Carne cara muda hábitos

Consumidores pelo Brasil contam que estão comendo frango e ovo e fazendo churrasco só de linguiça

Carlos Madeiro, Lucas Gabriel Marins, Marina Lang, Rodrigo Melone e Rosiene Carvalho Colaboração para o UOL, em Maceió, Curitiba, Rio de Janeiro, Cuiabá e Manaus Marina Lang/UOL

Quem frequentou supermercados e açougues desde o início de novembro tomou um susto com os preços da carne vermelha. Central no cardápio diário do brasileiro, o produto disparou no mês passado, subindo 8%. O valor é uma média, o que significa que regiões e cortes específicos podem ter registrado aumentos muito maiores. Em um açougue de Curitiba, por exemplo, o quilo do coxão duro saltou 60% em menos de um mês.

Um dos principais responsáveis pela disparada nos preços foi o crescimento das exportações para a China, que reduziu a oferta de carne para o mercado interno. Representantes do setor dizem que o preço pode até cair em comparação com o que se vê nos mercados neste final de ano, mas não voltarão aos patamares de antes.

O UOL percorreu, no final da semana passada, supermercados e açougues de todo o país, em cinco capitais: Rio de Janeiro, Maceió, Curitiba, Manaus e Cuiabá. Nesta reportagem, conta como os comerciantes tentam segurar os reajustes e como as famílias estão se virando com menos carne na mesa.

"Carne saiu do nosso alcance", diz diarista de Manaus

Moradora de uma comunidade no centro-oeste de Manaus, junto com o filho, a nora e a neta de três anos, a diarista Ivaneide Ximendes Nery, 58, disse que o preço da carne bovina subiu tanto que a família não consegue mais comprá-la.

A carne saiu do nosso alcance. Minha neta se queixa, mas passamos a comer mais frango, ovos e peixe. Eu compro dez jaraquis [peixe de rio muito consumido pelos amazonenses] por R$ 10, e dão para almoço e janta. A cartela do ovo compro por R$ 11. Fica bem mais barato que a carne.

Rosiene Carvalho/UOL

Fila para a promoção de patinho

O UOL visitou, no final da semana passada, um dos supermercados onde a diarista costuma fazer suas compras. Clientes faziam fila (foto) para aproveitar a promoção de patinho, a R$ 28 o quilo. Antes da promoção, o corte chegou a R$ 35. Segundo o açougueiro que atendia no momento, o preço normal, antes da disparada, era de R$ 22. "Amanhã deve aumentar, não sei para quanto", disse.

Fora da promoção, filé mignon e picanha, que costumavam ser vendidos por volta de R$ 30, custavam R$ 40 o quilo.

Rosiene Carvalho/UOL

"Obrigada, vou comprar peixe"

Em um supermercado de um bairro nobre de Manaus, o patinho passou de R$ 24 para R$ 35 o quilo em novembro. O filé mignon, de R$ 48,90 para R$ 58,90, e a picanha, de R$ 43,90 para R$ 53,90 o quilo.

A gerente da loja, Gleice Ladislau, 38, afirmou que, no início de novembro, os clientes ligavam para reclamar do preço. Depois, as vendas começaram a cair.

"Ficamos sem entender como o preço da carne pode aumentar tanto, e diariamente, de uma hora para a outra. Quem tem muita gente em casa precisa fazer cálculos para ver o que rende mais", afirmou.

Fábio Jardim (foto), 29, gerente de um açougue na periferia de Manaus, disse que não conseguiu segurar o aumento de preço.

Todos os cortes subiram. Aqui, as pessoas não querem mais comprar. Elas perguntam o preço e dizem: 'obrigada, vou comprar peixe'. Estamos fazendo de tudo para não fechar.

Marina Lang/UOL

"Churrasco de linguiça" no Rio de Janeiro

No Rio de Janeiro, o preço da carne afetou o churrasco de final de semana em Guaratiba, na zona oeste.

O motorista Aílton Gonçalves Oliveira (foto), 50, contou ter organizado um churrasco na semana passada.

Como foi na minha casa, resolvi não comprar carne [bovina]. Só comprei linguiça e fiz sobremesa. Aí começou a chegar o pessoal, todo mundo trazendo linguiça. Pensei: 'vai dar ruim. Depois chegou gente com bandejas de frango e um pouco de carne. Mas carne foi o que menos levaram.

