O ex-CEO das Americanas Miguel Gutierrez, apontado pela atual gestão da companhia como um dos responsáveis por esconder o rombo bilionário nas contas da varejista, afirmou que nenhuma decisão estratégica era tomada sem o conhecimento e anuência de seus acionistas de referência, em especial Carlos Alberto Sicupira.
A afirmação está registrada em depoimento em vídeo à CVM (Comissão de Valores Mobiliários), gravado em 16 de março. O UOL teve acesso exclusivo ao vídeo. No dia 21 de junho, Gutierrez repetiu a versão em depoimento à Polícia Federal, conforme cópia obtida pelo UOL, bem antes, portanto, da carta enviada por Gutierrez à CPI das Americanas (tornada pública na semana passada). Na comunicação por escrito aos parlamentares, o antigo CEO afirma que a gestão atual tenta blindar Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Sicupira dos malfeitos da administração contábil da companhia.
Segundo o comitê independente convocado pelo grupo para apurar o caso, a antiga diretoria das Americanas, Gutierrez incluído, "fraudou os resultados da companhia" para enganar o conselho e o mercado. Segundo o comitê, há pelo menos 25 indícios de materialidade que ligariam a antiga diretoria à fraude.
Nas três horas de depoimento à CVM, ao qual o UOL teve acesso, Gutierrez afirma que havia uma linha de comando segundo a qual nenhuma decisão importante era tomada sem o conhecimento e aprovação de Beto Sicupira.
O ex-CEO das Americanas, que ficou no cargo oficialmente até dezembro de 2022, afirma que, durante toda a sua gestão, sua ligação com Beto Sicupira foi "contínua" e "muito intensa" e se estendeu mesmo depois que o sócio deixou a presidência do conselho de administração da companhia, em 2020.
"O Beto, ou você não se dá com Beto ou se dá com Beto. É uma pessoa de personalidade muito, muito forte. Se eu estava há 20 anos me relacionando com Beto no cotidiano, não dá para agora eu vou falar com [Eduardo] Saggioro [que substituiu Sicupira na presidência do conselho de administração]", contou Gutierrez à CVM, em março.
Desde janeiro, a empresa está em recuperação judicial com mais de R$ 40 bilhões em dívidas declaradas, além de outros quase R$ 7 bilhões em debêntures. Em 11 de janeiro, foi revelado pelo substituto de Gutierrez, Sergio Rial, que ficou somente nove dias no cargo, que havia "inconsistências contábeis" de R$ 20 bilhões --isto é, o valor não estava registrado no balanço como dívida.
Em março, quando o depoimento de Gutierrez foi tomado, o caso não era tratado abertamente como fraude —tanto que a palavra sequer foi pronunciada pelos funcionários da autarquia.
À CVM o ex-CEO negou ter conhecimento das manobras para maquiar o balanço e esconder ao menos R$ 20 bilhões de dívidas e alegou não ter envolvimento direto com as áreas financeira e contábil. A negativa de conhecimento das operações que originaram o rombo foi repetida ao delegado da PF Acen Amaral Vatef em 21 de junho.
Com passaportes brasileiro e espanhol, Miguel Gutierrez está em Madri, onde estaria sendo submetido a um tratamento médico, de acordo com seus advogados.
Na carta à CPI das Americanas, o executivo afirmou que passou a ser seguido após dizer que pretendia falar abertamente à CPI, sem invocar o direito ao silêncio. Ele não deu detalhes sobre os responsáveis por segui-lo ou a mando de quem.
Gutierrez disse ainda que as acusações contra ele são falsas e têm como objetivo proteger os acionistas controladores das Americanas. Em reação às palavras do ex-CEO na semana passada, o trio formado por Sicupira, Lemann e Telles chamou o ex-homem de confiança de "malfeitor", um dos responsáveis por uma "fraude ardilosa".
