Quem são os "invisíveis"?

38 milhões de pobres sem carteira e nenhum auxílio social foram "descobertos" pelo governo na pandemia

Ricardo Marchesan, Henrique Santiago, Carlos Madeiro e Luciana Cavalcante Do UOL em São Paulo e colaboração para o UOL em Maceió, São Paulo e Belém Dudu Contursi/UAI Foto/Folhapress

38,1 milhões. Esse é o número de brasileiros que, segundo o ministro da Economia Paulo Guedes, eram "invisíveis" e foram "descobertos" por meio do auxílio emergencial. Na definição, são pessoas que não tinham carteira assinada nem recebiam algum benefício social antes de terem direito ao auxílio.

"Simplesmente não há registro [desses trabalhadores]", disse Guedes, em junho.

São pessoas como Maria Daniela, que mora num barraco de madeira e plástico numa favela de Maceió (AL), sobrevivendo com no máximo R$ 500 por mês para ela e o marido, ambos catadores de um tipo de molusco. Ou como Débora, faxineira em São Paulo que sustenta cinco filhos e três netos sem nunca ter tido carteira assinada.

O UOL conta a seguir histórias dessas pessoas que, de acordo com o governo, estavam invisíveis.

RICARDO MORAES

"Invisíveis" estão a um palmo dos nossos olhos

No total, 68,1 milhões de pessoas receberam ao menos uma parcela do auxílio. Desses, 19,5 milhões já recebiam Bolsa Família e 10,5 milhões estavam no Cadastro Único, base do governo para inscrição em benefícios sociais.

Os demais 38,1 milhões, que fizeram o pedido do auxílio por meio do aplicativo da Caixa, são os chamados "invisíveis", segundo o governo.

A socióloga Letícia Bartholo, especialista em políticas públicas e gestão governamental, define essas pessoas como os trabalhadores que não são pobres o bastante para receber um benefício assistencial como o Bolsa Família, mas também não têm a segurança de um emprego formal, que garante uma condição melhor de vida.

"Elas não estão na proteção que o Estado dá aos mais vulneráveis, proteção assistencial, e não estão na proteção que o Estado confere ao trabalhador formal, que recebe auxílio-doença, seguro-desemprego etc.", afirma.

Letícia, porém, é contra o uso do termo "invisível", por considerá-lo insensível.

No Brasil são milhões de pessoas na informalidade. Por isso não gosto do termo. Os 'invisíveis' pegam ônibus todo dia. É o jardineiro, a diarista. Eles estão a um palmo dos olhos de cada um de nós
Letícia Bartholo

Ela também lembra que, apesar de não receberem um benefício assistencial antes do auxílio, esses trabalhadores também não estavam completamente fora do radar do Estado, já que podem ter acesso aos sistemas públicos de saúde e educação, por exemplo.

"O governo lembra da gente de 4 em 4 anos"

Débora Antunes, 47, nunca teve carteira assinada. Ela já vendeu água no semáforo, cuidou de crianças pequenas e, há seis anos, garante o sustento dos seus cinco filhos e três netos com o dinheiro de faxinas.

A família mora em um apartamento de 40 m² na Favela do Goteira, zona oeste da capital paulista.

Ela também faz bolos para complementar o dinheiro do mês, mas a demanda caiu com a pandemia, enquanto os preços dos produtos subiam.

Antes do surto de coronavírus, Débora conseguia R$ 3.000, mas viu sua renda cair pela metade ao passar a trabalhar dois dias por semana, em vez de cinco.

Fernando Moraes/UOL
Fernando Moraes/UOL

"Enquanto viver, vou trabalhar"

Débora conta ter tentado insistentemente uma vaga de recepcionista, com registro, anos atrás. Mas a oportunidade não veio — e a desanimou.

Ela também não paga as mensalidades do INSS para conseguir se aposentar.

Você paga, paga, paga (o INSS) e às vezes morre sem receber aposentadoria. Enquanto eu viver, vou trabalhar

Fernando Moraes/UOL

O que vem do governo é difícil

Depois de inúmeras tentativas, ela conseguiu receber o auxílio emergencial. "Aparecia no site que meu CPF estava cancelado, tive dificuldades para acessar o site e também para sacar o dinheiro", afirma.

Foi seu primeiro benefício concedido pelo governo federal.

O que vem 'de graça' do governo tem que ser difícil para nós, de baixa renda. Engraçado seria se fosse fácil. Uns com tanto e muitos com nada. Mas Deus um dia vai me abençoar

Fernando Moraes/UOL

"Nós por nós"

Débora se sente invisível para o governo, exceto em duas situações. "Os impostos não deixam de chegar, as contas de água e luz também não. Claro, eles [o governo] também lembram da gente de quatro em quatro anos, quando tem eleição", conta, observando da janela de seu apartamento uma passeata liderada por um candidato a vereador.

Mesmo com dificuldades, a moradora da Favela do Goteira se vê representada pela comunidade onde mora.

A desigualdade social sempre existiu e vai continuar existindo, entra governo, sai governo. Se não somos nós por nós, a coisa seria pior aqui. Todo mundo olha para o problema e para a necessidade do outro. Nós vivemos em coletividade

"Quando não tem sururu, a gente vive de doações"

Maria Daniela da Silva, 27, nunca teve carteira assinada e mora em um barraco feito de madeira e plástico na favela Sururu de Capote, em Maceió.

