Férias subsidiadas

Empresas deveriam dar vale-férias a funcionários, como vale-refeição, para ajudar turismo, diz chefe da Ticket

Beth Matias Colaboração para o UOL, em São Paulo
Carine Wallauer/UOL

Para combater o crescente desemprego no país, uma das soluções pode estar no turismo. A Edenred, dona da marca Ticket, avalia implantar no país um serviço que já existe no exterior: o vale-férias, que funciona como vale-refeição, só que para viagens. Em entrevista exclusiva na série UOL Líderes, o diretor de Operações (COO) da Edenred nas Américas, Gilles Coccoli, fala sobre desafios e gestão no "novo normal".

Coccoli acredita que a digitalização e o sistema de delivery continuarão a crescer mesmo depois da quarentena. Para ele, o país está acostumado a crises, e o impacto será menor do que, por exemplo, em alguns países da Europa.

Em entrevista realizada em videoconferência, abordou também a necessidade de simplificação de impostos e como o grupo vem ajudando os pequenos negócios a sobreviver durante a quarentena.

Vale-férias estimularia turismo e emprego

Ouça a íntegra da entrevista com o CEO Américas da Edenred, Gilles Coccoli, no podcast UOL Líderes. Também pode assistir a entrevista completa em vídeo com o executivo no canal do UOL no YouTube. Continue nesta página para ler o texto.

UOL - Qual é a saída para combater o desemprego no Brasil?

Gilles Coccoli - A questão é que durante a crise econômica as empresas transformaram-se tecnologicamente, digitalizaram-se, e isso aconteceu em setores inteiros, aumentando o desemprego. É só seguir o que os grandes bancos estão fazendo lá fora e no Brasil. Quantas agências teremos daqui a alguns anos? Tem uma revolução aqui e é rápida.

Não tenho a solução, mas o Brasil tem um grande trunfo, que é o turismo. A França tem 70 milhões de turistas por ano, o Brasil tem 5 milhões. O Brasil é 16 vezes o tamanho da França e tem o que mostrar. Seria fantástico ter milhões de pessoas empregadas na área turística.

A Ticket está pensando em uma iniciativa que é o "ticket férias" [ainda sem previsão de lançamento no Brasil], um produto que foi inventado na França e é uma maneira de criar "dinheiro carimbado". O dinheiro depositado por empresas e governo no ticket poderia ser gasto apenas na área de turismo, como hotéis, pousadas, companhias internas de ônibus.

O turismo movimenta a economia local, gerando atividade e emprego. Considere, por exemplo, os R$ 10 bilhões gastos por brasileiros no exterior e imagine direcionar esse dinheiro para o turismo brasileiro.

Quais são os novos projetos do grupo?

Estamos de olho em mercados que evoluem rápido. Nos últimos anos, entramos na área de gestão para pagamento e recebimento de fretes e pedágios para o transporte rodoviário de carga [por meio da Repom, uma das empresas do grupo].

Acredito também que o momento da saúde está mudando no Brasil e temos marca e pertinência para oferecer às áreas de RHs dos nossos clientes o "ticket saúde" [em fase de implantação]. Será um cartão de benefício pré-pago para ser utilizado em uma ampla rede credenciada de qualidade, com acesso a consultas, exames laboratoriais e de imagens e tratamentos a preços baixos, reduzindo custos para a sua empresa.

Quais são as mudanças na área de saúde que o senhor citou anteriormente?

Os planos de saúde estão mais caros e essa inflação leva alguns empresários a optar por não ter mais um plano para os funcionários. Além disso, a saúde particular não é aberta para todos. Esse mercado é muito grande e há muito a ser desenvolvido.

A pandemia, por exemplo, acelerou a questão da telemedicina. Muitas coisas vão acontecer nessa área, plataformas de telemedicina irão surgir e o custo da saúde poderá baixar. Queremos participar da expansão da saúde para todos.

Como o senhor enxerga a importância do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil?

Sou francês e na França toda a saúde é pública. Essa é uma grande virtude: todas as pessoas deveriam ter acesso à saúde. O SUS é uma instituição que, pela história, mas também pelo momento, tem seus pontos positivos e negativos. A qualidade do SUS é boa, mas precisa atender a toda a população.

O SUS tem um papel fundamental e não deve ser entregue ao setor privado. As novas tecnologias, como a telemedicina, e os novos processos de informação ajudarão o sistema a criar mais capacidade de atendimento e sem aumentar os custos.

Quais são as empresas do grupo e como atuam no mercado brasileiro?

No Brasil, temos várias empresas. A primeira, mais antiga e mais conhecida é a Ticket, que está no mercado há 44 anos. É o nosso maior negócio no país. Temos uma empresa no setor de mobilidade, a Repom, uma plataforma de serviços para os gestores de frota caminhão e de frete. Atendemos milhões de veículos do Brasil. O terceiro pilar está na área de pagamentos, que chamamos ESPP, Edenred Soluções Pré-pagas, que disponibiliza cartões pré-pagos para as empresas.

