TJ-SP: renda mínima após parcelas de dívidas deve ser de um salário mínimo
Ao julgar um caso de superendividamento de um agente penitenciário, desembargadores do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) decidiram que a renda mínima do devedor após o desconto das cobranças mensais deve ser de um salário mínimo (R$ 1.410). É mais que o dobro definido por um decreto presidencial de 2023, de R$ 600.
O que aconteceu
Agente penitenciário fez dívidas com oito instituições financeiras; após parcelas, sobravam R$ 233 do salário de R$ 5.453. A situação se enquadra no conceito de superendividamento, quando é considerado que o devedor não consegue pagar tudo que deve sem comprometer uma renda mínima para viver — chamada de "mínimo existencial".
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Desembargadores do TJ-SP estipularam que o devedor deve ter acesso a um "mínimo existencial" de um salário mínimo. Assim, as dívidas devem ser renegociadas, com parcelas menores e prazo mais longo. A decisão atendeu a um recurso da defesa do agente penitenciário. Cabe recurso dos bancos. Em julgamento de primeira instância, ficou estipulado que os descontos estavam de acordo com a lei.
A decisão contesta um decreto presidencial, assinado por Lula em 2023, que fixou o "mínimo existencial" em R$ 600. O decreto regulamenta a Lei de Superendividamento (Lei 14.181/2021), que exige a garantia de um "mínimo existencial" nos acordos de renegociação de dívidas, mas não define qual seria o valor.
Em 2022, um decreto do então presidente Jair Bolsonaro havia fixado um valor ainda mais baixo, de 25% do salário mínimo (na época, R$ 303). Membros do Ministério Público e da Defensoria Pública acionaram o STF contra a norma, alegando que o valor era incompatível com a dignidade humana. Após pressão, o governo Lula ampliou o valor. Mas a Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep) voltou a acionar o STF contra o valor.
Para os desembargadores do TJ-SP, o valor atual de R$ 600 "não é suficiente". Para referência, citam que a cesta básica na cidade de São Paulo custa em média R$ 800. Além disso, contestam que o decreto presidencial "não previu nenhuma forma de correção monetária". Por isso, os R$ 600 seriam "apenas uma mera referência".
O mínimo existencial, respeitando os entendimentos contrários, deve abranger a moradia, a alimentação e as tarifas de serviços básicos, como água, energia e gás. Isso é o mínimo para viver em sociedade.
Trecho do acórdão da 22ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, de 21 de novembro
Desembargadores também contestaram entendimento da Lei do Superendividamento. A lei definiu que os descontos de crédito consignado — que são feitos diretamente na folha de pagamento do salário, aposentadoria ou benefício social — não devem ser incluídos no cálculo do "mínimo existencial". "Sempre com o devido respeito, inconcebível a desconsideração das operações de crédito consignado (...) para aferição do mínimo existencial e para renegociação de dívidas", segundo o acórdão do TJ-SP.
Possíveis repercussões
O entendimento do TJ-SP se aplica a este caso específico apenas. Ou seja, não é um caso de repercussão geral, quando um entendimento passa a ser adotado em todos os casos relacionados, após decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) ou STJ (Superior Tribunal de Justiça).
Mas é possível que, a partir de agora, outras decisões usem o acórdão do TJ-SP como referência. Para Rommel Andriotti, professor de direito privado no Mackenzie e especialista em repactuação de créditos, advogados devem começar a citar a decisão em suas petições de primeira instância, pedindo a definição do "mínimo existencial" em um salário mínimo e não em R$ 600. Da mesma forma, juízes em primeira instância também podem se referir ao acórdão em suas decisões.
Uma limitação para o entendimento do TJ-SP são os empréstimos consignados para aposentadorias e benefícios de um salário mínimo. Nesses casos, a renda disponível após as parcelas será inferior a um salário mínimo.
A decisão do TJ-SP abre um precedente para ser usado em outros casos. Não só em São Paulo, mas em outros estados, já que interpreta uma lei nacional [a Lei de Superendividamento e o decreto presidencial].
Rommel Andriotti, professor de direito privado no Mackenzie
É muito difícil tabelar qual é o "mínimo existencial". Depende da conjuntura de cada família. Mas o governo anterior resolveu tabelar em R$ 303, que é um acinte. O governo atual ampliou para R$ 600. Esses valores não têm coerência nenhuma, é simplesmente se curvar ao lobby do sistema bancário. Já o entendimento do TJ-SP é coerente, porque usa como referência o salário que a lei define como mínimo.
Antônio Carlos Fontes Cintra, coordenador da Comissão Temática dos Direitos do Consumidor da Anadep (Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos)