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Juiz condena Odebrecht por trabalho escravo e tráfico de pessoas em Angola

João Fellet

01/09/2015 18h29

A Justiça do Trabalho brasileira condenou a construtora Odebrecht e duas de suas subsidiárias por promover tráfico de pessoas e manter trabalhadores em condições análogas à escravidão na construção de uma usina de açúcar e etanol em Angola.

Na decisão, o juiz Carlos Alberto Frigieri, da 2ª Vara do Trabalho de Araraquara (SP), afirma que operários brasileiros que ergueram a usina Biocom, na Província de Malanje, foram submetidos a um regime de trabalho "prestado sem as garantias mínimas de saúde e higiene, respeito e alimentação, evidenciando-se o trabalho degradante, inserido no conceito de trabalho na condição análoga à de escravo".

Frigieri ordenou que a empresa indenize em R$ 50 milhões os trabalhadores afetados -cerca de 500, segundo a acusação.

São rés na ação a CNO (Construtora Norberto Odebrecht), a Odebrecht Serviços de Exportação (antiga Olex) e a Odebrecht Agroindustrial (antes chamada ETH Bionergia). O grupo nega irregularidades na obra e diz que vai recorrer.

A empresa afirma que nunca "existiu qualquer cerceamento de liberdade de qualquer trabalhador nas obras de Biocom", que as condições de trabalho foram "adequadas às normas trabalhistas e de saúde e segurança vigentes em Angola e no Brasil" e que não tinha responsabilidade sobre a obra por ser dona de participação minoritária na usina.

A ação teve início após a BBC Brasil publicar, em 2013, uma reportagem em que operários relatavam ter sofrido maus-tratos na usina entre 2011 e 2012. Com base na reportagem, o procurador Rafael de Araújo Gomes, do MPT (Ministério Público do Trabalho), abriu um inquérito que deu origem a uma ação civil pública contra a companhia.

Boa parte dos processos tramitou na Justiça trabalhista do interior de São Paulo, onde as empresas recrutaram muitos dos operários enviados a Angola.

Maior construtora da América Latina, a brasileira Odebrecht é uma das maiores empresas também em Angola, onde atua desde 1984 em vários setores.

A derrota ocorre em um mau momento para o grupo: seu presidente-executivo, Marcelo Odebrecht, e três executivos estão presos desde junho, acusados de envolvimento no escândalo de corrupção investigado pela operação Lava Jato. Eles negam envolvimento em corrupção.

'Verdadeiro calvário'

trabalho escravo angola - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Banheiro interditado em obra, em foto dos trabalhadores; condição de higiene "obrigou alguns trabalhadores a utilizarem o matagal próximo ao alojamento", diz sentença
Imagem: Arquivo pessoal

Na decisão, redigida em 28 de agosto, o juiz Carlos Alberto Frigieri diz que as empresas denunciadas deixaram de proporcionar aos operários "meio ambiente de trabalho adequado, condições mínimas de higiene nos banheiros e refeitórios, tornando o trabalho mais penoso e mais sofrida a estadia, um verdadeiro calvário, com a agravante de que muitos trabalhadores adoeceram no local".

O juiz diz que as condições de higiene nos banheiros usados pelos funcionários -registradas em fotos e vídeos apresentados pela acusação - obrigaram "alguns trabalhadores, que não queriam correr o risco de contaminação por bactérias, a utilizarem o matagal próximo ao alojamento".

Segundo o magistrado, além de violar normas trabalhistas, a postura das companhias causou aos operários "humilhação e sofrimento íntimo, especialmente porque tais obreiros se encontravam longe de suas casas".

O juiz diz que as condições degradantes de trabalho enquadram as empresas no crime de "redução à condição análoga à de escravos".

Segundo o Código Penal, o crime pode ser cometido de três maneiras: submetendo alguém "a trabalhados forçados ou a jornada excessiva"; "sujeitando-o a condições degradantes de trabalho"; ou "restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto".

Em nota à BBC Brasil, a Odebrecht disse que as condições no canteiro de obra "foram adequadas e aderentes às normas trabalhistas e de saúde e segurança vigentes em Angola e no Brasil, incluindo quanto às condições de alojamento, transporte, sanitárias, de alimentação (...) e saúde, incluindo presença de serviço médico local e ambulatório".

Tráfico de pessoas

Em sua decisão, o juiz afirmou ainda que a Odebrecht promoveu "aliciamento de trabalhadores e tráfico de pessoas" ao transportar os operários a Angola com vistos ordinários, que não dão o direito de trabalhar, em vez de vistos de trabalho.

Segundo o juiz, o objetivo da empresa era contar com "mão de obra especializada cativa, completamente dominada, com pouca ou nenhuma capacidade de resistência, eis que mantidos de forma ilegal em país estrangeiro".

Já a Odebrecht afirma que nunca "existiu qualquer cerceamento de liberdade de qualquer trabalhador nas obras de Biocom" e que a "expatriação de trabalhadores sempre foi realizada observando a legislação brasileira e angolana".

"Os trabalhadores tinham ampla liberdade de locomoção dentro de Angola e para retornar ao país a qualquer momento, incluindo em datas festivas nas quais diversos trabalhadores voltaram ao Brasil e depois retornaram para Angola, bem como os trabalhadores tinham acesso gratuito à internet", diz a empresa, em nota.

A Odebrecht afirma ainda que não tinha responsabilidade sobre a obra e que é dona de uma participação minoritária na Biocom.

No processo, a companhia afirmou que, por ser uma empresa angolana, a Biocom não poderia ser julgada no Brasil.

Segundo a Odebrecht, as obras na usina foram realizadas por empresas subcontratadas pela Biocom, entre as quais a Planusi e a Pirâmide, ambas com sede no interior paulista.

O juiz afirmou, porém, que provas apresentadas pela acusação - entre as quais contratos assinados entre as empresas envolvidas - revelam que a Odebrecht era a verdadeira dona da obra.

"É possível afirmar, inclusive, que a Biocom/Odebrecht de Angola também é uma empresa do poderoso Grupo Odebrecht, justificando a responsabilidade solidária por eventuais condenações", diz o juiz.

Além dos R$ 50 milhões de indenização (um décimo do valor pedido pelo MPT na acusação), Frigieri condenou a empresa a pagar uma série de multas caso não mude suas práticas.

O juiz negou, porém, o pedido do Ministério Público do Trabalho para que a construtora deixasse de receber empréstimos do BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social). O banco financia boa parte das operações da empresa no exterior.