A Edenred é assim

  • Fundação da Ticket

    1962 (mundo); 1976 (Brasil)

  • Fundação da Edenred

    2010 (mundo e Brasil)

  • Funcionários diretos (2020)

    10 mil (mundo); 2.200 (Brasil)

  • Estabelecimentos credenciados

    2 milhões (mundo); 330 mil (Brasil)

  • Clientes

    850 mil (mundo); 130 mil (Brasil)

  • Usuários

    50 milhões (mundo); 7 milhões (Brasil)

  • Unidades

    4 escritórios (Brasil)

  • Países

    46

  • Participação da América Latina nos resultados

    36%

  • Ações sociais na pandemia

    Fundo de 15 milhões de euros (R$ 90,87 mi) para apoiar 60 iniciativas; 581 mil cestas básicas digitais via Ticket Alimentação no Brasil; Plataforma digital Ticket Em Casa para pequenos estabelecimentos; 3.000 consultas médicas online gratuitas (telemedicina) para caminhoneiros

Digitalização e delivery continuarão a crescer depois da quarentena

UOL - O que mudou no comportamento do consumidor neste momento e o que vai ficar no pós-pandemia?

Gilles Coccoli - Vejo duas coisas: a primeira é em relação aos restaurantes. Com as empresas fechadas, vimos uma explosão de pedidos por meio das plataformas de delivery. Esse comportamento, na minha visão, vai continuar depois da quarentena.

As pesquisas que fizemos com usuários e colaboradores mostram que ficar em casa, da forma como foi feito, não é uma solução boa, mas não houve uma repulsa, por isso, acredito que haverá uma adoção maior.

A segunda parte é a digitalização. Todos os [negócios] que tinham plataformas digitais viram o consumo aumentar muito. A pergunta que o consumidor faz é: se consegui fazer sem precisar sair de casa, por que voltaria a fazer isso? Um exemplo é a questão da contabilidade das organizações. A documentação foi digitalizada e funcionou bem.

Fiquei em quarentena em casa desde meados de março. Assinei digitalmente muito mais documentos nesses meses do que em todo o ano de 2019. Isso veio para ficar e acho ótimo.

Como o grupo lidou com a questão da quarentena e da pandemia?

Somos uma empresa razoavelmente digital e muito inovadora. Tomamos uma decisão naquela sexta-feira de março e, na segunda-feira, 97% dos nossos colaboradores já estavam em casa organizados para trabalhar normalmente.

O movimento de saída da quarentena pode ser até um pouco mais trabalhoso do que o movimento de entrada. Foi um aprendizado ao longo do tempo, mas sempre adotando conceitos básicos de proximidade.

Chegamos a criar um canal no Instagram no Brasil para ter uma relação direta com todos os colaboradores e estreitar as relações nesse momento de distanciamento.

Que mudanças foram feitas e que vão continuar depois da quarentena?

Já devolvemos o prédio! Estou brincando. Sou fã de inovação, de otimização das ferramentas. Com mais gente adotando e sabendo usar, essas ferramentas farão parte da nossa vida no futuro, não há dúvida.

A questão é: como reinventar o laço social do trabalho? O Teams, o Office 365 são ferramentas que vieram para ficar, mas não será 100%. Teremos de construir esse meio termo e haverá ondas de experimentação em relação a isso.

Uma pesquisa da Ticket mostra que as mulheres estão mais satisfeitas do que os homens com o teletrabalho. Por que isso acontece?

Um teletrabalho, um home office equilibrado, aumenta a qualidade de vida das pessoas porque elimina a questão do traslado. Na minha percepção, as reuniões e as interações ficaram mais eficientes. A tomada de decisão, durante o confinamento, melhorou porque aumentamos o foco. Fomos mais efetivos e diretos e aumentamos em até quatro vezes a velocidade e a clareza na tomada de decisão.

É possível computar aumento de produtividade em alguma área da empresa durante esse período?

Na área de tecnologia da informação, é possível verificar um aumento de produtividade. A entrega de projetos ficou acima da nossa expectativa e antes dos prazos estabelecidos anteriormente. Sabemos que, muitas vezes, projetos de TI tendem a ultrapassar o tempo. Neste período foi o contrário.

Percebemos que, em todas as áreas que exigem trabalho de concentração, em um ambiente certo de home office, o resultado é muito bom.

Em áreas que exigem criatividade e coparticipação, acredito que o home office não funciona muito bem. Discussões com pessoas em cantos diferentes da cidade é um pouco mais difícil. Precisamos tomar cuidado porque as consequências podem ser vistas apenas a médio e longo prazo.

A pandemia está decretando o final dos cartões de plástico?

A pandemia tem um impacto nisso. Não sei se é o fim, mas talvez seja o início do fim. Tenho todos os meus cartões no meu celular, mas ainda sou uma minoria.

Carine Wallauer/UOL Carine Wallauer/UOL

O país está acostumado a crises. Esta é muito maior do que as do passado, mas o impacto será menor do que, por exemplo, em alguns países da Europa.

Gilles Coccoli

Crise gera oportunidade de aquisições e novos negócios

UOL - Há perspectiva de crescimento dos negócios neste ano?

