Uber com diploma

Desemprego alto faz até profissional com faculdade virar motorista e entregador de aplicativos

Pedro Marques Colaboração para o UOL, em São Paulo Denis Freitas/UOL
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Sem emprego, diplomados também passam a viver de Uber

Desde que a crise econômica se instalou no Brasil, varrendo postos de trabalho em empresas de diversos setores, é cada vez mais comum encontrar alguém que tenha aderido aos aplicativos de transporte e de entregas, como 99, Cabify, Uber, iFood e Rappi, para pagar os boletos que, certamente, vão chegar.

Pior: não são apenas os profissionais sem qualificação específica que estão recorrendo à "uberização" do trabalho. A recuperação do emprego tem sido tão lenta que até mesmo profissionais mais qualificados, com curso superior (completo ou incompleto), estão migrando para esses serviços.

Do total de trabalhadores do setor, 12% têm superior incompleto e outros 5% têm superior completo, diz o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Não há dados do IBGE para comparar se houve crescimento nesse percentual. As empresas de transporte não revelam essas informações.

Trabalham do jeito que conseguem

O PIB brasileiro caiu oito pontos percentuais entre 2015 e 2016. Isso fez com que essas pessoas trabalhassem do jeito que pudessem. E os motoristas de aplicativo conseguem fazer isso facilmente. Podem, inclusive, alugar ou financiar um carro. A barreira de entrada é baixa.
Renan Pieri, professor da Escola de Economia da FGV (Fundação Getulio Vargas)

"Boa parte da geração de empregos que tivemos nos últimos anos foi nesse segmento. A gente até errou um pouco de achar que a economia estava se recuperando, quando, na verdade, eram pessoas entrando nos aplicativos", afirma Pieri.

5,5 milhões já trabalharam nesses serviços

Pesquisa do Instituto Locomotiva divulgada no começo deste ano aponta que cerca de 5,5 milhões de brasileiros já usaram aplicativos de transporte e de entregas no país para trabalhar. Isso leva em consideração tanto pessoas que ainda usam esses apps quanto aqueles que já deixaram de atuar nesses serviços. A rotatividade nesse segmento, aliás, torna difícil precisar quantas pessoas, hoje, sobrevivem com esses aplicativos.

Segundo Cimar Azeredo, coordenador para a área de Trabalho e Rendimento do IBGE, a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) mostra que o grupamento de transportes saltou de 4 milhões de trabalhadores, em 2014, para 4,8 milhões, em março de 2019 --e a maioria desses 800 mil novos postos é de motoristas de aplicativos.

Ele afirma, porém, que a pesquisa ainda não registra esse setor como um todo. "A Pnad vai ter que se adaptar para captar essas formas atípicas do trabalho", diz.

Os mais jovens foram os primeiros a buscar o bico

De acordo com Renan Pieri, da FGV, os primeiros a migrar para os aplicativos foram os mais jovens, que ainda estavam cursando a faculdade. "Essa parcela é sempre a primeira a ser demitida", afirma Pieri.

O motivo é que muitos deles ainda estão no começo da carreira e não exercem funções imprescindíveis dentro das empresas. "São pessoas que deixaram de estudar para continuar no mercado de trabalho por meio dos apps", diz. Pelos números do IBGE, esse grupo é formado, em sua maioria, por pessoas de 18 a 29 anos.

Problema passou a atingir os mais velhos também

O professor da FGV diz que, como o desemprego foi muito forte, chegou ao ponto de os mais experientes (e qualificados) também serem demitidos. Não à toa, o maior grupamento é composto por profissionais entre 30 e 49 anos (52% no total).

Ainda assim, há pontos positivos, como a possibilidade de geração rápida de trabalho e renda em tempos de crise. "Sem isso, o desemprego com certeza seria maior", afirma Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva.

O fato é que essa modalidade chegou para ficar e está mudando as relações trabalhistas.

A tendência é crescer cada vez mais. Seja porque a economia brasileira não dá perspectiva de melhora, seja porque o consumidor demanda cada vez mais esses serviços.
Renato Meirelles

Trabalho ainda é visto como provisório

O que ainda não se sabe é se essas pessoas permanecerão trabalhando com os aplicativos. "A tecnologia abre uma possibilidade de serviços e trabalhos. Mas isso não necessariamente vai se constituir como uma ocupação permanente", declara Clemente Ganz Lúcio, diretor técnico do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos).

