Vacina é segurança nacional

Brasil produz vacina desde os anos 70, e isso é maior proteção à população, diz chefe de gigante farmacêutica

João José Oliveira Do UOL, em São Paulo
Zô Guimarães/UOL

A pandemia do novo coronavírus serviu para provar que um dos grandes acertos do passado no Brasil foi definir, desde os anos 70, que vacinas são uma questão de segurança nacional. Essa é a opinião de José Carlos Felner, vice-presidente e general manager no país de uma das maiores empresas farmacêuticas do mundo, a britânica GSK.

Em entrevista ao UOL Líderes por videoconferência, Felner destacou que o Brasil se tornou um dos grandes exemplos no mundo para políticas de saúde pública quando o assunto é imunização porque definiu, ainda nos anos 1970, que a produção de vacinas é uma questão de Estado e não de governo. Isso porque, com uma população tão grande, mesmo tendo dinheiro, não é possível comprar vacina para todo mundo, porque não há disponibilidade numa situação de pandemia, por exemplo.

Questionado sobre a polêmica recente a respeito de vacinação obrigatória contra a covid-19, o executivo preferiu não entrar no tema, mas destacar que a GSK está colaborando com diversas empresas e instituições de pesquisa em todo o mundo para desenvolver vacinas contra a doença. Segundo ele, a companhia uniu forças com a concorrente Sanofi para desenvolver e produzir 1 bilhão de doses de uma vacina candidata para combate ao novo coronavírus.

Felner destacou que, graças a uma política de Estado, o Brasil conseguiu criar um ecossistema capaz de desenvolver e produzir vacinas desde a pesquisa pura, passando pela academia e por uma rede de fornecedores para, finalmente, estabelecer uma indústria especializada de ponta.

Falando sobre inovação, ele narra histórias, como a de um carrinho de sorvetes numa praia no litoral nordestino que mudou a cadeia de transporte de vacinas da GSK no Brasil.

Ouça a íntegra da entrevista com o CEO da GSK, José Carlos Felner, no podcast UOL Líderes. Também pode assistir à entrevista completa em vídeo com o executivo no canal do UOL no YouTube. Continue nesta página para ler o texto dos destaques da conversa.

Ter vacina é questão de segurança nacional

UOL: O que o Brasil tem de especial para ser protagonista em projetos da GSK no mundo?

José Carlos Felner: Principalmente uma decisão de Estado, e não uma decisão de governo, tomada na década de 1970, de considerar a imunização da população um fator de soberania, um fator de segurança nacional.

Por quê? A gente está vendo agora. No caso de um surto, bacteriano ou viral, a população brasileira é tão grande que é impossível comprar vacinas num momento de surto que pode virar uma pandemia. Não se consegue comprar a vacina. Não adianta ter dinheiro. Simplesmente a vacina leva anos para ser desenvolvida.

Aquela decisão tomada naquele momento foi: temos que ter produção nacional de vacina para garantir que a gente não dependa do mercado externo para leilões e aquela loucura toda.

Essa decisão, em meados de 1970, ainda na ditadura, independentemente de governos ou de orientação política, se manteve aí.

Nos anos 1980, houve o programa nacional da Aids e o estímulo à produção nacional. Foi nessa que a GSK entrou.

Qual era o modelo? A gente fornecia para os países via licitações ou leilões internacionais. Entrávamos nesses leilões enormes. Mas ainda na década de 1980, entendemos que o Brasil tinha tem decisão estratégica de Estado para isso. Nada melhor que nos aliarmos a esse projeto.

A GSK é assim

  • Fundação

    1715

  • Início da operação no Brasil

    1908

  • Funcionários diretos no mundo

    Mais de 99 mil

  • Funcionários diretos no Brasil

    2.138

  • Vendas (2019)

    33,8 bilhões de libras (R$ 246,56 bilhões, com cotação de novembro de 2020)

  • Unidades no mundo

    Presente em 95 países

  • Unidades no Brasil

    1 fábrica e 2 escritórios administrativos no Rio de Janeiro e 1 centro de distribuição em Duque de Caxias (RJ)

  • Participação do Brasil nos resultados globais

    Entre os 10 maiores mercados da empresa no mundo, sendo o 1º entre os emergentes, à frente de Índia, Rússia e China

  • Faturamento (2019)

    R$ 5,4 bilhões

  • Principais concorrentes

    AstraZeneca, Sanofi, Chiesi, Boehringer, Bristol Myers Squibb, Roche, Pfizer, Johnson&Johnson, Colgate, Novartis, Lilly, MSD, Amgen e Abbvie. No Brasil, também Aché e Eurofarma

Vacinas são o grande negócio no Brasil

UOL: Pode citar casos em que o Brasil é destaque em desenvolvimento de produtos?

