Sem registro, sem direitos

Trabalho doméstico muda, tem mulheres mais velhas e sem carteira e deve ficar mais caro um dia

Lucas Borges Teixeira Colaboração para o UOL, em São Paulo Arte/UOL

Anos de crise e de recuperação lenta da economia levaram a informalidade no Brasil a patamares recordes. Para os empregados domésticos, que historicamente já tinham dificuldade de encontrar trabalho com carteira assinada no país, a crise ajudou a frustrar ainda mais as esperanças de formalização, segundo especialistas, e converteu empregadas mensalistas em diaristas.

São mais de seis milhões de domésticos no país, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Menos de 30% deles trabalham com carteira assinada, com direitos trabalhistas como férias, 13º salário e jornada de trabalho regular.

O UOL conversou com domésticas e especialistas para entender como as mudanças no país nos últimos anos afetaram a categoria.

Mais de 90% desses trabalhadores são mulheres, em sua maioria, negras, e elas estão cada vez mais velhas. Analistas dizem que a tendência é que o serviço delas fique mais caro no futuro.

Adriana Gonçalves, 47, diarista há 15 anos

A rotina de Adriana Gonçalves é intensa. Tem trabalho fixo em duas casas, e os dias da semana estão ocupados de segunda a sábado. "É preciso se organizar. Na segunda, eu já sei o que tenho que fazer no restante da semana", disse a moradora de Barueri, na região metropolitana de São Paulo.

A paulista diz gostar da correria. Além de ter uma rotina mais livre e diversa, por ter clientes diferentes, ela acredita ganhar mais por ser diarista. "Na diária, você acaba recebendo mais. Se eu trabalhar cinco dias, ganho pelos cinco. Se você trabalha [com carteira assinada] em uma empresa ou uma casa, você não ganha pelo que trabalha", afirmou.

Com três filhos, ela começou a trabalhar com serviços domésticos há 17 anos, quando o mais novo tinha dois anos. Desde então, só teve a carteira assinada nos três anos em que trabalhou em uma casa, mas diz que não se adaptou e não pretende voltar a trabalhar registrada.

Eu trabalhei em um lugar em que o patrão era legal, mas a esposa, não. Ela controlava o que eu comia, não dava alimento, não dava nada. Era como se eu fosse uma escrava, eu ficava até constrangida. Hoje eu tenho uma relação muito melhor com quem eu trabalho, é diferente. Gosto do que faço.

Mulher, de 30 a 60 anos

Adriana representa o perfil do trabalho doméstico no Brasil hoje —uma mulher de 30 a 60 anos, negra, que presta serviço sem carteira assinada. O Brasil tem hoje 6,35 milhões de trabalhadores domésticos, dos quais 4,59 milhões (72,3% do total) não têm carteira assinada. Dentre as diaristas, 90,5% não têm registro.

A informalidade sempre foi muito alta no serviço doméstico, e cresceu em praticamente todas as áreas do emprego no Brasil nos últimos anos. Mas, no caso das domésticas, alguns fatores particulares aprofundaram o problema nos últimos anos.

Getty Images/iStockphoto/ Popartic

Crise econômica

Muitas famílias que contratavam mensalistas registradas passaram a substituí-las por diaristas, para não pagar encargos trabalhistas, afirmou Luana Pinheiro, pesquisadora do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e autora de um estudo sobre o trabalho doméstico no Brasil. Mario Avelino, presidente do Instituto Doméstica Legal, disse que "as pessoas querem economizar. Para uma família ter uma doméstica, tem de ter uma renda média estimada em pelo menos R$ 10 mil. Não é todo mundo que tem. Mas pode-se chamar uma diarista para um ou dois dias por semana sem vínculo algum, de forma legal".

Shutterstock

Mudanças na lei

Mudanças na legislação, consideradas conquistas das domésticas, acabaram contribuindo para o aumento da informalidade, segundo Avelino. "Com a PEC das Domésticas e a Lei Complementar de 2015, houve muitos avanços para a classe, mas muitos empregadores viram que isso acarretaria mais custos e houve demissões, o que fez crescer o número de diaristas e de famílias na ilegalidade [sem registrar a doméstica], disse. Entre outros pontos, a PEC das Domésticas estabelece jornada de 44 horas semanais, pagamento de hora extra e recolhimento de contribuições ao INSS e ao FGTS.

Getty Images

Iniciativa das domésticas

Para Avelino, há ainda as situações em que as próprias domésticas preferem trabalhar como diaristas, sem registro, como é o caso de Adriana. "As próprias trabalhadoras começaram a buscar uma inserção como diarista, com a ideia de que [diarista] tem renda maior [que mensalista] e pode ter mais trabalho e uma profissionalização melhor, visto que não existe o 'fazer parte da família'. O movimento que vem da demanda passa a vir da oferta também", disse.

