Falta de apoio a eventos da cultura negra é 'miopia' das marcas?

A cidade de Salvador recebe, durante este mês de novembro, um calendário que celebra a história e a cultura negra da sua população. Mas nem mesmo a data comemorativa deste 20 de novembro, dia da consciência negra, foi capaz de atrair o interesse do mercado publicitário.

Pedro Tourinho, baiano e secretário de cultura e turismo (Secult) de Salvador, manifestou-se no Linkedin: "Salvador irá receber mais de 20 eventos produzidos por e para pessoas negras. Vamos receber artistas internacionais do nível de Viola Davis, Ângela Basset, Victoria Moné (...) A prefeitura está apoiando tudo sozinha. Nenhuma marca do país chegou junto dessa programação."

Não se trata de uma questão pontual. O secretário abre um debate sobre a falta de apoio do mercado publicitário a eventos produzidos para a comunidade que admira a cultura negra em todo o país: ano após ano, as empresas continuam perdendo oportunidades em se aproximar de mais da metade da população brasileira, que se considera preta ou parda. Ou de ampliar o eixo geográfico de suas ações para além de Rio e São Paulo.

O que aconteceu

A Prefeitura de Salvador criou, este ano, o "Novembro Salvador Capital Afro". O calendário de eventos pretende exaltar a ancestralidade negra da capital baiana.

A agenda possui quase 20 eventos, entre eventos de música, cinema, desfiles de moda e festivais de empreendedorismo e inovação. Quase nenhum, porém, tem patrocínio e apoio de marcas.

Um exemplo é o festival internacional Liberatum, que teve apoio apenas do Grupo Gol Smiles, como companhia aérea oficial do evento, e da cerveja Budweiser. O Liberatum aconteceu no começo do mês, com a presença de nomes como as atrizes norte-americanas Angela Basset e Viola Davis.

Já o festival Afropunk, um dos maiores festivais de cultura negra do mundo e que aconteceu nos dias 18 e 19 de novembro, teve apoio da Gol Smiles e patrocínio de Valorant e Smirnoff.

O Festival Afrofuturismo Vale do Dendê, que reuniu especialistas negros em tecnologia e inovação de todo o Brasil, teve patrocínio de iFood e YouTube.

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A cantora Alcione foi destaque no Afropunk deste ano
A cantora Alcione foi destaque no Afropunk deste ano Imagem: Divulgação/Afropunk/Victor Carvalho

Para Pedro Tourinho, há uma grande falta de visão das marcas em não estarem presentes em tantos eventos ligados à cultura negra.

Como essa movimentação de cultura negra não tem espaço no mercado de patrocínios, no mercado publicitário? Esse questionamento é que temos que fazer: como uma marca investe R$ 20 milhões para produzir um estande em um festival em São Paulo e no Rio de Janeiro e não coloca um valor desse em um ano todo em outras capitais?
Pedro Tourinho

30 marcas em São Paulo. Quantas em Salvador?

Tourinho cita os valores investidos pelas marcas em festivais de música como o The Town, realizado no mês passado em São Paulo, e no Rock in Rio, como exemplo dessa "miopia cultural" - o The Town, por exemplo, teve mais de 30 marcas entre patrocinadoras e apoiadoras este ano.

Para o executivo, que já atuou nas emissoras Globo e Record, foi empresários de artistas e é um dos fundadores da Soko, agência de publicidade que atende empresas como Ambev, Unilever e Pernord Ricard, há uma vaidade muito grande dos diretores de marketing em estarem nesses eventos no eixo Rio-São Paulo, sem que eles prestem atenção ao resto do país.

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As marcas precisam pensar o quanto disso faz sentido? Como se justifica isso? Empresas que se dizem nacionais não podem ter esse tipo de atitude. Qual é a métrica utilizada? Quando conversei com alguns diretores, senti até um certo cinismo nas respostas. Mais uma vez o eixo Rio/SP explora culturalmente o país. Potencializar a diversidade é a única saída para nosso país.
Pedro Tourinho

Dimensões que afastam marcas de eventos negros

Para Paulo Rogerio Nunes, consultor em diversidade, cofundador da Vale do Dendê e professor da Fundação Dom Cabral, as empresas precisam olhar para esse assunto não como tema social e político, mas como de negócios.

Me surpreende como, em pleno 2023, as marcas ainda não se atentaram a isso. Não é apenas pelo perfil demográfico: há o psicográfico também. Quase 70% da população quer conhecer a cultura negra, gostam da cultura negra. A cultura negra, por exemplo, dita a moda global há tempos. Essa pequenez me espanta.
Paulo Rogério Nunes

Para o consultor, ainda existem outras 2 dimensões que se cruzam nesse tema. A primeira é racial. Para ele, apesar de ondas de boas iniciativas, não há uma consistência nesses apoios. Por outro lado, há também a questão regional, que ele trata como um "tabu" para as marcas.

Tudo fica preso a uma ou duas cidades. O potencial criativo de uma cidade como Salvador, por exemplo, fica subutilizado. Agências de propaganda deveriam, na verdade, ter equipes trabalhando aqui, uma cidade que é um celeiro cultural.
Paulo Rogério Nunes

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Um exemplo é o Festival BR135, maior festival de música do Maranhão, que acontece neste final de semana, em São Luís. O festival, que compõe o recém-criado Circuito Amazônico de Festivais, não tem patrocínio de nenhuma marca nacional.

Já o "Novembro Salvador Capital Afro" vai até o fim do mês. Na semana que vem, por exemplo, a cidade recebe ainda o Festival Internacional do Audiovisual Negro do Brasil (FIANB), um dos maiores festivais de cinema negro do país e o Festival Salvador Capital Afro, que abordará empreendedorismo, negócios, música e economia criativa focado no público negro.

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