Sem jornada e salário fixos

Contrato intermitente cresce em 2 anos, mas gera menos de 9% das vagas esperadas e não reduz informalidade

Leda Antunes Colaboração para o UOL, no Rio

A reforma trabalhista completou dois anos, e com ela, a criação da modalidade de trabalho intermitente, que permite a contratação de trabalhadores sem horário fixo, ganhando pelas horas trabalhadas. Foi uma das principais novidades da nova legislação aprovada no governo Michel Temer.

A promessa do governo e dos defensores da reforma era de que o contrato intermitente faria com que as empresas assinassem a carteira de empregados que costumavam atuar como 'extras' ou em 'bicos'.

A estimativa do governo Temer era criar 2 milhões de empregos em dois anos, considerando o trabalho intermitente e o parcial (meio-período). Mas menos de 9% dessa meta foi atingida: 173.340 em dois anos (até novembro de 2019): 129.229 intermitentes e 44.111 parciais.

O trabalho intermitente representa só 11,3% do total de empregos gerados no período.

Além disso, o número de trabalhadores sem carteira assinada vem subindo e batendo recordes desde a reforma, colocando em dúvida a eficácia desse contrato na formalização do mercado.

O UOL ouviu especialistas e trabalhadores para saber se o contrato intermitente cumpriu o que prometeu, quais os desafios à sua implementação e como ele funciona no dia a dia.

Contrato intermitente representa só 11,3% das vagas criadas

O trabalho sem jornada e salário fixos teve participação limitada na criação de vagas com carteira assinada desde a reforma trabalhista. De novembro de 2017 até novembro deste ano, foram 129,2 mil vagas intermitentes. O número representa 11,3% do total de empregos criados no período.

Mesmo que sua fatia do mercado seja tímida, o contrato intermitente, de forma geral, vem crescendo a cada mês. Em novembro de 2019, por exemplo, a criação de empregos nessa modalidade aumentou 45% em relação ao mesmo mês do ano anterior. Foi o mês com o maior saldo de empregos intermitentes desde a reforma (11.354).

Os dados fazem parte do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados), do Ministério da Economia.

O que é o trabalho intermitente?

No contrato intermitente, o empregado contratado serviço somente quando chamado pela empresa e recebe apenas pelas horas trabalhadas. Pode firmar contrato com mais de uma empresa ao mesmo tempo.

É possível que ele trabalhe só por algumas horas da semana ou do mês, por exemplo. O pagamento não pode ser inferior ao valor do salário mínimo por hora (R$ 4,54, em 2019) ou ao valor pago aos demais empregados que exercem a mesma função.

A empresa precisa convocar o funcionário com ao menos três dias de antecedência, e ele é quem decide se aceita o trabalho.

De forma geral, esse trabalhador tem os mesmos direitos de quem tem um contrato convencional. A exceção é o seguro-desemprego, vetado para quem tem contrato intermitente.

Bico formalizado ou trabalho precarizado?

A ideia era que esse tipo de contrato levasse as empresas a assinar a carteira dos trabalhadores, como a do servente de pedreiro chamado para acelerar uma obra ou a do garçom contratado para um evento. Mas especialistas ouvidos pelo UOL dizem que isso não aconteceu como esperado.

Luiz Guilherme Migliora, professor de direito da FGV (Fundação Getúlio Vargas), disse que o contrato intermitente deveria ser usado somente para o serviço considerado imprevisível e não deveria substituir o contrato temporário ou por tempo parcial, que são outras modalidades. "A ferramenta que deveria gerar mais direitos está sendo usada para precarizar as condições de trabalho", afirmou.

O contrato intermitente não deveria precarizar quem tinha um contrato normal, mas sim trazer para a CLT aquele que vivia de bico. Na prática, porém, ele tem sido usado como manobra para evitar o trabalho formal convencional.
José Carlos Wahle, advogado trabalhista

Para a juíza Noêmia Porto, presidente da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), o contrato tem sido adotado por empresas que têm demanda permanente, e não apenas por aquelas cuja atividade econômica é de natureza intermitente, como fabricantes de ovos de páscoa ou organizadores de eventos.

Segmentos econômicos de caráter continuado estão fazendo uso da contratação intermitente para baratear a remuneração dos trabalhadores. A modalidade viola qualquer patamar de proteção.
Noêmia Porto, presidente da Anamatra

Ricardo Patah, presidente do Sindicato dos Comerciários de São Paulo e da UGT (União Geral dos Trabalhadores), defende que o contrato intermitente pode ser vantajoso para o trabalhador.

Ele pode ser utilizado de forma que favoreça a empresa, que precisa de mais funcionários em determinados dias, e o próprio trabalhador, que pode se beneficiar dessa flexibilidade. Nas nossas negociações coletivas, temos tomado o cuidado para que isso não ocorra de forma a precarizar o trabalho.
Ricardo Patah, presidente do Sindicato dos Comerciários de São Paulo e da UGT

Um levantamento do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) mostra que o trabalho intermitente não tem constado com frequência nos acordos coletivos. Só 8,7% das 3.386 convenções coletivas firmadas de janeiro a outubro trouxeram cláusulas sobre o trabalho intermitente.

