'Meus pais financiaram carro no meu nome, que ficou sujo', diz professora
Bárbara Muniz Vieira
Colaboração para o UOL, de Ottawa
21/11/2023 04h00
A professora M.M., 32, emprestou o nome para os pais, que fizeram compras e financiamentos. Depois de não conseguir pagar a fatura, ela ficou com nome sujo por anos. "Aos 16 eu já tinha alguns cartões de lojas de roupa e um financiamento de carro feito pelos meus pais. As dívidas começaram a virar uma bola de neve e antes dos 20 meu nome já estava sujo".
Entrou no rotativo do cartão e ficou com trauma
O pesadelo da professora começou quando ela e os pais só conseguiram pagar o valor mínimo do cartão de crédito. "Daí uma dívida foi puxando a outra. Cartão do banco, cartão de supermercado, cartão de crédito de loja de roupa e de supermercado? Meus pais e eu tivemos algum imprevisto e não conseguimos mais pagar", relembra ela, que não se recorda, porém, dos valores devidos e pagos.
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Para M., lidar com as dívidas é "uma espécie de amadurecimento forçado". "É quase um rito de passagem para jovens que vêm de uma família de classe média baixa ou pobre." Segundo ela, o estresse maior era ter de atender as ligações, quase que diárias, de cobrança.
Levou um susto com os juros do cartão de crédito. Os juros rotativos do cartão de crédito têm as maiores taxas do mercado e são um dos grandes responsáveis pelo superendividamento no Brasil. "Tudo isso, sem contar aquele susto: 'nossa, como assim a dívida ficou deste tamanho?!', já que juros de cartão de crédito são uma coisa assustadora. Fiquei com trauma de cartão de crédito", diz a professora. Ela não informou qual o valor total da dívida ou quanto pagou de juros.
Além do estresse de saber que o nome está sujo, sofri com o constante assédio de ligações de cobrança e com o fato de, não poder contrair novas dívidas, ainda que fossem simples. Cheguei a tentar fazer academia uma época, o plano era feito com emissão de promissórias, mas não podiam fazer pra mim pois meu nome estava sujo e eu não tinha limite no cartão para pagar o plano parcelado.
M.M., professora
Paga uma dívida há 15 anos
Ela não é a única. Segundo o Mapa da Inadimplência da Serasa, jovens de 18 a 25 anos representavam 12,5% do total de inadimplentes no Brasil em setembro deste ano — o que representa 8,99 milhões de pessoas. Nesta mesma faixa etária, 11% dos endividados emprestaram o nome e mais 9% estão nesta situação porque alguém comprou no nome deles e não fez o pagamento, conforme a Pesquisa Perfil e Comportamento do Endividamento Brasileiro 2023, também da Serasa.
O publicitário Átila Frank, 33, há 15 anos paga dívidas que a mãe fez em um cartão de crédito no seu nome. A dívida inicial era de R$ 5.000, mas ficou bem maior. Hoje está com nome limpo, mas ainda paga mensalmente o saldo restante com o banco.
Dificuldade em alugar imóvel. O publicitário conta que não cortou as relações com a mãe e que ela ajudou a pagar parte da dívida, mas as consequências do ter o nome sujo na praça não puderam ser evitadas. "Tive muitos anos com problemas. Não podia comprar nada e nem ter nada no meu nome. Eu moro sozinho há uns anos, então isso dificultava muito a minha vida. Sempre tinha de pedir ajuda das pessoas para alugar casa", afirma ele.
Tive o nome negativado aos 18 anos e não tive responsabilidade sobre isso, eram contas da minha mãe no meu cartão. A dívida hoje está em pouco menos de R$ 3.000, mas já esteve maior. Consegui tirar o meu nome do vermelho, mas continuo pagando todo mês. Demorou um tempo para conseguir me organizar financeiramente. Nunca perdi emprego, mas demorei uns 10 anos para ter plenitude de crédito.