No bairro, o quilo da alcatra e do contrafilé está na faixa de R$ 32 a R$ 35. "Preço meio pesado para o trabalhador. Se antes ele comprava dez quilos de carne em um mês, hoje está tendo que comprar cinco, seis quilos", disse Oliveira.

Marina Lang/UOL

"Estão vendendo para fora e apertando a gente aqui"

O aumento também preocupa os moradores da Rocinha, maior favela do país, na zona sul.

"É um absurdo", disse a cuidadora de idosos Marília Gonçalves de Moraes Cordeiro, 35. "A gente substituiu por ovo, salsicha, linguiça, carré [costeletas de porco] e frango de vez em quando", declarou, enquanto fazia compras na maior rede de supermercados da comunidade.

Quando soube qual era o assunto da reportagem, o marido dela, o autônomo Artur Emílio de Moraes Cordeiro, 53, interveio.

É uma vergonha para nós, brasileiros. Nós somos produtores de carne. Estão vendendo para fora e apertando a gente aqui. É palhaçada.

Outra moradora da comunidade, que preferiu não se identificar, afirmou que não deixa de comprar carne, ainda que em menores quantidades. "Para mim, o pior é esse preço da alcatra", disse, apontando para as peças, cujos valores variavam de R$ 35,93 (900 gramas) a R$ 44,91 (1,2 kg).

Açougue de luxo passou a oferecer cortes mais baratos

Os preços também subiram a cerca de seis quilômetros dali, em uma butique de carnes nobres no Leblon, reduto da elite carioca. "Uma carne que custava R$ 150 foi para R$ 155. Como já é uma carne cara, qualquer aumento é sentido pelo cliente. O impacto foi maior nas carnes importadas, como picanha e contrafilé", disse um funcionário. Um quilo de picanha importada, a carne mais cara do local, custa R$ 189,90.

Para tentar aliviar o bolso dos clientes, o açougue passou a vender também cortes mais baratos. "Começamos a dar essa opção para não perder a clientela", disse o funcionário. "Mas o consumidor que realmente está sentindo é o de baixa renda, porque o corte da carne inferior subiu mais. Um acém que custava R$ 15, por exemplo, subiu para R$ 30. Para quem tem uma renda menor, isso faz muita diferença", declarou.

Marina Lang/UOL

"Pobre não come carne mais"

No bairro de Piedade, zona norte, a empregada doméstica e cozinheira Maria Gorete Damacena, 58, lamentou o aumento do preço.

"A carne está valendo ouro. Imaginei que isso nunca mais ia acontecer. Fazia anos que a gente não via a inflação [da carne] do jeito que está. As crianças reclamam, mas estou comprando mais frango, que você ainda encontra em promoção, por R$ 8, R$ 9", disse ela, que tem três filhos e nove netos.

"Meu neto mais velho pede carne e eu falo: 'só quando a gente pode'. De vez em quando, a gente faz um bifinho, mas é raro. Eles comem muito ovo, linguiça, salsicha, empanado. São 30 ovos por semana. A gente vai inventando. O Brasil exporta, e a gente, aqui, tomando prejuízo", disse.

Até a carne de segunda está cara, mas a alcatra, o contrafilé e o filé mignon estão um absurdo. Pobre não come carne mais.

Marina Lang/UOL

Visita a cinco mercados em busca do melhor preço

O carrinho de compras da autônoma Vensulia Venezes Ramos, 51, continha vários quilos de frango e carne de porco, em um supermercado no Catete, bairro de classe média da zona sul. Os dois tipos de carne tinham preços mais acessíveis em todos os lugares visitados pela reportagem no Rio.

Moradora do bairro Cosme Velho, ela contou ter percorrido outros quatro supermercados antes de chegar àquele. "Tem que fazer pesquisa. Carne de frango, como a asa, está mais em conta", disse.

"Essa semana eu senti mais [o aumento do preço da carne]. A carne de segunda está custando R$ 20 o quilo", disse. "Eu não via isso há muito, muito tempo. A carne de primeira, então, nem se fala. Eu costumava consumir picanha. Hoje, não", disse.

Toda festinha na minha casa tinha churrasco. Agora está difícil. Só se for fazer churrasco de asa [de frango].

"Nem repassamos tudo para não assustar mais o cliente"

Em Maceió, a reportagem circulou por diversos estabelecimentos e percebeu os reajustes de preço. "Subiu um bocado. Nem repassamos tudo ainda para não assustar mais o cliente", contou um comerciante no bairro da Serraria.

