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Mentir bem é uma vantagem profissional?

Em geral, falsidade no local de trabalho é vista de forma negativa, mas um estudo indica que empregos vistos como de vendas seriam exceção - Getty Images
Em geral, falsidade no local de trabalho é vista de forma negativa, mas um estudo indica que empregos vistos como de vendas seriam exceção Imagem: Getty Images

Christine Ro

BBC Future

04/07/2019 07h54

Eu tenho uma confissão: eu minto. Muito. Minto para encerrar ou começar papos, para proteger os sentimentos dos outros, ou os meus. E minto de milhões de maneiras para simplificar a vida social ou profissional.

No fundo, sabemos que nossos colegas de trabalho mentem para nós. Não é possível sempre ter um bom dia, ficar animado com o trabalho ou ficar assim tão feliz com aquela colega que foi promovida em vez de mim.

Mas, e quando a mentira não é apenas bem humorada, mas faz parte do trabalho diário? Uma pesquisa indica que uma das razões pelas quais a mentira persiste em certas profissões é a crença de que pessoas com posturas, digamos, flexíveis em relação à verdade seriam melhores nesses empregos.

Mentirosos no local de trabalho

Em geral, enganar os outros no trabalho é visto de forma negativa. Quando alguém recorre à mentira, é porque provavelmente não fez seu trabalho bem. E o engano pode ser prejudicial para a confiança e o trabalho em equipe.

Mas, de acordo com uma pesquisa recente dos acadêmicos norte-americanos Brian C Gunia e Emma E Levine, a exceção são empregos vistos como altamente orientados para vendas, em comparação com aqueles orientados para o cliente.

Em marketing, orientação para o cliente significa satisfazer as necessidades do cliente, enquanto orientação para vendas tem mais a ver com o cumprimento dos objetivos do vendedor. Certas profissões, como vendas e investimentos financeiros, se encaixam no estereótipo de orientadas para vendas (embora, na prática, é claro que vendedores podem ser pessoas ótimas e, por exemplo, profissionais de saúde, não).

Os pesquisadores Gunia e Levine pediram aos participantes do estudo - mais de 500 estudantes de negócios e outras pessoas que preencheram um questionário - para classificar uma lista de empregos por sua orientação para vendas e classificar personagens fictícios de acordo com a expectativa de sua competência para o cargo.

Eram situações como: ao fazer uma prestação de contas, "Julie" declara que uma corrida de táxi foi mais cara do que o que pagou; "James" finge que gosta de velejar para se enturmar com um chefe entusiasta da vela.

Em última análise, as respostas indicam uma crença de que pessoas que têm o hábito de mentir seriam melhores em empregos de orientação para vendas e teriam prioridade na contratação nessa área. Por exemplo, 84% dos participantes optaram por contratar mentirosos para uma tarefa de vendas, enquanto 75% optaram por contratar pessoas "sinceras" para uma tarefa com baixa orientação para vendas.

Os resultados são interessantes, mas não definitivos. Por exemplo, o pagamento aos participantes da pesquisa é muito baixo, o que pode levar ao fenômeno de "entrevistados profissionais", que participam de dezenas de pesquisas por dia para aumentar sua renda.

Também não é possível saber se aquilo que os entrevistados dizem se repete na prática em processos de contratação da vida real. Há indícios contraditórios sobre o que seria mais eficaz na prática: orientação ao cliente ou a orientação de vendas, apesar de a orientação para o cliente parecer ser mais eficiente para o fechamento de vendas.

Os autores do estudo dizem que recrutaram "estudantes de negócios intencionalmente para que pudéssemos ter certeza de que os estereótipos que examinamos existem entre futuros profissionais da área", explica Levine, da Booth School of University of Chicago. Alunos que aspiram a empregos gerenciais "podem realmente acreditar que falsidade indica competência nessas profissões e, portanto, aplicar essas crenças em práticas futuras de contratação".

Devo mentir no trabalho?

Mentir é natural, até certo ponto. "A natureza está repleta de imposturas", escreve o filósofo David Livingstone Smith, no início de seu livro "Why We Lie: The Evolutionary Roots of Deception and the Unconscious Mind" (Por Que Mentimos: As Origens Evolutivas da Mentira e o Inconsciente". Vírus trapaceiam o sistema imunológico de hospedeiros, enquanto camaleões usam camuflagem para enganar predadores. Nós humanos não somos exceção, inclusive no trabalho. Gerentes de contratação reconhecem que quase todos os candidatos a empregos exageram no currículo, por exemplo.

