Sem emprego, diplomados também passam a viver de Uber
Desde que a crise econômica se instalou no Brasil, varrendo postos de trabalho em empresas de diversos setores, é cada vez mais comum encontrar alguém que tenha aderido aos aplicativos de transporte e de entregas, como 99, Cabify, Uber, iFood e Rappi, para pagar os boletos que, certamente, vão chegar.
Pior: não são apenas os profissionais sem qualificação específica que estão recorrendo à "uberização" do trabalho. A recuperação do emprego tem sido tão lenta que até mesmo profissionais mais qualificados, com curso superior (completo ou incompleto), estão migrando para esses serviços.
Do total de trabalhadores do setor, 12% têm superior incompleto e outros 5% têm superior completo, diz o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Não há dados do IBGE para comparar se houve crescimento nesse percentual. As empresas de transporte não revelam essas informações.
Trabalham do jeito que conseguem
O PIB brasileiro caiu oito pontos percentuais entre 2015 e 2016. Isso fez com que essas pessoas trabalhassem do jeito que pudessem. E os motoristas de aplicativo conseguem fazer isso facilmente. Podem, inclusive, alugar ou financiar um carro. A barreira de entrada é baixa.
Renan Pieri, professor da Escola de Economia da FGV (Fundação Getulio Vargas)
"Boa parte da geração de empregos que tivemos nos últimos anos foi nesse segmento. A gente até errou um pouco de achar que a economia estava se recuperando, quando, na verdade, eram pessoas entrando nos aplicativos", afirma Pieri.
5,5 milhões já trabalharam nesses serviços
Pesquisa do Instituto Locomotiva divulgada no começo deste ano aponta que cerca de 5,5 milhões de brasileiros já usaram aplicativos de transporte e de entregas no país para trabalhar. Isso leva em consideração tanto pessoas que ainda usam esses apps quanto aqueles que já deixaram de atuar nesses serviços. A rotatividade nesse segmento, aliás, torna difícil precisar quantas pessoas, hoje, sobrevivem com esses aplicativos.
Segundo Cimar Azeredo, coordenador para a área de Trabalho e Rendimento do IBGE, a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) mostra que o grupamento de transportes saltou de 4 milhões de trabalhadores, em 2014, para 4,8 milhões, em março de 2019 --e a maioria desses 800 mil novos postos é de motoristas de aplicativos.
Ele afirma, porém, que a pesquisa ainda não registra esse setor como um todo. "A Pnad vai ter que se adaptar para captar essas formas atípicas do trabalho", diz.
Os mais jovens foram os primeiros a buscar o bico
De acordo com Renan Pieri, da FGV, os primeiros a migrar para os aplicativos foram os mais jovens, que ainda estavam cursando a faculdade. "Essa parcela é sempre a primeira a ser demitida", afirma Pieri.
O motivo é que muitos deles ainda estão no começo da carreira e não exercem funções imprescindíveis dentro das empresas. "São pessoas que deixaram de estudar para continuar no mercado de trabalho por meio dos apps", diz. Pelos números do IBGE, esse grupo é formado, em sua maioria, por pessoas de 18 a 29 anos.
Problema passou a atingir os mais velhos também
O professor da FGV diz que, como o desemprego foi muito forte, chegou ao ponto de os mais experientes (e qualificados) também serem demitidos. Não à toa, o maior grupamento é composto por profissionais entre 30 e 49 anos (52% no total).
Ainda assim, há pontos positivos, como a possibilidade de geração rápida de trabalho e renda em tempos de crise. "Sem isso, o desemprego com certeza seria maior", afirma Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva.
O fato é que essa modalidade chegou para ficar e está mudando as relações trabalhistas.
A tendência é crescer cada vez mais. Seja porque a economia brasileira não dá perspectiva de melhora, seja porque o consumidor demanda cada vez mais esses serviços.
Renato Meirelles
Trabalho ainda é visto como provisório
O que ainda não se sabe é se essas pessoas permanecerão trabalhando com os aplicativos. "A tecnologia abre uma possibilidade de serviços e trabalhos. Mas isso não necessariamente vai se constituir como uma ocupação permanente", declara Clemente Ganz Lúcio, diretor técnico do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos).
Por enquanto, "as pessoas ainda acham que esses trabalhos são provisórios. A maioria delas está ali porque está passando uma fase sem encontrar vagas em sua ocupação original", afirma Azeredo, do IBGE.