A dona de casa Lenice Santos, moradora da periferia da cidade, disse que precisou mudar seus hábitos.

A carne aumentou e atingiu em cheio o bolso da gente. Carne com osso, que custava R$ 14, agora custa R$ 17, dependendo do mercadinho. O bife de R$ 23 subiu para R$ 27. Então prefiro comprar peixe e frango.

Em bairros nobres, como Ponta Verde, na orla, consumidores também reclamam dos preços.

"Há 20 dias, estive em um supermercado e consegui comprar contrafilé por R$ 38 o quilo. O mesmo local está vendendo por R$ 47 esta semana, e sinalizando que o preço é promocional", disse a jornalista Nathalia Lopes. "Também senti a diferença em relação ao patinho. O quilo da carne moída estava R$ 21, e agora está R$ 29."

Carlos Madeiro/UOL

Buffet inclui queijo e frios para reduzir carne

O aumento também atingiu quem trabalha com eventos, e as tradicionais confraternizações de final de ano deverão ter mais peixe, queijo e coração de frango. Dono de um buffet em Maceió, Cristiano Jacinto Fernandes (foto) diz que tomou medidas para não repassar o aumento aos clientes.

Ele manteve o preço de R$ 45 a R$ 50 por pessoa nos churrascos, mas passou a exigir que as festas terminem rigorosamente no horário. "Antes, eu deixava a festa passar um tempo [além do combinado], deixava os clientes à vontade. Mas, depois desses aumentos, se deixar o prazo passar, a gente não ganha", disse.

Também houve mudança no cardápio. "Procuro agregar queijo, tábua de frios e tilápia na brasa", afirmou.

O aumento do preço chegou a Batalha, no sertão de Alagoas, a 185 quilômetros de Maceió. "Eu pagava R$ 22 pelo quilo do filé mignon. Agora o açougueiro me avisou que o preço aumentou para R$ 25", disse a aposentada Helena Mion.

No sertão, é normal que os preços das carnes sejam mais baixos que no restante do país por causa do modo artesanal de produção. Além de isso baratear os custos, há menos influência da exportação e de eventuais altas nos preços internacionais.

Lucas Gabriel Marins/UOL

Coxão duro sobe 60% em açougue de Curitiba

Muito consumido em Curitiba, o coxão duro, conhecido na região como posta vermelha, saltou 60% em um açougue no centro, de R$ 19,98 o quilo, no final de outubro, para R$ 31,98, no começo de dezembro.

O gerente, Wilmar Alves, diz que o coxão mole também subiu bastante, de R$ 24,98 para R$ 36,90 o quilo.

"Para tentar manter as vendas de carne bovina, que caíram cerca de 30%, temos feito promoções. Agora é a vez do coxão mole, que teve o preço reduzido para R$ 35", disse Alves.

No lugar da carne, peixe do "pesque e pague"

A motorista de aplicativo Dariana de Oliveira, 35, conta que sua família deixou de comer carne todo dia, como fazia antes.

Eu comprava bastante músculo, que é barato, mas quando fui ao açougue nesta semana, o quilo havia passado de R$ 12,90 para R$ 18,90. Não dá. O negócio é comer mais os peixes pescados por meu sogro no 'pesque e pague' e reduzir a carne para dois dias na semana.

O músculo também era um corte muito consumido na casa da administradora Sueli Moura, 48, junto com o contrafilé. Com o aumento dos preços, a família está reduzindo a quantidade de dias com carne bovina na mesa, de quatro para dois.

"Vou colocar ovos e frango no lugar, e diminuir o número de churrascos no final de semana", falou.

A nutricionista Karina Konopka Somomaior, 41, disse que sua família não vão abrir mão de patinho, coxão mole e carne moída, que fazem parte do cardápio diário da família. "O que vamos fazer é diminuir a quantidade ingerida no dia e colocar soja, legumes e verduras no lugar da carne."

Em busca de preços melhores, ela disse que usa aplicativos de celular que comparam o preço em diversos estabelecimentos. "Mesmo fazendo isso, meu gasto com carne deve crescer uns 40% neste mês", falou.

Lucas Gabriel Marins/UOL

Comerciantes seguram parte do aumento

Dono de um açougue no bairro Capão Raso, Emerson Estevan, decidiu não repassar todo o aumento aos consumidores. "Para não perder a clientela, subimos 20% os preços finais, e não os 30% reajustados pelos frigoríficos e distribuidoras", falou.

