Lembranças da praia

Usar Havaianas no home office ajuda as pessoas a relaxarem e lembrarem de coisa boa, diz CEO da Alpargatas

Beth Matias Colaboração para o UOL, em São Paulo
Carine Wallauer/UOL

Usar um par de chinelos Havaianas em casa trouxe para os trabalhadores de home office, durante a quarentena, memórias afetivas de praia, verão, relaxamento e bons momentos. Essa é uma das razões que podem ter ajudado a Alpargatas, dona da marca, a ter bons resultados no confinamento, diz o CEO do grupo, Roberto Funari, em entrevista na série UOL Líderes.

O próprio Funari passou meses trabalhando em casa de chinelos. Para o executivo, a crise não foi apenas econômica, mas também humanitária. Ele conta que a Alpargatas remodelou algumas linhas para produção de máscaras. Doou 2,3 milhões de máscaras e 250 mil Havaianas. Doentes que entravam nos hospitais descalços receberam chinelos para voltar para casa calçados.

Ele afirma que o país precisa das reformas administrativa e fiscal e que o Brasil que vivia de incentivos e subsídios tem que se transformar em um país mais competitivo.

Ouça a íntegra da entrevista com o CEO da Alpargatas, Roberto Funari, no podcast UOL Líderes. Também pode assistir à entrevista completa em vídeo com o executivo no canal do UOL no YouTube. Continue nesta página para ler o texto.

Chinelo com impacto emocional

UOL - No atual momento, o que as marcas precisam fazer para manter o mercado?

Roberto Funari - As pessoas dialogam com marcas como se fossem humanos, por isso, precisam ser relevantes. É preciso fazer isso com autenticidade. Havaianas é uma marca que tem essa relevância e afinidade com as pessoas.

Por que as pessoas, no meio de uma pandemia, vão se preocupar com chinelo? Havaianas são um produto fácil de lavar, fácil de secar, para serem usadas dentro de casa, na rua. Ao colocar no pé, as pessoas "linkam" com suas memórias afetivas de verão, de praia, de momentos bons.

Percebemos que temos um papel muito maior. Funcionou muito bem não só no Brasil como em outros países. É bacana ver como uma marca consegue ter esse impacto emocional nas pessoas.

Como está o comportamento do consumidor de chinelos? Ele mudou muito?

O chinelo está entrando cada vez mais como acessório de moda. Lançamos no ano passado um movimento chamado "Havaianas Friendly", cujo objetivo é a casualização de roupas, calçados e acessórios no ambiente de trabalho.

Algumas empresas têm normas rígidas de vestuário, impossibilitando que as pessoas se vistam do jeito que elas gostam, do jeito que são. No "Havaianas Friendly", damos acesso a produtos, dicas de estilo. Queremos trazer diversidade, formatos, materiais que ajudam esse consumo consciente.

Constatamos um grande crescimento nessa linha de "casualização". Olhar a moda com bom gosto e harmonia, mas com identidade. Havaianas têm um aspecto muito importante: um produto de alta expressão, que começou lá atrás, quando surfistas do Arpoador, no Rio de Janeiro, inverteram as sandálias e colocaram as cores para cima. Começamos aí a lançar a sandálias coloridas.

Como o mundo vê o Brasil?

Havaianas é uma marca que transcende a imagem político-econômica do Brasil. As pessoas no exterior associam Havaianas ao espírito de liberdade, alegria, espontaneidade, do verão, de aproveitar a vida, valores mais universais e muito característicos dos brasileiros.

A marca atingiu um nível de associação que não é mais o Brasil como país, mas o espírito do brasileiro. O modelo que mais vende é o que tem a bandeirinha do Brasil. Tive o privilégio de morar em seis países diferentes, quatro continentes - e tem duas marcas que as pessoas no exterior associam com o Brasil: Pelé e Havaianas.

Durante uma palestra em um MBA de alunos internacionais, fiz a abertura dizendo que era um privilegiado por estar com uma das maiores marcas globais brasileiras. Um estudante espanhol levantou a mão e perguntou quais eram. Falei Pelé e Havaianas. Uma estudante chinesa levantou a mão e perguntou "Quem é Pelé?".

As Havaianas dão muito orgulho, porque trazem essa memória afetiva, esses valores, que são muito importantes.

A Alpargatas é assim

  • Fundação

    1907

  • Funcionários diretos (2020)

    17 mil no mundo, sendo 16 mil no Brasil

  • Lojas

    788 no mundo, sendo 566 no Brasil

  • Receita líquida (2019)

    R$ 3,7 bilhões

  • Lucro líquido (2019)

    R$ 431,6 milhões

  • Concorrentes

    Grendene, Skechers e Crocs

  • Ações na pandemia

    Produção e doação de 1,3 milhão de máscaras de uso hospitalar; doação de R$ 5 milhões para a iniciativa Todos pela Saúde; doação de 2,15 milhões de máscaras, 18 mil pares de calçados e 250 mil Havaianas e doação de 500 mil itens de cesta básica e de equipamentos de som para a rádio Conexão Favela (Complexo do Alemão, no Rio), para combate às fakenews.

