Como os 'piratas' do Mar Vermelho impactam a economia global?
Os houthis fizeram esta semana o primeiro ataque mortal a um navio comercial que passava pelo Mar Vermelho. Três marinheiros morreram e quatro ficaram feridos. A atuação do grupo na região começou no final do ano passado, como uma forma de retaliação contra Israel pelo conflito contra a Palestina e pela atuação militar do país em Gaza. Especialistas alertam sobre o impacto que os ataques podem ter para a economia global.
Quem são os houthis
Os navios do Mar Vermelho estão sendo atacados pela milícia dos houthis desde o final do ano passado. O grupo alega que o movimento é uma retaliação contra Israel pelo conflito com a Palestina. Os houthis são do Iêmen, e integram um grupo político e militar — considerado por alguns como uma milícia e classificado como "força terrorista global" pelos Estados Unidos — que representa os xiitas zaiditas.
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A embarcação atacada nesta semana foi o M/V True Confidence, um graneleiro com bandeira de Barbados e propriedade da Libéria, informou o Centcom (Comando Central dos Estados Unido) em comunicado. O navio foi atingido a cerca de 93 km da costa do porto de Áden, no Iêmen, por um míssil lançado pelos rebeldes. Além de três mortos, ao menos quatro tripulantes ficaram feridos.
Outro navio cargueiro britânico afundou esta semana. Trata-se do Rubymar, que foi atacado pelo grupo no final de fevereiro. A informação também foi confirmada pelo Centcom, que divulgou imagens da embarcação pelo X (antigo Twitter).
Sinking of Motor Vessel?Rubymar Risks Environmental?Damage
-- U.S. Central Command (@CENTCOM) March 3, 2024
On Mar. 2 at approximately 2:15 a.m., MV Rubymar, a Belize-flagged, UK-owned bulk carrier, sank in the Red Sea after being struck by an Iranian-backed Houthi terrorist anti-ship ballistic missile on Feb. 18.
The ship? pic.twitter.com/fRUM4ll4cY
O grupo dos houthis surgiu em 1990. Seu nome vem do seu fundador, Houssein al Houthi (1959-2004), um deputado no Iêmen que se opunha ao governo de Ali Abdullah Saleh (1942-2017).
Os protestos da Primavera Árabe, em 2011, suscitaram a revolta contra o então presidente Abed Rabbo Mansur Al-Hadi. Os houthis acusaram o novo governo de marginalizar os zaiditas e de ser próximo dos Estados Unidos e de Israel. Em 2014, os houthis se rebelaram contra o governo de Hadi e começaram a dominar partes do país, inclusive a capital do Iêmen, Sanaa.
Os houthis têm como lema "Deus é grande. Morte aos Estados Unidos. Morte a Israel. Maldição aos judeus e vitória para o Islã". O grupo se considera parte do chamado "eixo da resistência" liderado pelo Irã contra Israel, os Estados Unidos e o Ocidente em geral.
Em novembro, o grupo sequestrou a embarcação israelita Galaxy Leader. Eles ainda ameaçaram atacar qualquer navio a caminho de Israel caso o transporte de mais alimentos e medicamentos para Gaza não fosse autorizado. Em janeiro, o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução exigindo que o grupo encerrasse os ataques.
O movimento dos houthis, de atacar os navios, tem sofrido represálias. A coalizão naval Operation Prospetiry Guardian (Operação Guardião da Prosperidade), liderada pelos Estados Unidos e composta por diversos países foi anunciada no final do ano pelo Pentágono para patrulhar a região do Mar Vermelho e do Golfo de Aden, na região do mar de Omã. Na ocasião, o Abdel-Malek al-Houthi, líder do grupo iemenita, disse que se os EUA se envolvessem mais, os houthis "não ficariam de braços cruzados" e "atacariam seus navios e interesses com mísseis".
Como os ataques impactam o comércio global?
O canal de Suez é uma via marítima navegável localizada no Egito, entre o Mar Mediterrâneo e o Mar Vermelho. A região é extremamente importante para o comércio mundial. É a principal rota entre Europa e Ásia, que permite que os navios não precisem contornar o Cabo da Boa Esperança, na África do Sul, para chegar aos seus destinos.
Desde o início dos ataques, o tráfego do canal caiu 42% em comparação com o que é considerado o seu pico, no início de 2023. O trânsito semanal de navios porta-contêineres teve queda de 67%. Os dados são da UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), divulgados no relatório "Navegando em águas turbulentas: o impacto no comércio global da interrupção das rotas marítimas no Mar Vermelho, no Mar Negro e no Canal do Panamá".