O coxão mole, um dos cortes mais procurados, subiu de R$ 26,90 para R$ 32,90 o quilo em menos de um mês. O patinho, que também figura na lista dos preferidos pelos curitibanos, passou de R$ 23,80 para R$ 27,80 o quilo.

Em um bairro de classe média alta da cidade, um restaurante especializado em carnes nobres também decidiu segurar parte do aumento. "Em todos os cortes, tivemos acréscimo de custo na ordem de 15%, mas repassamos só 10% para o consumidor final para minimizar esse impacto", disse o dono, Oscar Gayer Junior.

No local, a picanha subiu de R$ 115 para R$ 130 em menos de um mês, e o entrecôte passou de R$ 69 para R$ 75.

Em um mercadinho no bairro Novo Mundo, o preço sobe toda semana, segundo o açougueiro Roger Augusto Iachinske. "As pessoas começaram a buscar mais frango, mas o quilo de todas as partes da ave subiu no mínimo R$ 1", falou.

Um dos cortes mais vendidos no local, o patinho subiu de R$ 24,90 o quilo, no final de outubro, para R$ 32,80 na semana passada. O preço do contrafilé aumentou 59% no período, para R$ 26,90.

Mauro Zafalon/Folhapress

"Voltei a comprar no 'fiado'", diz aposentada de Cuiabá

Maior produtor de gado de corte do Brasil, o Mato Grosso não escapou da alto nos preços. Em Cuiabá, a professora aposentada Regina Mazaré Contrim da Silva, 66, disse se assustar a cada vez que visita um açougue no seu bairro, Três Barras, uma das regiões mais carentes da cidade.

"Eu tento colocar carne na mesa pelo menos três vezes por semana, pois eu, minha filha e meus dois netos gostamos de comer bife com cebola ou carne moída com espaguete. Mas, desde outubro, tem sido difícil manter essa regularidade", disse.

Tive que voltar a fazer 'fiado', porque o dinheiro não estica até o final do mês, e tem que ter carne no prato, não pode ficar sem.

Getty Images

"Se continuar assim, vou ter que virar vegano"

Dono de um açougue no bairro Três Barras, Augusto Dziarski disse que a carne de primeira subiu tanto que começou a ficar empacada na prateleira, e ele parou de comprá-la do fornecedor.

"Nossa clientela é de gente humilde, que não está conseguindo comprar nem carne de segunda. O quilo do bucho, que antes era de R$ 10 ou R$ 12, hoje está batendo nos R$ 19. Quando o povo vê o preço do contrafilé, passa correndo", disse.

Cortes de segunda, como ponta de lombo, paleta, costela e acém, têm sido uma alternativa na família do projetista Jomair Gonçalves, 54. "Não tem como comprar uma alcatra, como fazíamos antes. Agora, a gente manda moer um acém para colocar no espaguete", disse.

Em um bairro de classe média da capital mato-grossense, o universitário Júlio Costa Ribeiro, 32, reclamou dos R$ 25 cobrados por cinco bifes de coxão mole. "Se continuar assim, vou ter que virar vegano", brincou.

Em butique, sai o filé mignon e entra o acém com osso

Na loja de uma rede de butiques de carnes de alto padrão de Cuiabá, a diretora executiva, Cristiane Rabaioli, conta que os clientes estão substituindo os cortes mais nobres por outros, mais baratos. "O quilo da nossa picanha, que era vendido a R$ 70, hoje custa R$ 90. Então nosso cliente passa a comprar fraldinha, que custava R$ 30 e agora custa R$ 49 o quilo", disse.

A coordenadora financeira de um dos açougues mais tradicionais de Cuiabá, Helena Boss, explica que o aumento de preços atingiu mais alguns cortes do que outros. "O 'short rib' [acém com osso] custava R$ 26 e está R$ 29, enquanto o 'shoulder steak' [corte também conhecido como raquete], que saia por R$ 23, está custando R$ 26,99".

O empresário Eduardo Fonseca, 44 anos, conta que gosta de reunir os amigos em torno da churrasqueira nos finais de semana, e que não vai abandonar o hábito. "Não vou deixar de comer carne, mas trocamos o filé mignon, que custava R$ 55 e agora está por R$ 75, por um corte mais barato, como o 'short rib'", disse.

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