A fraude nas Americanas é investigada também pelo Ministério Público Federal, que no mês passado fechou um acordo de delação premiada com Marcelo Nunes e Flávia Carneiro, ex-diretores das áreas financeira e de controladoria da empresa, respectivamente. Como revelou o UOL, alguns bancos, entre os principais credores do grupo, são céticos com o alcance da delação dos dois ex-executivos, caso ela poupe os acionistas.
No depoimento à CVM, Gutierrez detalhou como eram as relações de subordinação dentro da empresa, bem como algumas de suas práticas, como atrasos propositais de pagamento para pressionar fornecedores.
"O Beto, como presidente do conselho, era o meu chefe. E toda a interligação [minha com o conselho] era através do Beto. E o Beto saiu da chefia do conselho em 2020 —que foi um plano programado em 2019, ele ia sair para depois eu ir pro conselho novamente. Então, nesse período, meu contato com Beto sempre foi muito intenso", contou o ex-CEO. "Eu tinha uma relação com o Beto de 20 anos de trabalho. Você cria, obviamente, uma proximidade."
O ex-presidente das Americanas contou que Sicupira, que presidiu a empresa entre 1983 e 1991, "gosta muito do negócio" e sempre foi muito envolvido no dia a dia da companhia. "Aí meu contato sempre foi prioritariamente com o Beto."
Procurada pelo UOL, a atual direção das Americanas nega veementemente que qualquer decisão da companhia passasse pelo crivo de qualquer acionista.
Uma pessoa próxima ao trio disse que Gutierrez busca dar "um abraço de afogado" ao disseminar a versão de que Beto Sicupira conhecia todas as decisões das Americanas. Lemann, Telles e Sicupira têm negado, desde janeiro, quando o escândalo explodiu, que soubessem de qualquer má prática na área de contabilidade. As posições das Americanas e do trio às revelações trazidas pelo UOL estão registradas ao final deste texto.
Gutierrez contou uma história para exemplificar a força da presença de Sicupira e a falta de influência de Saggioro: em 2020, diante da falta de resposta do mercado às sucessivas mudanças na estrutura das Americanas —o preço da ação não subia—, o acionista decidiu que o problema da empresa era comunicação.
Foi criado, então, um comitê permanente de comunicação estratégica, que faria reuniões quinzenais. "Quem vai ser o grupo?", Gutierrez lembra ter perguntado. "Beto falou 'vai ser eu, Anna [Saicali, diretora de inovação] e você'. E o Saggioro? 'Ah, é. Bota o Saggioro'."
Segue Gutierrez: "Então Saggioro termina sendo uma pessoa que faz uma boa ata, tem uma proposta de agenda. Tem sua utilidade". Quando assumiu o comando do conselho de administração das Americanas, Saggioro também era presidente da LTS, holding de Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira, os acionistas de referência da varejista.
"A conversa termina sendo contínua", respondeu Gutierrez, sobre o fluxo de informações entre a direção e o conselho de administração.
Rial
De acordo com Gutierrez, a relação intensa com Sicupira durou até 1º de julho de 2022. Naquele dia, Sicupira anunciou aos diretores das Americanas que Sergio Rial seria o novo presidente da empresa, e assumiria a partir de janeiro de 2023.
O anúncio frustrou as expectativas de todos. Gutierrez contou, tanto no depoimento à CVM quanto no depoimento à PF, que sabia que seria substituído pelo menos desde 2019 —na época, Sicupira, então com 71 anos, disse que Gutierrez precisaria deixar o cargo por estar perto de completar 60 anos.
Em novembro de 2021, Sicupira reforçou com Gutierrez a necessidade de um plano de sucessão. Na época, as Americanas tinham quatro diretores: Gutierrez era o diretor-presidente; Timotheo Barros era o diretor das operações de lojas físicas; Márcio Cruz era o diretor de vendas digitais; e Anna Saicali era a diretora de novos negócios e inovação.
Ficou combinado, então, que o substituto de Gutierrez seria um dos três. No início de junho, Gutierrez contou ter recebido "uma demanda" de avaliar os candidatos a CEO "com uma empresa externa".