O relatório aponta cerca 22% do comércio mundial de contêineres marítimos passou pelo Canal de Suez em 2023. Por ali, são transportadas mercadorias como gás natural, petróleo, automóveis, matérias-primas, produtos manufaturados e componentes industriais para o Oceano Índico, o Mar Mediterrâneo e o Oceano Atlântico.
A alternativa tem sido percorrer um caminho mais longo — e, consequentemente, mais custoso. Os navios precisam contornar a África, por meio do Cabo da Boa Esperança. "O Canal de Suez é uma rota fundamental, imprescindível para o comércio internacional. Esses ataques fazem com que essas embarcações tenham que estabelecer uma nova rota, essa nova rota tem custos muito maiores de navegação, é muito mais longa e isso traz grandes prejuízos para as companhias mercantes e eleva os preços das mercadorias no plano internacional", explica Alberto do Amaral Júnior, professor associado no departamento de Direito Internacional da Faculdade de Direito da USP.
Diversos países da África Oriental também dependem do Canal de Suez. Neste aspecto, a UNCTAD diz que a mudança de rota traz uma "pressão adicional sobre as economias em desenvolvimento". Os dados divulgados no relatório indicam que 31% do volume do comércio exterior do Djibuti (país que faz fronteira com a Etiópia, Sudão e Somália) vem pelo canal. No Sudão são 34%, no Quênia, 15%, e na Tanzânia, 10%.
O deslocamento de operações é inevitável. Além dos petroleiros, caiu mais da metade o número de navios especializados no transporte de automóveis que utilizam o Mar Vermelho em dezembro de 2023, em comparação com o mesmo período de 2022. Além disso, praticamente nenhum navio de transporte de gás natural liquefeito tem utilizado a rota, o que também impacta o preço do gás.
Desde o início do conflito, algumas empresas já suspenderam o transporte que passa na região. É o caso da petrolífera BP, AP Moller-Maersk, Hapag Lloyd, CMA CGM, MSC, Frontline e outras.
Pode faltar produto?
Interromper o transporte por muito tempo ameaça as cadeias de abastecimento globais e eleva preços, o que impacta a inflação.
Além disso, os preços da energia estão subindo a medida que o trânsito de gás é interrompido, o que tem um impacto direto no fornecimento e nos preços da energia, especialmente na Europa. A crise também poderá ter um impacto potencial nos preços globais dos alimentos, com distâncias mais longas e taxas de frete mais elevadas, resultando potencialmente em aumento de custos. As perturbações nos embarques de cereais provenientes da Europa, da Rússia e da Ucrânia representam riscos para a segurança alimentar global, afetando os consumidores e reduzindo os preços pagos aos produtores.
Trecho do relatório da UNCTAD
Alberto pondera que as mercadorias podem demorar mais tempo para chegar, mas ainda não é possível falar em desabastecimento. Por outro lado, não é um risco que pode ser "descartado". "O que existe no momento é o aumento de custo para as companhias dos produtos, para o consumidor final. Há a possibilidade sim, não se sabe qual será a conduta dos houthis daqui para rente, tudo indica que devem continuar atacando as embarcações, dos EUA, Grã Bretanha; embarcações de diversos países, afetando, inclusive, um navio que transportava milho para o Brasil. Não se sabe ao certo qual será o impacto futuro desses ataques, eles certamente serão grandes".
O professor se refere ao ataque feito em fevereiro deste ano. Na ocasião, os houthis dispararam dois mísseis em direção a Bab al-Mandeb, estreito que separa a Ásia e a África. O navio MV Star Iris foi atingido e sofreu alguns danos. A embarcação transitava pelo Mar Vermelho transportando milho do Brasil para Bandar Iman Khomeini, no Irã, informou o Comando Central dos EUA.
Houthi Attack in Bab al-Mandeb
-- U.S. Central Command (@CENTCOM) February 13, 2024
On Feb. 12 from 3:30 to 3:45 a.m. (Sanaa time), Iranian-backed Houthi militants fired two missiles from Houthi-controlled areas of Yemen toward the Bab al-Mandeb. Both missiles were launched toward MV Star Iris, a Greek-owned, Marshall? pic.twitter.com/vfihRaw0rr
Os impactos na taxa de frete dependem do setor. Os segmentos de bens de consumo e produtos manufaturados lidam com aumentos mais acentuado, aponta a UNCTAD. As taxas de frete de contêineres nas rotas Ásia-Pacífico para a Europa aumentaram acentuadamente desde novembro de 2023. Na última semana de dezembro, houve um aumento recorde de US$ 500.