Átila Frank
Herdou dívidas da empresa do pai
Herdou empresa, mas só ficaram as dívidas. Ao completar 18 anos, o engenheiro civil V.C, hoje com 30 anos, passou a ser sócio-proprietário das empresas do pai. "Meu pai faleceu no ano passado e eu herdei as dívidas, que somam R$ 110 mil atualmente. Nunca fui proprietário de fato de nada, nunca recebi pró-labore, mas herdei as dívidas relacionadas aos CNPJs criados por ele na época que estão vinculados ao meu CPF." De acordo com o engenheiro, o valor inicial das dívidas era de cerca de R$ 70 mil.
Teve problemas com financiamento estudantil. O engenheiro conta que não pôde usar o Prouni por ser sócio-proprietário de empresas e quase ficou sem o Fies (Fundo de Financiamento Estudantil). "Foi por pouco, tive de dar explicações à assistente social e quase não me formei. Hoje, eu não consigo nenhum tipo de financiamento nem ser um empreendedor de fato por cauda dos problemas com meus CNPJs. Além disso, tem o constrangimento de na minha idade ter dificuldade de ter um cartão de crédito ou financiar um carro, mas vamos caminhando."
De quem é a responsabilidade?
Se foram os pais que gastaram, a responsabilidade em pagar as dívidas não é deles? Não. A responsabilidade da dívida nesses casos é do titular das contas, ainda que tenha sido feita pelos pais, como explica a consultora em educação financeira Cassia D'Aquino, que chama a situação em que os pais pedem aos filhos para usar o crédito deles de "dilema".
Por lei, exceto em casos de furto ou fraude, quando é preciso fazer um boletim de ocorrência, o titular do cartão é o único responsável pelas transações. "Todo cliente, ao receber um cartão, assume estar ciente dessas condições. Mas a dificuldade que muitos jovens encontram para driblar as pressões da família e dos amigos para emprestar cartões deveria ser parte das preocupações das administradoras de crédito", afirma Cássia.
A pessoa com a conta no banco ou que possui um cartão de crédito é o responsável legal pelo uso desses produtos. Cabe a ela manter sigilo em relação às senhas bancárias, bem como zelar pelo uso prudente do cartão. O problema, claro, é a pressão familiar para que o empréstimo seja feito ou para que o cartão, seja compartilhado. Ficamos, então, com um dilema: a pessoa tem acesso aos produtos financeiros, mas não tem maturidade, estrutura emocional ou condições práticas de resistir à pressão da família. Os bancos e administradoras de crédito deveriam se atentar para esse problema e tratar de informar, com máxima clareza, aos jovens sobre as consequências dos compromissos financeiros que assumirem.
Cassia D'Aquino, consultora financeira
O que é e quais as consequências de ter o "nome sujo"?
O termo "nome sujo" ou "nome sujo na praça" é utilizado para se referir a pessoas negativadas, inadimplentes e com o CPF em empresas de crédito, como a Serasa. A empresa credora solicita a Serasa a inclusão de dívida no cadastro de inadimplentes, que envia um comunicado prévio ao consumidor, informando a existência da dívida, e aponta um prazo para regularização. Se isso não acontecer, o nome do devedor pode ser negativado.
Com nome negativado, a primeira dificuldade é a de conseguir crediário. O devedor vai ter mais dificuldade para ter crédito aprovado, incluindo aquele crediário na loja ou um cartão de crédito solicitado ao banco, financiamentos e empréstimos. Os bancos podem cancelar o cheque especial ou deixar de aumentar o limite do cartão de crédito — o que dificulta ainda mais as opções de levantar dinheiro para quitar a dívida.
O Serasa Score pode cair, a pontuação que indica ao mercado a probabilidade de o consumidor pagar as contas em dia. Nessa situação, a dica da Serasa é negociar a dívida quanto antes.
Ser barrado em cargos públicos. Alguns editais de concursos para serviços públicos determinam que uma pessoa inadimplente não pode assumir determinados cargos. Isso ocorre especialmente em instituições financeiras. Há casos de concursados que conseguiram na Justiça o direito ao cargo, mas esse processo pode levar anos e ser desgastante.
É verdade que a dívida "caduca" e some?
Não. Mesmo que a dívida ultrapasse cinco anos e saia do cadastro da Serasa, o débito não some. O credor ainda ficará com o valor pendente de pagamento e poderá ser cobrado. Por isso, segundo a Serasa, o melhor caminho é quitar a dívida quanto antes e deixar a lista de inadimplentes