Lar é inviolável, o que dificulta a fiscalização

Fiscalizar se uma família assina a carteira da sua funcionária é muito difícil no Brasil porque a Constituição Federal garante a inviolabilidade do lar, disse Avelino. Ou seja, nenhum fiscal pode entrar em uma casa sem autorização, diferentemente do que acontece em uma empresa.

Além disso, o medo de serem demitidas e não conseguirem outro emprego desestimula denúncias das próprias domésticas.

A base do emprego doméstico é a confiança. Qual a primeira coisa que alguém faz para contratar uma empregada? Pede referências. Se o antigo empregador afirma que foi colocado na Justiça, pronto, ela não será contratada. Não importa se era o patrão quem não pagava os direitos dela, o novo contratante não vai querer correr riscos.
Mario Avelino, presidente do Instituto Doméstica Legal

Quase 20% das trabalhadoras negras são domésticas

Além de mulher na meia-idade, o perfil do serviço doméstico no Brasil também é de maioria negra. De acordo com o Ipea, cerca de 65% dos trabalhadores são negros.

Também é maior o percentual de trabalho doméstico se o recorte for feito dentro de cada grupo: do total de mulheres negras que ocupavam o mercado de trabalho em 2018 no Brasil, 18,6% delas exerciam essa função. A proporção cai para 10% quando se trata de mulheres brancas.

O Ipea diz que a proporção de domésticas entre as trabalhadoras negras atingiu um pico de 22% nos anos 2000 e depois passou a cair. "Mas esse movimento de queda parece ter se arrefecido nos últimos anos, que coincidem com o período de intensa crise econômica no Brasil", afirmou Luana, do Ipea.

Carteira em branco reduz renda

A renda média de uma empregada doméstica no país é de R$ 931, segundo dados do IBGE analisados pelo Ipea.

O principal motivo para o baixo salário é a falta de carteira assinada. Mas, mesmo entre quem tem carteira assinada, a renda é muito baixa, está sempre orbitando próxima ao salário mínimo. A remuneração baixa é o final de uma trajetória de muita precariedade. Doméstica é uma ocupação que junta nossa herança escravocrata, racismo e desigualdade social. É só pensar que é um salário pagando outro salário, ou seja, só existe porque tem desigualdade.
Luana Pinheiro, pesquisadora do Ipea

Adriana diz que ganha mais como diarista do que ganharia como mensalista, e os dados confirmam isso. Tanto entre quem tem carteira assinada quanto entre quem não tem as diaristas ganham um pouco mais.

Luana, no entanto, aponta que é um trabalho sem garantia. Muitas diaristas ingressam no serviço e ganham menos porque não conseguem preencher a agenda.

"Essas acabam com uma média de ganhos mensal inferior [à mensalista] porque ficam com buracos na semana. Se fizessem jornada de 40 ou 44 horas, poderiam chegar a um ganho mensal superior, mas não é a realidade de grande parte", disse a pesquisadora.

O salário também é menor entre quem não tem carteira assinada, que representa a maior parte delas. São só R$ 748 mensais.

O baixo número de carteiras assinadas tem impacto direto na concessão de direitos. Só metade das trabalhadoras mensalistas contribui para o INSS, tendo garantido o direito à aposentadoria, dentre outros. Dentre as diaristas, apenas 24% estão com o INSS em dia.

Maria Aparecida Gomes, 38, diarista desde 2017

Maria Aparecida Gomes faz parte da fatia de 76% das domésticas que estão com o boleto previdenciário atrasado. Ela trabalha como diarista, sem registro, desde 2017, quando seu ex-marido, com quem mora, sofreu um AVC (Acidente Vascular Cerebral) e teve de deixar o emprego.

Eu trabalhava registrada em uma casa, mas, para cuidar dele, eu precisava de um horário mais flexível. O antigo patrão não topou ter uma funcionária só em parte do tempo, então tive que sair.

Desde então, ela trabalha como diarista em três casas em Maceió e tem trabalho quase todo dia. Com ganho acima do salário mínimo, ela diz que, para pagar todas as contas, teve de abrir mão de INSS. "Não estava dando [para pagar], então preferi cortar."

Além dos direitos garantidos pela carteira assinada, ela diz sentir falta da estabilidade de um emprego fixo.

Ser diarista é mais cansativo do que ser mensalista, porque cada dia o trabalho é em um canto, e cada casa tem seu jeito. Fora que não é uma coisa certa. Você não tem certeza de que terá serviço.

Elas estão mais velhas

A categoria passa por um envelhecimento. Em 1995, as jovens de até 29 anos eram 47% das domésticas, e as mulheres de 30 e 59 anos compunham metade da categoria. Em 2018, a faixa etária mais jovem caiu para 13%, enquanto a fatia de mulheres de 30 a 59 subiu para quase 80%. O percentual de idosas (acima de 60 anos) também aumentou, de 2,9% para 7,4%.