José Carlos Felner: A GSK está no Brasil há 112 anos. E vamos continuar mais um século aqui com certeza. A GSK tem raízes aqui e já entendeu o Brasil. A empresa é absolutamente flexível. A volatilidade está ok. Só precisamos ter alguma previsibilidade, mesmo que o cenário mude o tempo todo. Só não podemos ficar à mercê dos acontecimentos.

O que tem aqui? Vacinas. É grande parte do nosso negócio no Brasil. Acho que 40% de nosso negócio está em vacinas. Dois terços das vacinas distribuídas no Brasil têm como origem a GSK.

Temos acordo de aliança estratégica. Temos projetos de desenvolvimento local de vacinas que vão ser únicas. Por exemplo, temos projetos com Butantã, Funed e Fiocruz, que é parceiro mais antigo, desde 1985, com a poliomelite, do Zé Gotinha.

Dos 19 antígenos distribuídos pelo Programa Nacional de Imunização, que é uma referência global, 13 deles têm origem na GSK, sempre de maneira colaborativa. Esse pioneirismo e essa amplitude, com dois terços das vacinas no Brasil, isso é incomum. No mundo, a GSK tem 20% a 25% de market share de vacinas. Aqui a gente tem quase três vezes mais de market share.

Outro programa muito importante é o Programa Nacional contra a Aids. São mais de 700 mil pessoas sendo tratadas no Brasil com medicamentos contra Aids. Temos mais de 40% de market share e devemos fechar o ano com 50% de market share.

E estamos desenvolvendo uma formulação específica para o Brasil, que ainda não foi lançada na maioria dos países, e vamos lançar aqui. Estamos na fase da maturidade do casamento com o Brasil. Estamos começando a desenvolver coisas juntos.

Venenos de cobras brasileiras contra inflamação

UOL: Por que o ecossistema da indústria farmacêutica no Brasil é destacado pela GSK no mundo?

José Carlos Felner: Você precisa do ambiente acadêmico. Nossos parceiros, como Butantã, Fiocruz, estão intimamente ligados às universidades federais. Você tem uma fertilização cruzada de conhecimento, que vai elevando a plataforma de conhecimento acadêmico a um nível em que é possível aprender. Senão, você não consegue. É como tentar fazer faculdade sem ter o segundo grau. Esse é um processo que leva anos.

A mesma coisa com os bens de produção. Para ter fornecedores locais, capazes, que acabam também sendo fertilizados nesse processo.

Que não é um processo rápido. Leva dez anos ou mais. Aí você chega ao topo, que é quando você desenvolve um produto junto com o seu parceiro, os dois em igualdade de condições, academicamente falando, e as contribuições são cruzadas, a gente aprende junto.

E temos pesquisa básica, sendo a Fapesp o principal parceiro, e o Butantã.

Estamos por exemplo pesquisando os elementos mais básicos da nossa fauna para ver, a partir de venenos de insetos e cobras, quais moléculas podem funcionar como anti-inflamatórios em nosso sistema, para desenvolvermos juntos.

A gente investe alguns milhões de reais. Vai levar muitos anos para ver o que pode dar, mas pode dar em algo muito legal, para o Brasil.

Picolé do Nordeste mudou o transporte de vacinas

UOL: Sobre inovação, como um carrinho de sorvete inspirou inovação? Aquela história de quando o sr. estava na praia de Trancoso (BA) e viu um carrinho com picolé bem conservado apesar do calor e da distância?

José Carlos Felner: Essa história viralizou. Tem outras histórias. A indústria farmacêutica é extremamente inovadora até o momento em que registra o produto. Até o momento em que chega a desenvolver o produto, mas como operação, principalmente comercial, é extremamente conservadora.

De forma geral, a gente opera algumas décadas atrás de outras indústrias. A forma com que a gente transforma, distribui e comercializa, em sistemas internos, é muito lenta, muito complexa, muito devagar, contaminada por essa coisa que a gente não pode correr risco, que a gente não pode falhar. E isso acabou transportando para o resto da organização.

Mas é uma profissão de fé minha buscar sempre olhar para fora. Mais de dois terços de nossos diretores são de outras áreas.
Tirando áreas da Medicina e outras especialidades, o resto eu faço força para ter pessoas de outras indústrias.

E essa história foi isso, de olhar para outras áreas. Se com um sorvete entregue lá em Trancoso, funciona tudo direitinho, como é que a gente não consegue entregar vacina?