Por enquanto, "as pessoas ainda acham que esses trabalhos são provisórios. A maioria delas está ali porque está passando uma fase sem encontrar vagas em sua ocupação original", afirma Azeredo, do IBGE.

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Arquivo pessoal

Administrador trabalha 14h e ganha metade da renda antiga

Formado em administração de empresas, Gecéler Biló, 45, trabalhou por 15 anos com carteira assinada em uma grande empresa do setor de telefonia.

Por causa de fusões da empresa, ele foi demitido em 2015, quando ocupava o cargo de coordenador de tesouraria. Depois, foi trabalhar na empresa de um parente. "Era uma transportadora, e minha ideia era ajudar administrativamente. Mas acabei trabalhando como motorista", diz. Insatisfeito, resolveu abraçar os aplicativos e trabalhar por conta própria.

"Faz dois anos que me cadastrei no Uber. Tirando segunda-feira, que é o meu rodízio e aproveito para cuidar do carro, trabalho das 7h às 21h. Agora que estou separado, quando não estou com meus filhos, trabalho nos finais de semana", afirma. Segundo Biló, ele leva um lanche e uma fruta e faz uma pausa rápida por volta das 14h para comer. "Não consigo tirar uma hora de almoço."

Essa rotina não é exclusividade de Biló. "Participo de grupos no Facebook e WhatsApp e vejo que o dia a dia de todos é muito parecido com o meu. A média de trabalho é de 12h a 14h por pessoa. Tem que pegar os dois horários de pico, senão não compensa", afirma.

Comparando rendimentos, o administrador e motorista conta que sua renda caiu pela metade.

Dá para tirar até R$ 8.000 por mês, mas 30% desse valor eu gasto com combustível. Os gastos com manutenção também crescem, porque eu rodo cerca de 220 km por dia, então gasto mais 20% do que faturo para cuidar do carro.
Gecéler Biló

Apesar disso, ele não se mostra insatisfeito. "Já que tem tu, vai tu mesmo", diz. "Além disso, não tenho patrão, meu patrão são os boletos. E não preciso mandar WhatsApp para chefe nem ligar para ninguém."

Por outro lado, ele não vê o trabalho nos aplicativos de motorista como uma ocupação permanente. "Já pensei em ficar a longo prazo. Hoje, não sei, por vários motivos. Logo vou ter que trocar de carro e não sei se vou conseguir pagar uma prestação de financiamento. O motorista tem que guardar um dinheiro todo mês e se planejar [para trabalhar apenas com aplicativos]", afirma.

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Arquivo pessoal

Especialista em comércio exterior faz entrega de bicicleta

O paraense Sérgio Reis, 30, faz entregas de bicicleta. Formado em administração de empresas com ênfase em comércio exterior, ele chegou a trabalhar em São Paulo por um tempo cuidando de negócios de fazendas. Voltou para Belém, mas se desencantou com a área e decidiu estudar, em São Paulo, para ser desenvolvedor web. Paga as contas com o dinheiro das entregas que faz de bicicleta.

"Estou fazendo isso desde outubro do ano passado, levando comidas e revistas. No começo deste ano, me cadastrei no iFood", afirma. Por causa dos estudos, Reis diz que nem sempre está na rua, e as entregas funcionam mais para complementar a renda. Afirma receber, no mínimo, R$ 1.000 por mês dos serviços prestados com a bike.

Nos melhores dias, Reis diz que chega a ficar 12 horas na rua. "Sempre procuro saber se vai ter alguma promoção para me organizar. Por exemplo, é dia do sanduíche e cai no final de semana. Então, há mais movimento. Se há um show no Memorial da América Latina, costumo ficar ali por perto. O entregador que não sabe se planejar vai ganhar menos", declara.

Claro, ele não pedala por 12 horas seguidas.