E tudo acabou descombinado com o anúncio de julho. A contratação de Rial foi comunicada ao mercado em 19 de agosto, por meio de um fato relevante. "Por que fazer isso? Não tem por que fazer isso", lamentou Gutierrez, em seu depoimento à CVM.
"Tudo é variável. Quando apareceu o Rial, a minha proximidade [com Beto Sicupira] desapareceu", disse Gutierrez, à CVM.
O executivo lembrou, então, de um episódio, ainda em 2022, sobre uma divergência entre ele e Rial que não conseguiram resolver. Decidiram, então, levar o caso ao presidente do conselho.
Resposta de Saggioro: "Resolve com o Rial". "Bom, nem precisava ter te ligado", respondeu Gutierrez, conforme o seu relato.
O ex-presidente das Americanas contou o episódio para ilustrar como o comando foi transferido a Sergio Rial mesmo antes de ele assumir como CEO da empresa.
No depoimento, Gutierrez contou que, a partir de julho de 2022, Rial começou a falar com diretores e executivos das Americanas. Em novembro, já convocava reuniões sem Gutierrez e tocava o dia a dia sozinho com os outros diretores.
A versão é confirmada pelos depoimentos de outros diretores das Americanas à PF, aos quais o UOL também teve acesso.
'O pessoal mentiu para mim'
Se Rial foi apresentado aos diretores das Americanas em julho, foi também em julho que caiu a ficha de Miguel Gutierrez a respeito do novo CEO: a contratação de Rial já estava certa pelo menos desde maio de 2022. Embora, em novembro de 2021, Gutierrez tenha sido incumbido por Sicupira de preparar sua sucessão entre um dos três diretores que estavam abaixo dele naquele momento.
"Em 25 de março, nós tivemos um almoço em que o pessoal mentiu para mim", disse ele à CVM.
Naquele dia, Beto Sicupira convocou um almoço com Gutierrez e os demais diretores, além de Eduardo Saggioro (presidente do conselho), para apresentar Rial "como um potencial membro do conselho", conforme contou Timotheo Barros, diretor de operações físicas, em depoimento à PF no dia 15 de março deste ano.
Não fazia sentido. Já na época, os diretores especularam que a intenção de Sicupira era substituir Gutierrez por Rial, como lembrou o ex-CEO das Americanas aos investigadores da CVM.
É que, quando as operações das Americanas e da B2W foram fundidas, em junho de 2021, os membros do conselho de administração da B2W foram transformados em "conselheiros independentes" do conselho de administração da nova empresa, "uma maneira de ninguém ficar de fora".
Ou seja, não havia espaço para Rial nas Americanas em outro lugar a não ser o de presidente da empresa. "Então ficou um negócio meio esquisito", comentou Gutierrez.
A impressão ruim a respeito do almoço não era infundada. Sergio Rial contou à CPI das Americanas na Câmara que, de fato, foi procurado por Sicupira para ser conselheiro da varejista —convite que ele disse ter recusado na época.
Mas, um mês depois, em abril, Sicupira voltou a entrar em contato. "Olha, as Americanas começaram um processo de sucessão do presidente atual, que está lá há muitos anos", disse o acionista, conforme o relato de Rial. Ele então topou participar do processo seletivo.
Em junho, novo telefonema: "Queremos você. Você é uma pessoa diferenciada", disse Sicupira, de acordo com o depoimento de Rial à CPI.
Oficialmente, Rial começou a trabalhar na empresa em 5 de setembro, por meio de um contrato de "consultoria estratégica e financeira" com validade de 1º de setembro a 31 de dezembro de 2022. Em 1º de janeiro de 2023, ele começaria como CEO.
Só que, em julho de 2022, Gutierrez tinha recebido de Sicupira a demanda de fazer um contrato para Rial, conforme contou o ex-presidente à CVM.
"Aí a pessoa [responsável pelo contrato] falou 'olha, recebi isso daqui para botar no papel'. Eu olhei e vi a data: 23 de maio de 2022", contou Gutierrez. O contrato, disse, já previa o período que Rial trabalharia como consultor e já previa que ele seria CEO. "Ele pactua a remuneração dele, carro particular, motorista, coisa que para nós não existia."