Trabalhos sem carteira e por conta própria aumentaram

Mesmo com a criação do contrato intermitente, a informalidade aumentou desde a reforma trabalhista, ao contrário do prometido pela gestão Temer.

O Brasil tinha 11 milhões de trabalhadores sem carteira assinada antes da nova CLT, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Outros 23 milhões trabalhavam por conta própria, vendendo comida na rua ou como motorista de aplicativo, por exemplo.

Em outubro deste ano, último dado disponível, o número de trabalhadores sem carteira havia crescido 2,4% em um ano, para 11,9 milhões, um recorde na série histórica. Os que trabalhavam por conta própria subiram 3,9%, para 24,4 milhões, outro recorde.

Há uma taxa calculada pelo IBGE que expressa, de forma ampla, quanto emprego falta no país. Ela soma desempregados, quem gostariam de trabalhar mais horas por dia e quem poderia trabalhar, mas desistiu de procurar um emprego. Chamada de subutilização, essa taxa subiu de 23,7% para 23,8% desde a reforma.

Setor de serviços é o que mais contrata

O setor de serviços é o que mais tem contratado trabalhadores na modalidade intermitente, com 41% da vagas desse tipo desde a reforma. Depois vem o comércio, com 31% das vagas.

A indústria da transformação (siderurgia, metalurgia, petroquímica etc) responde por 12% desses contratos, e a construção civil, por 11%.

Dentre as ocupações que mais adotam o contrato intermitente estão operador de caixa e faxineiro. Em geral, são ocupações de baixa escolaridade e qualificação.

A CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo) defende que já dá para perceber os efeitos positivos do contrato intermitente no mercado de trabalho.

Após três anos seguidos de demissões, 2018 foi encerrado com um saldo positivo no que se refere à geração de empregos, tendo sido esse resultado um reflexo, em boa parte, dos contratos de trabalho intermitente.
Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo

No setor industrial, a CNI (Confederação Nacional da Indústria) diz que a adesão ao contrato intermitente não tem sido tão significativa por causa de características próprias da produção.

Sylvia Lorena, gerente executiva de relações do trabalho da entidade, afirmou que a nova legislação trabalhista ainda está em processo de "amadurecimento" e tem sido implementada aos poucos. "Todos os pontos estão sendo aplicados, mas com cautela", disse.

Para Maira Campos, diretora da consultoria de recursos humanos Page Interim, também existe uma questão cultural segurando a adesão ao trabalho intermitente.

Os brasileiros não estão habituados a trabalhar por hora, e há uma dificuldade de controlar as horas trabalhadas. A maior parte das empresas não consegue fazer isso numa folha de pagamentos comum.
Maira Campos, diretora da consultoria de recursos humanos Page Interim

A advogada trabalhista Aline Marques, porém, diz que o aumento contínuo do número de vagas intermitentes demonstra que o mercado está se adaptando à nova forma de contração. "Só com o tempo e com as decisões da Justiça isso vai ser fixado melhor", disse.

Dez das principais ocupações com mais vagas intermitentes

  • Assistente de vendas

  • Repositor de mercadorias

  • Cozinheiro geral

  • Vendedor de comércio varejista

  • Atendente de lojas e mercados

  • Servente de obras

  • Alimentador de linha de produção

  • Faxineiro

  • Agente de segurança

  • Ajudante de motorista

Contrato sem hora fixa é alvo de ações no STF

A criação do contrato intermitente é um dos pontos da reforma trabalhista mais questionados na Justiça.

No STF (Supremo Tribunal Federal), ao menos cinco ações questionam a constitucionalidade da modalidade e aguardam julgamento. As ADIs (Ação Direta de Inconstitucionalidade) foram apresentadas por entidades que representam trabalhadores de indústria, comércio, telecomunicações, postos de combustíveis e segurança privada.

Para elas, o contrato intermitente fere os princípios da dignidade humana, da garantia do salário e da função social do trabalho.

Uma das ações, da CNTI (Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria), argumenta que "o empregado é reduzido a mais uma ferramenta à disposição do empregador, sendo irrelevante se ele terá ou não condições de atender às suas necessidades vitais básicas".

Noêmia Porto, da Anamatra, destaca a possibilidade de o trabalhador receber menos de um salário mínimo por mês.

"A Constituição não aceita que você vá criando modalidades de trabalhadores com menos direitos", afirmou. "A empresa é obrigada a registrar esse trabalhador, mas não há nenhuma garantia de que ele vá receber sequer o salário mínimo."

Decisão do TST pode abrir caminho para mais contratações

Também há ações judiciais questionando o contrato intermitente na Justiça do Trabalho. Um desses casos chegou à última instância, e os ministros da Quarta Turma do TST (Tribunal Superior do Trabalho) deram a primeira decisão favorável à modalidade.