A mentira é absolutamente necessária em certos trabalhos (detetives disfarçados, por exemplo). E diplomacia é sinônimo de mentir para algumas pessoas. A mentira pode até ser estratégica para uma empresa, por exemplo, um centro de telemarketing que instrui os funcionários a fingirem que estão em um país diferente para evitar preconceitos dos clientes.

De forma geral, a definição de falsidade no local de trabalho pode ser confusa. As funções de atendimento ao cliente, e especialmente trabalhos com forte carga emocional, frequentemente realizados pelas mulheres, muitas vezes exigem que se mascare os próprios sentimentos. Imagine uma comissária de bordo, atendente de bar ou psiquiatra que te digam, respectivamente, que a turbulência é preocupante ou que te desprezam ou que não têm o menor interesse em você?

Certos trabalhos exigem um desempenho de afabilidade ou carinho que são inerentemente superficiais (e estressantes). Como diz Levine, "acredita-se que indivíduos que conseguem controlar suas emoções sejam mais competentes do que os que não conseguem". Falsear como nos sentimos realmente é um comportamento racional.

Isso se aplica de forma particular a influenciadores de redes sociais que vivem na fronteira entre autenticidade e vendas. Por exemplo, estrelas do Instagram que encenam luxuosos eventos e fingem surpresa. O problema é que quando a ilusão é quebrada, tudo pode ir por água abaixo.

Mentir com carinho

Às vezes, a mentira benevolente é vista como a opção mais ética. "Em toda pesquisa que faço, vejo que muitas pessoas gostam de ouvir mentiras ditas para seu próprio bem", comenta Levine. Por exemplo, "funcionários acreditam que seus colegas devem protegê-los de feedback que eles não podem por em prática porque só vai magoá-los, e pacientes oncológicos gostam de falsas esperanças mais do que seus oncologistas percebem".

O que é fundamental para a mentira pró-social, ou o tipo de desonestidade que se destina a ajudar os outros, é que quem mente não obtém uma vantagem ou benefício. São mentirinhas por carinho.

Por trás desse tipo de atitude pode haver uma influência cultural, já que algumas pesquisas indicam indivíduos criados em culturas coletivistas têm maior probabilidade de mentir para proteger sua reputação e proteger a harmonia do grupo. Um estudo de coautoria de Michele Gelfand, uma psicóloga da Universidade de Maryland, expôs mais de 1,5 mil estudantes de oito países a uma situação de negociação profissional em que mentir seria útil.

Cidadãos de países mais coletivistas (como a Coréia do Sul e a Grécia) usaram a mentira mais do que os de países mais individualistas (como Austrália e Alemanha), embora muitos mentissem, no geral.

Por outro lado, "pensar fora da caixa às vezes pode ter a ver com a flexibilização das regras", comenta Gelfand. Algumas pesquisas apontam para uma ligação entre criatividade e desonestidade, já que as pessoas que trabalham em campos criativos acham mais fácil racionalizar sua trapaça.

Tolerância (ou até mesmo incentivo) a fraudes no local de trabalho pode ser difícil de detectar. Long Wang, professor de administração da Universidade da Cidade de Hong Kong, aponta que "qualquer norma organizacional ou industrial a favor da falsidade é frequentemente mantida como um certo segredo, pelo menos para o público". Mas ele duvida que tais normas organizacionais ou industriais sejam sustentáveis, dizendo: "Elas podem ser eliminadas a longo prazo".

Uma falsidade leve nem sempre é negativa. Mas, em geral, claro que locais de trabalho são mais eficientes quando se acredita nos outros. Certos políticos importantes são bons exemplos de como a mentira no trabalho pode ser prejudicial.

Então, todas as pequenas mentiras que conto me tornam melhor no meu trabalho? Provavelmente, não. Mas, também não preciso me preocupar tanto com isso. Como Levine diz: "Nós nos importamos muito em saber se os outros têm boas intenções em relação a nós, mas nem sempre nos importamos se os outros falam a verdade".