Nos horários de movimento mais fraco, vou dar uma olhada na bike, comer e descansar. Na minha bag, levo um papelão dobrado que uso de travesseiro e, dependendo de onde estou, dou uma deitada para relaxar.
Sérgio Reis

O entregador lembra que aprendeu a ter um pneu reserva e conhecer as oficinas de bicicleta 24 horas da região em que trabalha. Já aconteceu de sofrer acidente. "Um carro foi virar à direita e não deu seta, bati na traseira. Machuquei minha mão e quebrei a lanterna", diz. Segundo Reis, isso é comum com quem está começando. "Por isso, quanto mais preparado, melhor", declara.

O objetivo de Reis é conciliar a experiência de entregador com um emprego na área de logística, especialmente em empresas de entrega. "Acho que é um diferencial, porque um desenvolvedor dificilmente foi entregador um dia. Já participei de algumas entrevistas e acho que essa visão vai me ajudar muito", afirma, animado.

Trabalho é precário, mas garante sustento da família

Embora esses trabalhos estejam longe do ideal para muitas pessoas, há cada vez mais gente migrando para os aplicativos de motorista e de entregas. Um estudo da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Trabalho da Prefeitura de São Paulo divulgado em julho mostrou que a profissão de serviços de entregas rápidas está em terceiro lugar entre as mais exercidas pelos MEIs (microempreendedores individuais).

De 2017 para 2018, houve um aumento de 165% no número de pessoas que abriram uma microempresa para trabalhar neste setor. Com isso, a cidade tem hoje 24 mil entregadores cadastrados. Há boas chances, porém, de o número ser maior.

O problema dos aplicativos é que eles vêm acompanhados de alta precarização nas condições de trabalho. Existe muita insegurança quanto ao retorno efetivo, a janela de trabalho e o esforço. Para conseguir uma boa renda, as pessoas precisam fazer jornadas extensas.
Clemente Ganz Lúcio, do Dieese

Família vive melhor e desempregado enfrenta crise

Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva, faz uma ponderação: "Em comparação com o emprego formal [com carteira assinada], essa modalidade não tem uma série de garantias, ainda em empregos que oferecem risco. Mas há uma série de personagens que falam que, graças a isso, a família está vivendo melhor e está conseguindo dar conta da crise, seja como única fonte de renda ou como renda complementar."

Para Marcos Carvalho, diretor da ABO2O (Associação Brasileira Online to Offline), que reúne empresas como 99, Cabify, iFood e Loggi, não é possível comparar essa prestação de serviço "com um formato de trabalho da década de 1950". "A partir do momento que essa é uma opção do indivíduo [de trabalhar com os aplicativos] e [ele] constrói sua jornada, como é possível querer gerar vínculos, como férias e 13º?", pergunta.

Legislação trabalhista é problema também em outros países

Essa questão trabalhista, por sinal, está longe de ser resolvida --tanto no Brasil quanto em outros países. No Reino Unido, por exemplo, uma Corte trabalhista determinou, em 2016, que os motoristas da Uber têm direito a salário mínimo e a folgar ou receber hora extra se trabalharem nos feriados. A empresa recorreu à sentença e perdeu. Agora, o caso foi levado à Suprema Corte britânica, que deve decidir de vez.

Na França, um motorista processou a Uber e ganhou, em primeira instância, alegando que ele era um funcionário da empresa. Na decisão, o juiz avaliou que o motorista não tinha liberdade de escolher seus clientes nem determinar o valor cobrado pela corrida e, por isso, a Uber tinha controle sobre o motorista. Como no Reino Unido, a empresa disse que vai recorrer e levar o caso a uma instância francesa superior.

Mesmo nos Estados Unidos, sua terra natal, a empresa enfrenta essas dificuldades. Em março deste ano, a Uber anunciou que chegou a um acordo preliminar em duas ações trabalhistas coletivas. A companhia concordou em pagar US$ 20 milhões para motoristas nos estados da Califórnia e Massachussetts, que alegaram ter sido "incorretamente classificados como trabalhadores independentes".

Empresa afirma que pode haver problemas trabalhistas

Em abril passado, antes de vender ações em Bolsa, a empresa enviou um documento para a SEC (Comissão de Valores Mobiliários dos EUA) em que afirma que pode ter problemas trabalhistas com os motoristas. "Acreditamos que os motoristas são trabalhadores independentes... Ainda assim, podemos não ter sucesso ao defender o status de trabalhadores independentes dos motoristas em algumas jurisdições", disse a companhia no comunicado.

