantes do setor da construção civil, incorporadoras, mutuários e especialistas em habitação.

Segundo eles, o programa foi essencial no enfrentamento da crise mundial de 2008 e passou a ter um papel importante para atenuar os efeitos da crise registrada desde 2014 no Brasil, graças à sua capacidade de gerar renda, emprego e arrecadação para o governo.

Sem o Minha Casa, o segmento da construção e, particularmente, o mercado imobiliário registrariam impactos negativos ainda maiores que os observados nos últimos anos

Luis Fernando Mendes, economista da Câmara Brasileira da Indústria da Construção

O programa ajudou a sustentar a atividade nesse período. Não conseguiu impedir a queda, mas a atenuou. Mas essa capacidade foi perdendo força à medida que as contratações foram caindo e no cenário de atraso de pagamentos

Ana Maria Castelo, coordenadora de Estudos da Construção Civil do Ibre/FGV

Empregos

As obras geraram 3,5 milhões de empregos diretos desde o início do programa até dezembro de 2018, cerca de 390 mil empregos por ano, em média, segundo dados da CBIC (Câmara Brasileira da Indústria da Construção).

Arrecadação

Foram gerados R$ 105,6 bilhões em tributos diretos e outros R$ 57,8 bilhões em impostos indiretos, somando R$ 163,4 bilhões, de maio de 2009 a junho de 2018, segundo relatório da FGV para a Abrainc.

Considerando todo o ciclo produtivo ao longo de nove anos, a arrecadação proporcionada pelo Minha Casa superou a soma dos subsídios dados no período.

Mercado imobiliário

O programa tem um peso importante no mercado imobiliário. Em 2018, representou 75% das unidades habitacionais lançadas e 78% das unidades vendidas, segundo informações da Abrainc (Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias).

Edson Lopes Jr./UOL

Falta de moradia persiste

O programa Minha Casa não conseguiu reduzir o déficit habitacional no Brasil. Esse indicador mostra quantas novas casas deveriam ser construídas para resolver quatro problemas:

  • habitação precária
  • muitas pessoas da mesma família vivendo sob o mesmo teto
  • gasto excessivo com aluguel (mais de 30% da renda)
  • excesso de pessoas vivendo na mesma área

Segundo um relatório técnico da FGV para a Abrainc (Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias), o Minha Casa ajudou a reduzir o número de famílias vivendo em moradias precárias, mas não conteve a alta no número de famílias que gastam demais com aluguel.

As famílias em pior situação são aquelas que ganham menos de um salário mínimo (menos de R$ 998, em 2019) ou entre um e três salários mínimos (entre R$ 998 e R$ 2.994, em 2019). Elas representam 91,7% do déficit total de moradia e 100% entre os que gastam demais com o aluguel ou vivem em lugares improvisados.

Segundo o relatório da FGV, isso indica que o programa não tem sido eficaz em atingir essas famílias. Para especialistas, representantes dos mutuários e do setor da construção, esse cenário significa que o Minha Casa deveria continuar.

Eduardo Knapp/Folhapress

O que poderia melhorar

O gasto excessivo com aluguel, segundo a pesquisadora da FGV, acontece pela dificuldade de resolver a falta de moradia nos grandes centros urbanos. Segundo ela, também faltou o Minha Casa andar lado a lado com investimentos maiores em mobilidade urbana.

Para a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias, os maiores desafios para o programa estão na faixa 1, porque o beneficiado não tem poder de decisão sobre onde vai morar.

Segundo Vinícius Costa, presidente da Associação Brasileira dos Mutuários da Habitação (ABMH), as famílias têm dificuldade para renegociar as parcelas atrasadas do programa. A entidade, segundo ele, também recebe muitas queixas sobre a qualidade dos imóveis.

Os conjuntos habitacionais da faixa 1 ficaram restritos a áreas mais afastadas. O mercado imobiliário estava crescendo, e o custo da terra era mais alto nas regiões mais próximas ao centro. As próprias prefeituras demoraram muito a agir e delimitar as áreas de interesse social que poderiam ser oferecidas para o programa.

Ana Maria Castelo, coordenadora de Estudos da Construção Civil do Ibre/FGV

Os centros urbanos de forma geral já não têm mais espaços vazios com preços que deem condições de construir o Minha Casa sem a necessária verticalização que permita diluir o custo do terreno.

Carlos Henrique Oliveira Passos, vice-presidente de Habitação de Interesse Social da CBIC

As camadas beneficiadas pelo MCMV são mais suscetíveis ao desemprego e a quedas de renda. A regra geral é que, quando não conseguem pagar o financiamento, como não há uma boa possibilidade de renegociação, a perda desse imóvel se torna uma realidade.

Vinícius Costa, presidente da Associação Brasileira dos Mutuários da Habitação

Eduardo Anizelli/Folhapress

Programa enfrenta falta de dinheiro

Ao completar uma década, o Minha Casa vive seu pior momento, com falta de recursos e, possivelmente, o número mais baixo de contratações em um ano. Até julho, não havia sido feita nenhuma nova contratação para a faixa 1, destinada aos mais pobres.