As taxas médias do chamado frete spot (contratado de forma esporádica para realizar transporte com urgência) de contêineres de Xangai no início de fevereiro de 2024 mais que dobraram. Houve um aumento de 122% mês anterior. Ainda segundo a UNCTAD, as taxas de Xangai para a Europa mais que triplicaram, saltando 256%.
Os aumentos não deixam de ser sentidos em locais mais distantes. É o caso das rotas que ligam a Ásia à costa oeste dos Estados Unidos, onde as taxas aumentaram 130% desde o início de novembro.
Brasil pode ser afetado?
O Brasil pode sentir menos do que outros países. Mas como já mencionado, o Canal de Suez é extremamente importante para o comércio global. Aluísio Sobreira, diretor da AEB (Associação de Comércio Exterior do Brasil), explica que o Brasil tem um share (participação) de apenas 2% no movimento mundial de contêineres. São cerca de 12 milhões de contêineres de 20 pés por ano, contra 43 milhões na China e 35 milhões em Singapura, por exemplo.
O país exporta muitas commodities, e o diretor lembra que o navio que foi precisa voltar. "Tudo indica que não é um efeito que vai ser resolvido no curto prazo. [O movimento] É muito pernicioso para o comércio marítimo internacional, a gente tem um efeito menor, mas não desprezível", diz.
98% das exportações brasileiras são realizadas pelo mar, explica Aluísio. "Produzimos muita commodity, somos os maiores exportadores de soja, o terceiro [maior] em milho, o maior em carne, o primeiro em açúcar. Tudo isso vai de navio. O aumento do frete diminui a nossa competitividade, todo mundo é prejudicado. O efeito não é localizado, ele é distribuído na economia mundial e para a gente, que tem produtos de menor valor agregado, impacta mais. No contêiner expresso, [o impacto] não é tão grande, mas as viagens mais longas acabam impactando sim a nossa economia", diz Aluísio.
Arno Gleisner, diretor de Comércio Exterior da Cisbra (Câmara de Comércio, Indústria e Serviços do Brasil) tem uma visão mais otimista. Ele avalia que passados alguns meses desde o início dos ataques, muitas coisas "já foram reajustadas". "Quando começa uma crise dessa, o desarranjo é grande. Mas depois, com o tempo, o mercado se reajusta. Em primeiro lugar, atinge os países do Golfo, países que estão naquela região. A rota da Ásia para o Brasil pode perfeitamente ser feita pelo sul da África", diz.
Mas é difícil saber como o conflito pode escalar. A guerra entre Israel e Hamas já dura cinco meses e deixou mais de 30 mil mortos na região de Gaza. A maioria é palestina. Não há qualquer sinalização sobre um cessar-fogo em breve.
Os houthis atacam embarcações que transitam pelo Mar Vermelho de diferentes nacionalidades. A continuidade dos ataques provoca retaliação. "Isso pode gerar uma desestabilização da ordem mundial, a guerra pode ganhar outros contornos, pode não se circunscrever apenas entre Israel e Hamas, pode envolver outros atores, o Hezbollah é um deles, o Irã é aliado do Hezbollah e isso tem consequências enormes para o comércio global, para o Mar Vermelho, para o Canal de Suez. Não se sabe se pode ter bloqueios, isso traz consequências para um eventual aumento de preços, elevação da inflação nos países Ocidentais e riscos de desabastecimento", diz Alberto, da USP.
A guerra entre Rússia e Ucrânia, que teve início em fevereiro de 2022, já mostrou como "distâncias mais longas e taxas de frete mais elevadas podem afetar os preços dos alimentos", alerta o órgão. O conflito exacerbou a tendência de aumento das distâncias para a carga marítima, especialmente para o comércio de petróleo e cereais.
A UNCTAD também alerta para o custo ambiental que a mudança nas rotas pode trazer. Isso porque para minimizar os impactos do atraso, as embarcações estão navegando mais rápido — e, por isso, estão consumindo mais combustível e emitindo mais monóxido de carbono na atmosfera.
Isto é particularmente evidente entre os navios porta-contêineres, onde um aumento de 1% na velocidade normalmente leva a um aumento de 2,2% no consumo de combustível. Por exemplo, acelerar de 14 para 16 nós (25,9 para 29,6 km/h) aumenta o consumo de combustível por milha em 31%. Como resultado, as distâncias mais longas causadas pelo reencaminhamento do Canal de Suez para o Cabo da Boa Esperança implicam um aumento de 70% nas emissões de gases com efeito de estufa numa viagem de ida e volta de Singapura ao Norte da Europa.
Trecho do relatório da UNCTAD
*Com Reuters, AFP e Deustche Welle