Gilles Coccoli - A questão é: sabemos como entramos nessa pandemia, mas não sabemos muito bem como vamos sair. Temos um processo de avaliação plurianual, que acontece no terceiro trimestre. Somos agressivos, ambiciosos, mas teremos que contar com a situação pós-pandemia do Brasil para definir em que fundações, quais os ativos e cenários poderemos projetar.

Nas crises, sempre há oportunidades para aquisições e novos investimentos.

Como está o cenário econômico para os pequenos negócios no país?

O tecido de pequenas empresas no Brasil é muito denso. É uma particularidade de países muito dinâmicos, como o Brasil. Houve reações diferentes em relação ao fechamento dos negócios. As empresas mais próximas de seus mercados e com menos endividamento estão conseguindo, evidentemente com muito impacto, passar a crise.

Mas temos do outro lado empresas, como os restaurantes, pequenas empresas em sua maioria, com três ou quatro colaboradores, e a situação está muito complexa. Um restaurante tem capacidade financeira para alguns dias apenas. Por isso montamos um fundo para ajudá-los.

A Edenred Global criou um fundo de 15 milhões de euros [R$ 90,3 milhões], abastecido a partir dos dividendos de 2019 que não foram pagos aos acionistas e da desistência de salário dos principais executivos do grupo durante os meses da pandemia. Esse dinheiro foi direcionado aos colaboradores e pequenas empresas que estão em necessidade.

Temos ajudado países na América Latina, como a Venezuela, onde temos uma operação, mas estamos ajudando também outros países.

Vocês têm um levantamento da quantidade de pequenos negócios que encerraram suas atividades?

Os dados estão mudando todos os dias. No delivery, o crescimento é sustentado a cada semana. Para evitar a quebra de alguns pequenos negócios, ajudamos alguns estabelecimentos a promover as cozinhas, trazendo os chefes de volta, ajudando no delivery. Mas tem empresas quebrando e vemos isso com muita pena porque são empreendedores, famílias, que não aguentaram a pressão e não conseguiram se proteger.

O senhor disse uma certa vez que o futuro é para quem sabe navegar no caos. Estamos no caos?

O caos é a forma suprema da disrupção. O Brasil não está no caos. Ele tem neste momento grandes desafios que vêm se somar a já outros desafios dos últimos anos.

Há uma peculiaridade do Brasil, e um pouco da região, que é positiva. O país está acostumado a crises. Essa é muito maior do que as do passado, mas o impacto será menor do que, por exemplo, em alguns países da Europa. No Brasil, muitas empresas quebram, mas a capacidade de se reerguer é muito mais forte do que a de outros países ou de outras regiões.

Brasil precisa de reformas e simplificação de impostos

Quais são as reformas que o Brasil precisa ainda fazer?

Gilles Coccoli - Conseguimos algumas, como do trabalho, da Previdência. Precisamos da administrativa e da tributária, com a simplificação dos impostos. Será um benefício enorme para o país se puder simplificar e colocar uma certa coerência na questão dos impostos.

Conheço a situação na França, onde há o IVA (Imposto sobre Valor Agregado), um imposto que não é cumulativo. No Brasil, investimos um certo tempo para ver o acumulado de um imposto sobre o outro. No final, é uma complicação para fazer um negócio acontecer e isso aloca mais recursos para resolver questões fiscais do que para resolver questões dos clientes.

Como a política interfere nos negócios?

Sempre tivemos uma certa desconexão entre as duas coisas [política e negócios]. A plataforma negócio tem conseguido avançar e se renovar. A plataforma política tem tido os seus altos e baixos e o que atrapalha mais os negócios são as mudanças de regras.

O mercado vale a pena, por isso, estamos adaptados com a carga fiscal pesada, a burocracia. O que é estressante é mudança constante das regras do jogo e isso não nos dá muita paz.

Como você vê a questão da diplomacia Brasil - França? Isso interfere no negócio da Edenred?

Apesar de alguns ruídos em alguns aspectos, não tem nenhum impacto nas operações das empresas francesas no dia a dia.

UOL - Qual a sua opinião sobre a questão de proteção de dados?

A proteção dos dados é relevante. É fácil? Não, não é fácil. É muita mudança, especialmente, nesta fase de transição. Pessoalmente, meu grande questionamento é qual vai ser o comportamento das pessoas em relação aos seus dados no futuro.

Tomo muito cuidado onde e como divulgar os meus dados, mas não sei se as futuras gerações estarão tão preocupadas com isso. Não sei se esse assunto será tão relevante quanto é hoje para os comportamentos e decisões futuras.

O outro ponto é o cuidado com ciberataques. Acredito ser impossível se precaver e não ter um ciberataque. A questão é como lidar com ele. A pergunta é: qual será a reação amanhã das novas gerações em relação a isso? Será um problema ou vou trocar minha senha e a vida continua? Isso para mim é o grande questionamento do comportamento futuro das novas gerações.

Como é viver no Brasil?

Morei na Turquia, em Londres, nos Estados Unidos, e o Brasil é um dos únicos países para onde as pessoas vêm e realmente querem ficar mais um ano, mais um ano e mais um ano. As oportunidades são grandes. Estou aqui há 25 anos e não posso dizer o contrário.

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