Eu falei para o pessoal de logística: "Para de olhar no setor, vamos procurar especializados em cadeia fria, seja qual for". Tem que garantir a integridade da vacina. Se o sorvete chega a Trancoso, não é possível que eu não consiga chegar a São Paulo. Até hoje o projeto tem o nome de "Rota Picolé". Isso tem 20 anos.

Qual foi a grande mudança com isso?

A gente sempre acreditou que transportar vacinas é melhor que seja rápido e de avião. É melhor mandar para São Paulo de avião que de caminhão, certo?

Pois bem, a gente descobriu que não, que era pior. Vimos que perdíamos muito, que muita vacina perdia integridade, porque aquela caixa de alumínio que vai na área de carga do avião, muitas vezes ficava horas esperando de ser embarcada.

O voo era rápido, na ponte-aérea, mas muitas vezes ficava no pátio do aeroporto Santos Dumont, estressando todo sistema térmico para entrar do avião, por 45 minutos. E quando saía do avião, lá do outro lado, em São Paulo, tomava mais outro choque térmico.

O que aprendemos com o picolé? Que não vamos para São Paulo de avião, que não é a melhor solução. Qual é a melhor solução? Caminhão! Colocamos as vacinas no caminhão frigorífico, regulamos a temperatura, e não importa se se vai levar 12 horas na estrada, porque elas estão absolutamente estabilizadas.

Em vez de colocar a vacina numa caixa de papelão de isopor, a gente coloca a vacina numa caixa de papelão toda furada, para passar a temperatura e podemos até deixar as caixas de vacina mais afastadas umas das outras para ter corredores de refrigeração.

Zô Guimarães/UOL Zô Guimarães/UOL

A indústria farmacêutica é extremamente inovadora até o momento em que desenvolve e registra o produto. Mas como operação, principalmente comercial, é extremamente conservadora. De forma geral, a gente opera algumas décadas atrás de outras indústrias

José Carlos Felner

Mundo pós-pandemia

UOL: O que a empresa acha que vai ficar após a pandemia?

José Carlos Felner: Vai ficar a saúde como um todo, e a indústria farmacêutica ter uma imagem melhor. As soluções virão da indústria farmacêutica. É uma grande oportunidade para termos uma imagem ainda melhor de cooperação em momento de crise, mesmo sendo indústria multinacional.

A população como um todo vai ter uma consciência melhor que, se não cuidar da saúde, vai ficar muito mais vulnerável. Nós como indústria de saúde, mais as autoridades, mais a população, mais a mídia, todos vão se preocupar mais com a saúde.

Estruturalmente, a nossa logística tem sido dura. Estamos descobrindo novas formas de logística. Por enquanto o custo é muito elevado, mas vai melhorar. Tudo ficou com custo mais elevado.

Então estruturalmente, vamos ter um custo melhor com serviço melhor. É assim que a gente vai sair daí.

Mais investimentos e empregos no Brasil

UOL: Essa crise está exigindo mais em esforços financeiros e investimentos?

José Carlos Felner: Nossos investimentos e nossa estratégia foram mantidos. Uma das minhas responsabilidades é mostrar aos acionistas que o Brasil é viável. Que vale a pena investir aqui. A GSK é uma empresa cujos acionistas olham o longo prazo. No caso do Brasil, há uma competição com outras operações para atrair investimentos.

O Brasil está hoje entre as dez maiores operações da companhia. Está entre a quinta e sexta. Não necessariamente as maiores, mas as mais interessantes. Isso significa que o board tem visão direta do que está acontecendo aqui.

Se estourou uma crise, meu papel é mostrar que as coisas estão sob controle, em segurança. Conseguimos solucionar toda complexidade de logística.

Acabei de receber a confirmação de investimentos adicionais de 2021. O plano anterior e mais investimentos de 2021. Vamos poder abrir mais empregos, expandir nossos negócios, montamos essa unidade de oncologia.

Do outro lado, tivemos impactos. Uma de nossas principais linhas comerciais é a de antibióticos, e esse mercado se contraiu bastante. Menos pessoas se infectaram. O distanciamento social trouxe isso. Mesma coisa com produtos para parte alérgica, rinite. Mais pessoas em casa, menos poluição na rua.

Outras áreas se expandiram. Estamos ajustando nossos investimentos ao novo mix. O perfil em geral não caiu tanto, mas depende da classe terapêutica. A gente está migrando alguns investimentos para onde temos mais oportunidades, uma mudança de mix, mas nada de redução de investimentos ou empregos. É um remanejamento.

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