Sem filhos, ela e o marido sobrevivem da renda incerta que tiram com a pesca e tratamento ao sururu -molusco comum no Nordeste- retirado da lagoa Mundaú, em Maceió. Nunca ganha mais que R$ 500 no mês. Ela ainda cuida dos sobrinhos, enquanto seus pais trabalham.

Meu marido de vez em quando é chamado para fazer bico de servente de pedreiro, mas é algo raro. Quando não tem sururu na lagoa, a gente vive de doações, de ajuda

Beto Macário/UOL
Beto Macário/UOL

"A gente se sente esquecido"

O auxílio emergencial foi o primeiro benefício do governo que Maria Daniela recebeu na vida. Ela conta que em 2018 se inscreveu para receber o Bolsa Família, mas teve o auxílio negado sem muitas explicações.

O local onde vive é o maior complexo de favelas de Maceió, região sem casas de alvenaria e onde não há nenhum tipo de saneamento. Maria Daniela não tem banheiro em casa, e a água que usam é trazida em baldes, de um cano próximo.

Eu nunca tive ajuda nenhuma, nunca tinha recebido nada antes desse auxílio. A gente se sente esquecido, não é? Não tem como a gente não ter desgosto de ver os governantes tratarem a gente assim. Veja a condição que vivemos, é uma vida difícil

Beto Macário/UOL

"Foi algo maravilhoso poder comer carne, frango"

Com o auxílio emergencial Maria Daniela diz que, pela primeira vez, conseguiu encher a geladeira de alimentos.

Foi algo maravilhoso poder comer carne, frango, e não só o peixe e sururu que pescamos

Ela afirma que, após o fim do auxílio, vai tentar novamente se inscrever no Bolsa Família ou em algum programa similar.

"Sem dúvida, porque temos que ter essa renda para viver bem. O certo seria manter esse auxílio, até porque tudo subiu de preço: o arroz, o óleo. Mas não acredito que esse governo vá manter."

Das fantasias para as máscaras

A costureira Rosângela de França Santiago, 60, sempre trabalhou como autônoma e nunca recebeu auxílio do governo. Há 15 anos, produz fantasias para aniversários e festas dos principais colégios de Belém (PA). Mãe de três, hoje ela mora com o filho caçula, de 23 anos, estudante de engenharia da computação.

É da costura que vem a única renda de ambos. Quando a pandemia chegou, ela achou que não teria saída.

As clientes se afastaram, as escolas fecharam e eu passei uma semana pensando: meu Deus e agora, o que eu vou fazer?

Foi quando teve a ideia de fazer máscaras no lugar das fantasias. "Como eu tinha muitos retalhos em casa, comecei fazendo com eles e só depois que consegui vender, comprei mais material", conta.

Nay Jinknss/UOL
Nay Jinknss/UOL

"Paguei as contas com o auxílio"

Para garantir uma renda fixa enquanto a venda de máscaras não engrenava, Rosângela e o filho se inscreveram no auxílio emergencial.

O auxílio me ajuda bastante porque com ele eu passei a pagar as contas da casa, já que a minha conta de luz é muito alta e a água também. (Pago) o meu cartão de crédito, e com o que sobra a gente faz as compras da casa

O filho também conseguiu o direito ao benefício. "O dinheiro dele é só para ele. Usa para comprar apostilas e também gosta de guardar um pouco", diz a mãe.

Nay Jinknss/UOL

Quando precisa, Rosângela chama três costureiras para ajudar nas encomendas. Com o reforço no orçamento e o aumento nos pedidos das máscaras, ela também conseguiu ajudá-las no período crítico.

"Como as minhas clientes já me conhecem, começaram a pedir as máscaras também e os pedidos foram aumentando. Aí chamei as três para ajudar. Cada uma fazia na sua casa e vinha deixar para mim", conta.

À medida que as atividades em Belém foram voltando ao normal, as encomendas de fantasias também voltaram. "Meu WhatsApp não para. Toda vez que olho tem um pedido novo", conta.

Evaristo Sá/AFP/24-05-2019

E depois do auxílio?

O ministro Paulo Guedes deixa em aberto a possibilidade de uma nova extensão do auxílio emergencial, caso haja uma segunda onda de coronavírus no Brasil. Mas o desejo, realmente, é que o pagamento dure apenas até o final do ano.

O governo cogitou a criação de um novo benefício de transferência de renda, que poderia ser chamado de "Renda Brasil" ou "Renda Cidadã", mas ainda não chegou a um consenso sobre como financiá-lo.

Nem todos os "invisíveis", porém, seriam contemplados por esse eventual novo benefício, como afirmou o ministro Paulo Guedes, em junho.

"Entre esses invisíveis, 8, 9, 10 milhões são realmente muito pobres. Já os outros 25 a 30 milhões são empreendedores, são trabalhadores por conta própria, é gente que está por aí se virando, ganhando a vida", afirmou.

O ministro disse, na época, que os que ficassem de fora entrariam em outro programa do governo, o Verde e Amarelo, com o objetivo de formalizar esses trabalhadores, mas sem garantir todos os direitos trabalhistas. Os detalhes da ideia, porém, não foram apresentados oficialmente.

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