Doação para doentes descalços

UOL - Que ações tomaram na pandemia?

Roberto Funari - A primeira coisa foi seguir as orientações das autoridades de saúde e das autoridades locais. Colocamos os nossos escritórios em teletrabalho. Fechamos as lojas de acordo com as orientações de cada local.

Em março, remodelamos as nossas fábricas. Redesenhamos os processos de fabricação, introduzimos distanciamento social, as barreiras físicas, estações de álcool gel.

Convertemos algumas de nossas fábricas e linhas para produzir máscaras médicas e calçados para os profissionais de saúde. Fizemos isso em duas semanas. Isso nos dá muito orgulho. Produzimos e doamos 2,3 milhões de máscaras, 20 mil calçados, 250 mil Havaianas.

Como lidaram com a doença dentro das fábricas?

Adotamos os protocolos, fazemos o distanciamento, o isolamento, o monitoramento de contágio. Colocamos clínicas à disposição das comunidades, damos todo o apoio médico, damos apoio à família, criamos também uma linha de apoio à saúde mental.

Doamos 10 mil kits de testes para uma localidade, 10 respiradores que eram necessidade de outra, fizemos uma doação importante para um hospital em Madri, que era o principal hospital na época do epicentro, mandamos alimentos nas Filipinas para os profissionais de saúde.

Em contato com as secretarias de saúde, recebemos a informação que havia pessoas chegando aos hospitais, principalmente os públicos, sem calçados. Decidimos que todos os curados sairiam calçados com Havaianas nos hospitais. Doamos mais de 250 mil Havaianas.

Ao fazer isso, os médicos começaram a pedir, porque é o calçado que eles usam para se locomover nas áreas sociais dos hospitais. É um calçado que gera um sorriso no rosto, dá aquela sensação muito gostosa, então começamos também a apoiar isso.

Qual a sua opinião a respeito das empresas que criticaram o fechamento com medo da crise econômica?

A pandemia criou um paradigma de negócios. Fizemos um trabalho grande envolvendo fornecedores, clientes, parceiros de negócio para garantir que eles permanecessem funcionando, abertos, dividindo melhores práticas, dando suporte financeiro ou de produtos. Acreditamos que a empresa que quer ter sucesso nos próximos 100 anos precisa ter um ecossistema saudável e forte.

A Alpargatas é uma empresa de 117 anos, de capital social, aberta na Bolsa de Valores desde 1903. É a empresa que contratou mulheres para a linha de produção na década de 1920, deu benefícios sociais aos seus colaboradores antes de a lei do trabalho ser promulgada.

As Havaianas foram parte da cesta básica do brasileiro na década de 1980, com arroz, feijão e leite. Temos um propósito muito forte.

Carine Wallauer/UOL Carine Wallauer/UOL

O varejo físico não vai acabar, mas vai haver uma ressignificação. Será um ponto para serviços, para experiências inesquecíveis das marcas.

Roberto Funari, CEO da Alpargatas

Loja física não acaba, mas terá de mudar

UOL - A Alpargatas tirou algum produto de linha durante a pandemia?

Roberto Funari - Decidimos não atrasar o calendário de lançamentos. Lançamos meias, novos formatos, lançamos uma colaboração com a marca mais cool do Japão.

Decidimos ir em frente, o mundo não vai acabar e seremos mais fortes juntos para ativar os negócios. Mas reduzimos nosso portfólio de produtos, focando nos produtos que têm maior giro.

Isso ajudou também os nossos parceiros, os clientes, as franquias, que enfrentam dificuldade de capital de giro. Uma linha de produtos mais reduzida e com maior giro ajuda e é o que as pessoas querem.

Como foram as vendas neste período?

O maior impacto que tivemos nas vendas foi a transformação digital da Alpargatas e das suas marcas. As nossas vendas digitais estão seis vezes maiores do que estavam antes da pandemia.

A Havaianas, principalmente agora, é a marca preferida para se usar dentro de casa. Está embarcando na onda da "casualização", da forma como nos vestimos.

Com isso, estamos realmente vendo impactos muito positivos nos negócios. Não só no Brasil, mas na Europa, nos Estados Unidos, na Ásia, estamos vendo um padrão muito comum, menos fluxo de pessoas, porém mais conversão.

O que será a nova era do varejo?

O ficar em casa foi o catalisador dessa nova era. Estamos avançando para o viver em casa. As pessoas ampliaram as compras online. Em todas as classes sociais, nas diferentes regiões do Brasil e no mundo, houve um avanço do número de pessoas e casas que compram online. Se você usar as projeções antes do Covid -19, atingiríamos esse nível daqui a dois anos. Aceleramos dois anos em dois meses.

As pessoas começam a entender os grandes benefícios, a conveniência, o preço, o engajamento, e, ao acontecer isso, começam a olhar para o varejo físico com uma outra função. O varejo físico não vai acabar, mas vai haver uma ressignificação. Será um ponto para serviços, para experiências inesquecíveis das marcas.

Isso vai mudar a cara do varejo, vai mudar os espaços alocados pelas lojas, a forma como atendemos. Precisamos recapacitar os funcionários para essa nova fase do varejo, precisamos trazer as pessoas para incorporar essas ferramentas tecnológicas. As empresas de online se medem pelo índice de encantamento. Este vai ser o novo normal para todo o varejo. Quem não encantar não vai vender.

Alguns ficarão melhores, outros não sobreviverão

UOL - Há previsão para voltarmos ao que era antes da pandemia?

Roberto Funari - Muitas pessoas falam do "novo normal" outras falam de novas possibilidades. Essa luz no fim do túnel já existe. É extremamente importante a digitalização, a educação financeira para o pequeno varejo.

Serão redefinidas as relações entre franqueador e franqueado, com marcas que tragam giro para os franqueados. Tudo será redesenhado para que possamos voltar em condições melhores. Irão existir aqueles que voltarão em condições melhores, e outros que não vão sobreviver. Essa reciclagem vai acontecer.

Como o senhor vê as reformas implantadas no país e o que ainda precisa ser feito para melhor o ambiente de negócios?

O plano de reformas é extremamente importante para o Brasil e temos de avançar. Este vai ser o grande avanço estrutural do Brasil no pacote de reformas.

As reformas administrativa e fiscal são fundamentais para abrir o potencial de país mais empreendedor. Irão trazer investimentos de fora. Há muito investimento parado lá fora olhando para um país com potencial muito grande.

É uma pauta importante para criar empresas competitivas e empresários que criam negócios e criam valor para a sociedade.

O Brasil que vivia de incentivos e subsídios tem que se transformar em um país mais competitivo e inserido nessa economia competitiva global.

Que pontos são fundamentais nessas reformas?

As reformas devem viabilizar pequenos, médios e grandes empresários a tomarem mais riscos, terem capacidade de investir e gerar emprego. Tudo que for associado a isso precisa ser avançado com rapidez.

As reformas têm que ajudar na simplificação. Empresas no Brasil gastam recursos desproporcionais para gerenciar regulamentação, aspectos jurídicos, e isso não vemos em outros países. São recursos, na minha opinião, mal alocados que você pode alocar produtivamente e gerar empregos.

As reformas devem avançar na área social para fazer com que a inclusão seja acompanhada pela evolução das empresas. Não vejo soluções milagrosas. O mais importante não é achar soluções perfeitas, é avançar.

Qual a sua opinião a respeito das privatizações e a questão do Estado mínimo?

É importante fazer privatizações dentro de um plano de país, não fazer aleatoriamente. Sobre o Estado mínimo, as questões de saúde, educação devem ser prioridade e o Estado tem um papel muito importante em saúde e educação, e esse protagonismo tem que existir por parte do Estado, das diferentes esferas e autoridades.

Agora, a iniciativa privada também tem que participar, assim como participamos. Acredito muito nessa combinação de esforços, com o Estado atuando de maneira ativa. É um modelo que funciona melhor e de uma maneira mais eficiente.

Como vai ser a questão no home office daqui para frente na Alpargatas?

No ano passado, colocamos todos os nossos escritórios globais e fábricas na "nuvem", usando plataformas de colaboração e todos os colaboradores com notebook.

Desta forma, a cultura que reforça conexão, trabalho colaborativo e ferramentas tecnológicas é equivalente ao teletrabalho. Apenas aceleramos essa metodologia e estendemos o teletrabalho até o final de dezembro.

Isso nos permitirá redesenhar os nossos escritórios para serem espaços mais colaborativos, mais criativos.

Que legado o senhor, como gestor, está levando dessa crise?

O legado que estou levando é a importância de ser solidário, de ter empatia, cuidar das pessoas e não somente do negócio. A importância de criar uma rede de relacionamentos, trabalhar com clareza.

Fizemos um trabalho de comunicação muito intenso com todos os colaboradores da Alpargatas e vou levar isso comigo. Esse contato próximo, comunicação, espírito de solidariedade, olhar para cuidar é o grande legado.

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