Assinavam o contrato Cláudio Garcia (presidente do comitê de gente), Sérgio Saggioro (então presidente do conselho), Beto Sicupira e o próprio Rial.
'Abraço de afogados'?
A afirmação de Gutierrez segundo a qual as decisões passavam por Beto Sicupira —o que as Americanas e os acionistas de referência negam— é a questão principal na determinação de responsabilidades pela maior fraude corporativa (pelo menos em termos de volume de dinheiro envolvido) já registrada na história do país.
Os pontos centrais da tese das Americanas são os seguintes: Gutierrez está fora do país, não contestou o mérito das acusações do comitê independente e busca envolver Sicupira para tentar se salvar.
Segundo assessoria de Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Telles, a fraude contábil produziu ganho para a antiga diretoria, mas não para os três acionistas de referência. Segundo nota do trio, nos últimos dez anos, os três receberam R$ 700 milhões em dividendos, mas aportaram R$ 2,3 bilhões em investimentos, tendo perdido R$ 1,6 bilhão neste período.
Desde a eclosão da crise, o valor de mercado da posição do trio na companhia encolheu R$ 3 bilhões.
O que dizem as Americanas:
A Americanas lamentam as informações inverídicas apresentadas pelo senhor Miguel Gutierrez, que tem como único objetivo eximir sua responsabilidade e sua relação direta com a fraude de resultados identificada. Desde a apresentação de provas sólidas e consistentes à Comissão Parlamentar de Inquérito há mais de três meses, que mostram seu envolvimento, Gutierrez não apresentou nenhuma contraprova que invalide as mesmas.
A companhia nega a afirmação de que todas as ações da antiga direção das Americanas eram submetidas para aprovação a qualquer acionista ou membro do Conselho de Administração. Como em qualquer companhia aberta e nos termos da legislação aplicável, decisões operacionais e do dia a dia das Americanas cabiam exclusivamente à diretoria, liderada pelo senhor Miguel por 20 anos. Em relação aos contratos de fornecedores, por exemplo, todas as decisões eram tomadas unicamente pela diretoria.
As Americanas reafirmam que a recuperação judicial em curso está acontecendo com êxito para a preservação da importante atividade econômica que representa e os milhares de empregos diretos e indiretos gerados em todo o país. E reforçam que é a maior interessada no esclarecimento dos fatos pelas autoridades competentes à frente das investigações.
Nota enviada pela atual gestão das Americanas ao UOL, no sábado, 9 de setembro.
O que dizem os acionistas de referência:
A assessoria de Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Telles reitera que os acionistas de referência estão totalmente engajados na construção de uma solução para pôr fim à recuperação judicial da companhia, de modo a preservar suas dezenas de milhares de empregos e relevante função social.
Ao longo dos últimos 10 anos, os acionistas de referência investiram R$ 2,3 bilhões nas Americanas e receberam em dividendos cerca de R$ 700 milhões, ou seja, perderam R$ 1,6 bilhão. No valor de mercado do ativo, a perda foi de mais de R$ 3 bilhões desde o início da crise. Eles ainda se comprometeram a aportar pelo menos mais R$ 10 bilhões para ajudar na recuperação da companhia.
Os acionistas de referência confiam nas autoridades competentes na investigação e punição dos responsáveis pela fraude que atingiu as Americanas, seus acionistas, empregados e colaboradores.
Nota enviada pela assessoria de Lemann, Telles e Sicupira ao UOL, no sábado, 9 de setembro.
O que diz a assessoria de Sergio Rial:
"Sergio Rial agiu como denunciante de boa-fé ao comunicar as inconsistências contábeis da Americanas em 11 de janeiro de 2023, e aguarda as providências cabíveis para a responsabilização dos autores da fraude bilionária a partir das delações já homologadas e da continuidade das investigações."
Nota enviada pela assessoria de Rial ao UOL, na segunda, 11 de setembro.
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