O ano também tem sido marcado pelo atraso no repasse de recursos para as construtoras e, mais recentemente, pela mudança no subsídio para as faixas 1,5 e 2, que, até dezembro, virá integralmente do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço).

Conseguimos esse desembolso extraordinário [R$ 543 milhões] no mês de setembro, mas esse recurso foi suficiente para pagar o que estava vencido até 16 de agosto. De 19 de agosto para cá, já temos uma leva de faturas vencidas.

Carlos Henrique Oliveira Passos, vice-presidente de Habitação de Interesse Social da CBIC

Falta de recursos para obras em andamento

O setor de construção civil está preocupado com a possível falta de recursos para pagar as obras em andamento neste ano. No último trimestre do ano, o orçamento mensal disponível para o Ministério do Desenvolvimento como um todo é de R$ 89,2 milhões. Segundo a CBIC, só o Minha Casa tem uma demanda mínima de R$ 300 milhões por mês.

"Calculamos mais ou menos R$ 1 bilhão para o que deve ser feito até dezembro. Essa é a nossa primeira preocupação", afirmou Carlos Henrique Oliveira Passos, vice-presidente de Habitação de Interesse Social da CBIC (Câmara Brasileira da Indústria da Construção).

RIcardo Borges/Folhapress

Quem paga a conta?

Uma portaria publicada em agosto limitou o total de subsídios vindos do governo para as faixas 1,5 e 2 a R$ 450 milhões em 2019 —metade dos R$ 900 milhões previstos inicialmente e quase tudo que já havia sido gasto até aquele momento (R$ 430,2 milhões já haviam sido repassados).

Em setembro, outra portaria autorizou o FGTS a bancar 100% dos subsídios para essas faixas. A regra é válida até dezembro, mas o governo estuda ampliá-la para 2020. Até o final do ano, o Ministério do Desenvolvimento estima que o FGTS possa injetar cerca de R$ 26,2 bilhões no setor da construção.

A Abrainc, associação que reúne 36 incorporadoras, afirma que o ajuste permite a continuidade das contratações, sem a participação do governo, e considera importante que o FGTS siga financiando o programa.

Na análise da FGV, atualmente, a sustentabilidade do programa está diretamente vinculada à capacidade do FGTS de se manter como financiador do programa e provedor dos subsídios para as faixas 1,5 e 2.

Gabriel Cabral/Folhapress

Futuro em xeque

O futuro do Minha Casa Minha Vida é bastante incerto. Para 2020, o corte no Orçamento enviado pelo governo federal ao Congresso atingiu em cheio o programa habitacional. A previsão para o programa caiu de R$ 4,6 bilhões, em 2019, para R$ 2,7 bilhões para o próximo ano. Nesse valor, novas contratações para a faixa 1 devem ser inviabilizadas.

"No Projeto de Lei Orçamentária, a verba anunciada ao faixa 1 é de R$ 1,5 bilhão. Ela é insuficiente para tocar as obras já contratadas. Aí não se pode nem pensar em novas contratações", disse Passos, da Cbic.

Segundo o ministro Gustavo Canuto (Desenvolvimento Regional), 222 mil unidades do programa estão em construção no país e vão demandar R$ 2,1 bilhões de aportes. Ele disse que haverá recursos para manter o que está em construção e, provavelmente, construir novas unidades ou retomar as obras que estão paralisadas.

Fim da linha?

No final de outubro, o ministro reuniu-se com representantes de movimentos populares para falar sobre o futuro do Minha Vida —entre eles, a Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura). Segundo o secretário de Política Agrícola da Contag, Antoninho Rovaris, o ministro teria anunciado o fim do programa e afirmado que não vão acontecer novas contratações.

Questionado pela reportagem, o ministério informou, em nota, que o cancelamento de portarias que autorizavam a contratação de novas unidades ocorreu em função de restrições orçamentárias.

Sobre o fim do programa, a pasta afirmou que equipes técnicas do governo estão "dedicadas à reformulação do Programa de Habitação de Interesse Social", que terá novo nome, novas diretrizes e faixas de renda distintas das que existem hoje.

Alan Santos/PR

O que esperar do novo Minha Casa Minha Vida

Desde o início do ano, o governo de Jair Bolsonaro vem discutindo uma reformulação no Minha Casa Minha Vida. Algumas possíveis mudanças foram antecipadas pelo ministro Gustavo Canuto (Desenvolvimento Regional) nos últimos meses:

  • reduzir o limite de renda das famílias da faixa 1, de R$ 1.800 para R$ 1.200 ou R$ 1.400
  • para as famílias de baixíssima renda, dar subsídio integral da União e zero custo para os beneficiários, que não teriam a posse do imóvel, só o direito de uso

O novo programa terá dois públicos-alvo principais, disse o Ministério em nota:

  • A população que não tem condições de assumir um financiamento e deve ser atendida por meio de vouchers
  • As famílias que têm condições de acessar um financiamento, mas que precisam de algum apoio do governo

"Serão prioritárias as cidades com até 50 mil habitantes, com maior índice de domicílios precários na região Nordeste", informou o ministério, em nota.

A promessa é de que o novo projeto seja apresentado em dezembro.

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