No Brasil, já houve decisões contra a empresa. Em decisão de segunda instância, a 17ª Turma do TRT (Tribunal Regional do Trabalho) da 2ª Região, de São Paulo, reconheceu que existe vínculo trabalhista entre a Uber e seus motoristas. Na sentença, a empresa foi condenada a assinar a carteira de trabalho do motorista que entrou com a ação e arcar com os benefícios previstos na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), como aviso prévio, pagamento de FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) e multa rescisória em caso de demissão. A empresa recorreu da decisão. Procurada pela reportagem, a Uber não se manifestou.

Entregador do Rappi morto durante trabalho

Um caso recente que pode influenciar as decisões judiciais é o do entregador Thiago Jesus Dias, 33, que morreu enquanto levava um pedido feito pelo Rappi. No dia 8 de julho, Dias teve um mal súbito e ficou aguardando socorro por cerca de duas horas, mas morreu ao chegar ao hospital.

Em nota enviada à imprensa, a empresa afirmou que está "buscando melhorias em seus processos" e que criou um botão de emergência dentro do aplicativo para que os entregadores tenham suporte rápido com uma equipe especializada.

Empresas dizem fazer ações para seus colaboradores

Também foram enviadas perguntas sobre a situação de trabalho para as empresas 99, Cabify e iFood. Todas elas consideram que os motoristas e motofretistas que usam seus aplicativos são "parceiros". Por comunicado, as empresas ressaltaram a importância desses parceiros para o negócio e destacaram ações voltadas para eles.

A 99 afirmou ter parceria com postos de gasolina e locadoras de veículos, que oferecem preços mais vantajosos aos cadastrados no serviço. Outra proteção é o seguro de acidentes pessoais para motoristas e passageiros, no valor de até R$ 100 mil, e que também cobre despesas médicas, hospitalares e odontológicas.

O iFood disse que, desde novembro do ano passado, testa em São Paulo e Campinas (SP) áreas de descompressão para os motoqueiros, onde é possível, por exemplo, descansar e encher os pneus das motos. Outras ações incluem campanhas que estimulam boas práticas por meio de vídeos educativos e trilhas de conhecimento, adotados de maneira permanente pela empresa.

A Cabify afirmou investir "constantemente em tecnologias que ofereçam mais segurança aos seus parceiros, como a remoção de áreas de risco do mapa de atuação". Em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre (RS), a empresa tem um espaço físico para que novos parceiros tirem dúvidas sobre os pré-requisitos para se cadastrar e sobre o aplicativo.

É preciso regulamentar atividade, diz especialista

Além de determinar se existe vínculo empregatício ou não, outros questionamentos estão surgindo, como sobre as condições de trabalho. "Essa parcela da população trabalha mais de 40 horas por semana. Por ser uma forma nova de ocupação, a população não está acostumada a lidar com isso. Acho que, de alguma forma, o poder público tem que regulamentar melhor essa atividade", diz Cimar Azeredo, do IBGE.

Renan Pieri, da FGV, concorda, mas diz acreditar que essa discussão deverá acontecer em outro momento.

Enquanto a economia estiver nessa pindaíba e com esse nível de desemprego, nenhum parlamentar vai insistir em algum tipo de regulamentação.
Renan Pieri

O professor, no entanto, ressalta que "é preciso tomar muito cuidado [com uma regulamentação]". "A gente pode acabar com uma coisa que é boa", diz. Para ele, seria bom "pensar em algo como estipular um número de horas, questões de segurança do carro e melhorias no cadastro dos motoristas".

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Auxílio-desemprego, auxílio-doença e aposentadoria

Em relação à informalidade, o governo publicou, em maio, o decreto Nº 9.792, que determina que os motoristas de aplicativos contribuam para o INSS (Instituto Nacional do Seguro Social). Com isso, eles poderão ter acesso a benefícios como auxílio-doença, auxílio-desemprego e aposentadoria.

A inscrição tem de ser feita pelo próprio motorista, que deve apresentar às empresas os documentos que comprovam sua inscrição no INSS. É também um sinal de que essa modalidade de trabalho, com suas vantagens e desvantagens, veio para ficar.

Se ela vai continuar crescendo ou não, vai depender da retomada da economia e da geração de empregos, que não dão sinal de recuperação tão rápida.

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