Avelino diz que a categoria está envelhecendo principalmente porque as mais jovens tiveram mais oportunidades, como acesso à educação, e não precisaram recorrer ao trabalho doméstico.

Muitos filhos de domésticas tiveram a oportunidade de fazer um curso superior e procurar um destino diferente. Há uma quebra de ciclo, o que faz com que o grupo fique cada vez mais velho.
Mario Avelino, presidente do Instituto Doméstica Legal

Heloísa Santos, 54, doméstica desde os 17 anos

Trabalhando como doméstica desde os 17 anos, Heloísa Santos, 54, representa o grupo etário predominante, de 30 a 59 anos. Um dos seus filhos cursa enfermagem na Ufal (Universidade Federal de Alagoas), por isso, dificilmente seguirá seus passos.

Serviço doméstico foi o sustento que tive para criar meus filhos. Para eles vai ser diferente, vai ser melhor.

Heloísa ganha R$ 1.100 com carteira assinada. Embora acredite que a maioria das colegas que se tornaram diaristas sem registro ganham mais, ela diz gostar da estabilidade do emprego fixo. "Eu já sei o que devo fazer em cada dia da semana. Conheço a comida que eles [os patrões] gostam e recebo em dia, tudo certinho. Tenho meu vale-transporte e não tenho INSS atrasado. Isso é importante, né?", questiona.

Ela diz temer perder estes direitos, em especial depois de ter passado dos 50 anos.

Já pensou se perco [a carteira assinada] agora? Dá até medo, vi acontecer com muitas colegas. Quero me aposentar e não ter dor de cabeça. Tem gente perto de casa passando necessidade porque não consegue arrumar emprego.

Fabrícia Lima, 22, recepcionista e diarista

Fabrícia Lima, 22, é da mesma geração que o filho de Heloísa, o estudante de enfermagem. A carioca integra a minoria de jovens dentre as domésticas, mas as faxinas que faz há três anos são apenas uma forma de complementar a renda.

Além de diarista, ela é recepcionista em uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento) e faz um curso técnico de enfermagem.

Eu tinha acabado de terminar o ensino médio e ia morar sozinha com um filho recém-nascido quando ajudei a mãe de um amigo, que tinha feito uma cirurgia, a fazer faxina. Como ela gostou do meu trabalho, decidi fazer diárias como renda extra.

Ela tem alguns clientes fixos, mas diz que só pretende seguir na rotina de faxinas até setembro, quando se forma.

Faço faxina para pagar minhas contas. Tenho um filho de três anos. Quando terminar o curso técnico, vou poder procurar emprego na área da saúde. Quero virar socorrista.

Mais diaristas e famílias querendo faxina

Tanto a procura por diaristas quanto a quantidade de profissionais no mercado têm crescido, de acordo com Eduardo L'Hotellier, CEO do GetNinjas, um portal de contratação de serviços ("bicos").

As domésticas são a maior categoria do portal, com 130 mil profissionais cadastrados, cerca de 13% do total. No lado da procura, só em dezembro de 2019, por exemplo, houve 10 mil pedidos por diaristas, alta de 20% em relação a novembro. Em janeiro, a procura ficou 12 mil e 15 mil.

"O crescimento tanto da oferta quanto da demanda é um reflexo da sociedade. Com as mudanças na legislação e a crise, muitas pessoas passaram a optar por chamar faxineira uma ou duas vezes por semana para economizar
Eduardo L'Hotellier, CEO do GetNinjas

O perfil dos profissionais cadastrados na área é semelhante ao perfil nacional: mulheres com idade média de 40 anos. "Em geral, elas já trabalhavam com o serviço doméstico antes de aderirem ao aplicativo, e então começaram a usar o celular, estão conectadas. Pela internet, elas conseguem completar com trabalho os dias da semana que têm livre", disse.

Futuro é das diaristas

Com o aumento da informalidade e o envelhecimento da classe, os especialistas ouvidos pelo UOL dizem acreditar que o serviço doméstico no Brasil será, no futuro, mais caro e escasso, como já é em outros países.

Os EUA, por exemplo, têm população de 327 milhões e apenas dois milhões de empregados domésticos. O Brasil, que tem 210 milhões de habitantes, tem o triplo de domésticos (seis milhões).

"Chamo [a tendência] de americanização do emprego doméstico brasileiro. No futuro, quem terá empregada fixa será uma minoria, só gente com muito dinheiro, porque a oferta será menor, com mão de obra mais cara", disse Avelino.

Ele destaca o acesso à educação como motor dessa mudança.

Com mais oportunidades de estudo, as pessoas não querem mais aderir ao serviço doméstico. Ter empregada vai virar serviço de luxo.
Mario Avelino, presidente do Instituto Doméstica Legal

Topo