Mas a decisão pode não refletir a posição do TST como um todo, segundo o professor da FGV Luiz Guilherme Migliora.

A Quarta Turma é mais liberal, e essa decisão foi a que teve mais destaque, porém não representa a Justiça do Trabalho como um todo nem uma tendência. Ainda há certa resistência dos juízes em relação ao trabalho intermitente
Luiz Guilherme Migliora, professor da FGV

Entidades que representam empresários dizem que são necessários esclarecimentos jurídicos para que a contratação de fato possa ser utilizada de maneira mais abrangente.

O aumento do emprego, puxado pelos contratos intermitentes, poderia ser ainda maior se não fosse o fato de ainda existir insegurança jurídica a respeito desse tipo de contrato. O setor produtivo ainda espera um posicionamento, no âmbito da Justiça do Trabalho, sobre a legalidade e aplicabilidade desse ajuste contratual.
José Roberto Tadros, presidente da CNC

O TST informou que não tem um balanço das ações sobre trabalho intermitente na Justiça do Trabalho, mas reforçou que não existe ainda um entendimento consolidado na Corte sobre o tema.

Arte/UOL Arte/UOL

Sem contribuição mínima, sem cobertura do INSS

Um dos principais alvos de críticos do trabalho intermitente é a questão da contribuição ao INSS (Instituto Nacional do Seguro Social).

Esse trabalhador só tem direito à cobertura previdenciária (auxílio-doença, licença-maternidade etc) se contribuir com o valor mínimo.

Se em um mês ele receber menos de um salário mínimo, precisará complementar a contribuição ao INSS para continuar sendo segurado. Caso não faça isso, além de não ter direito aos benefícios, esse mês não contará no cálculo do tempo de serviço para a aposentadoria, explicou a advogada Aline Marques.

O fato de o trabalhador não conseguir prever qual será sua renda mensal é outro ponto polêmico.

Os defensores da reforma trabalhista diziam que o empregado poderia prestar serviço para mais de uma empresa, firmando vários contratos intermitentes. Na prática, isso não tem acontecido. Em novembro, por exemplo, só 54 pessoas foram contratadas por mais de uma empresa como intermitentes.

Dono de bar tenta, mas diz que intermitente 'não pegou'

Sócio de um bar em São Paulo, Valter Sanches viu no contrato intermitente uma possibilidade de aumentar o seu quadro de funcionários em 2018, e contratou mais dois auxiliares de cozinha e três garçons. Seis meses depois, porém, desistiu da modalidade.

"O contrato não pegou. Hoje não tenho mais funcionários intermitentes. Até porque, pela convenção coletiva [firmada com o sindicato que representa os trabalhadores], sou obrigado a pegar um mínimo de 144 horas por mês", disse.

No Rio de Janeiro, o presidente do Sigabam (Sindicato dos Garçons, Barmen e Maitres do Estado do Rio de Janeiro), Antonio dos Anjos, faz uma análise parecida.

"Não houve adesão significativa porque a convenção coletiva já permitia a contratação de horistas, e os trabalhadores extras são admitidos na modalidade de contrato parcial, por até 36 horas", afirmou.

O advogado José Carlos Wahle diz acreditar que "esse tipo de contrato vai cair em desuso. Não é uma falha no texto da legislação, mas no seu uso".

Para estudante, contrato foi "uma porta de entrada"

O cozinheiro e estudante de gastronomia Luís Kayam, 28, viu no trabalho intermitente uma oportunidade para iniciar sua carreira. Ele trabalhou por hora e sem salário fixo por dez meses na cozinha de uma choperia na capital paulista, no ano passado.

"Como meu primeiro trabalho em cozinha, foi uma boa porta de entrada", afirmou. A vaga acabou funcionando como um contrato convencional, porque ele trabalhava oito horas diárias, seis dias por semana. Mas recebia menos.

"Eu acabava trabalhando igual ao CLT convencional, mas ganhando um pouco menos. Para começo de profissão é bom, mas depois de um tempo você acaba migrando", disse.

Kayam deixou esse emprego para aceitar outro, com contrato convencional e salário mais alto.

"Aceitei a vaga com intenção de continuar buscar trabalho fixo"

Adriana Beleboni, 45, foi contratada como funcionária intermitente há três meses por um supermercado de Campinas (SP) e trabalha como operadora de caixa aos domingos e feriados.

Desempregada havia um ano e meio, Adriana trabalhava antes como auxiliar financeira. "Eu nunca tinha ficado sem emprego. Foi uma situação que me assustou, e essa vaga foi uma grande oportunidade para voltar ao mercado de trabalho", disse. "Infelizmente, depois dos 40 as oportunidades diminuem, mesmo com um excelente currículo."

Mas o salário no supermercado não é suficiente para arcar com todas as despesas da casa e da família, segundo ela. "Esse tipo de trabalho é uma oportunidade de complemento de renda. Aceitei a vaga com a intenção de continuar buscar um trabalho fixo. Estou satisfeita e espero que surja a oportunidade de ser efetivada aqui", afirmou.

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