Herdeira da Disney decidiu doar milhões de fortuna: 'Tinha vergonha do meu sobrenome'
Abigail Disney é documentarista e ativista, além de uma das herdeiras do império Disney.
Mas nunca se sentiu confortável com a fortuna que herdou, tampouco com o ilustre sobrenome.
"Eu tinha muita vergonha do nome Disney. Ficava aterrorizada que alguém descobrisse que eu era parente (de Walt Disney). Muitas vezes, não usava meu sobrenome e, às vezes, dava um sobrenome alternativo", revela.
Abigail já doou mais de US$ 70 milhões (aproximadamente R$ 375 milhões) do seu patrimônio e, recentemente, ela veio a público criticar a reabertura dos parques da Disney em meio à pandemia de covid-19; repudiou as profundas diferenças salariais dentro do conglomerado; e assinou uma carta junto com outros milionários solicitando o aumento dos impostos sobre pessoas com grandes fortunas.
Em entrevista à jornalista Emily Webb no programa de rádio Outlook, da BBC, ela conta por que sempre se sentiu tão desconfortável com uma vida que, para muitos, poderia ser digna de conto de fadas.
Aos 60 anos, Abigail Disney é uma mulher multimilionária — mas isso não a impede de pegar o metrô para conceder esta entrevista em Nova York.
E isso diz muito sobre ela.
A cineasta não revela quanto vale exatamente sua fortuna hoje, mas com base na renda do império Disney, estima-se que o montante chegue a US$ 500 milhões (R$ 2,7 bilhões).
Ela é neta de Roy Oliver Disney, cofundador da The Walt Disney Company junto com o irmão Walt Disney.
Criada em Los Angeles, na Califórnia, na década de 1960, Abigail demorou a ter noção do alcance de seu sobrenome.
"Depois que passei dos 10 anos, ficou claro que nem todo mundo vivia em um lago. Mas ainda não tinha a sensação de que éramos especiais ou grande coisa, exceto quando íamos à Disneylândia. E acho que isso me incomodava porque a gente tinha que ficar bem comportado, coisas do tipo", recorda.
Naquela época, ela conta que a principal preocupação dos pais era passar valores sólidos para ela e os três irmãos.
"Meus pais eram conservadores no aspecto político, é claro, mas também, sobretudo, na vida pessoal. Eles acreditavam que você devia respeitar os mais velhos, dizer a verdade, ser leal às pessoas que estão perto de você, que a família vem em primeiro lugar", enumera.
Neste contexto, a riqueza e o status da família ficavam em segundo plano:
"A lista da Forbes (ranking anual das pessoas mais ricas do mundo) era realmente uma piada para a gente. Comparar minha conta bancária com a sua não era algo que fazíamos na minha família. E meus pais não estimulavam, quando eu era criança, qualquer senso de valor por se ter dinheiro ou status."
"Na verdade, eles evitavam a cena de Hollywood e queriam nos manter fora dela", acrescenta.
Sobrinha-neta de Walt Disney, ela afirma que teve pouco contato com o tio avô, que faleceu em dezembro de 1966.
"Walt morreu quando eu tinha uns 5 ou 6 anos, não lembro. Mas me lembro que quando ele morreu, houve tristeza não apenas na minha família, como também no estúdio."
Ela se recorda, no entanto, com muito carinho do avô:
"Meu avô era um homem bastante acolhedor, muito doce e de bom coração."
"A família era tudo para ele. Definitivamente, tínhamos um laço familiar forte", completa.
O peso da herança
Ao completar 21 anos, Abigail foi informada que havia herdado US$ 10 milhões (aproximadamente R$ 55 milhões).
"Cada um de nós (dos irmãos) era levado para almoçar pelo nosso advogado no dia em que completava 21 anos e informado sobre quanto havia herdado. Era uma espécie de cerimônia", revela.
Ela conta que ficou bastante perturbada com a quantia:
"Eu fiquei tão aborrecida, tão aborrecida. Eu diria até traumatizada com o número. Isso aconteceu em 1981, quando eu tinha 21 anos, então US$ 10 milhões era mais dinheiro do que agora", lembra.
"E me parecia que nenhum ser humano decente deveria ter muito mais dinheiro do que qualquer outro. Eu simplesmente não conseguia ficar confortável com isso."
A partir daquele momento, Abigail passou a se sentar com conselheiros, advogados e assessores de investimentos para administrar a herança.
"É como ter um cachorro muito, muito, muito peludo que precisa de escovado todos os dias. É bom ter, obviamente, por razões muito importantes, mas quando você tem 21 anos, é muito estranho ter essa responsabilidade simplesmente caindo no seu colo."
Vergonha do sobrenome
Como estudante na Universidade de Yale, no Estado americano de Connecticut, ela afirma que começou a se sentir numa posição desconfortável à medida que se tornou "objeto de curiosidade" — e era importunada por colegas que questionavam se ela era de esquerda.
"Havia a sensação de que eu estava de alguma forma implicada na política bem conhecida que minha família havia praticado durante os polêmicos anos 1960. Walt (Disney) entregou nomes para Joseph McCarthy, e coisas do tipo."
Abigail se refere ao período da história americana que ficou conhecido como Era McCarthy (ou macartismo), caracterizado pela repressão e perseguição política a pessoas suspeitas de atividades comunistas — personificada na figura do senador republicano Joseph McCarthy.
"Eles (parentes) eram grandes conservadores anticomunistas".
O pano de fundo era a Guerra Fria, que colocou de lados opostos os Estados Unidos (capitalista) e a União Soviética (socialista) na disputa pela hegemonia mundial.
Enquanto McCarthy caçava comunistas entre os artistas de Hollywood, Walt Disney teria colaborado com a Comissão de Assuntos Antiamericanos entregando alguns nomes.
Tudo isso fez Abigail ter vergonha do sobrenome.
"Tinha muita vergonha do nome Disney. Se alguém me perguntava se eu era parente, eu dizia apenas que não. Porque se eu dissesse que sim, abria a porta para uma conversa que eu não sabia como administrar."
"Às vezes, era uma conversa em tom de admiração sobre como minha família era maravilhosa, e nesse caso eu sentia vergonha por não ter nada em comum com aquelas pessoas. Ou era uma conversa sobre quanto dinheiro eu tinha. Ou sobre o que minha família tinha feito politicamente. Não tinha como escapar", explica.
Relação familiar abalada
Quando ela terminou a universidade, seu pai, Roy Edward Disney, começou a alçar voos mais altos na carreira — e acabou liderando o processo que culminou no chamado Renascimento da Disney, marcado por filmes de animação de grande sucesso, como "A pequena sereia", "A Bela e a Fera" e "O Rei Leão".
O resultado foi uma grande injeção de caixa para os Estúdios Disney — e, é claro, para a família Disney.
Foi quando Abigail percebeu que a relação dos pais com o dinheiro havia mudado:
"Eles investiam muito tempo na vida profissional em busca de dinheiro. Em busca de mais dinheiro."
"Tivemos uma grande reunião de família quando eu tinha uns 30 anos nos seguintes termos: 'aqui está o patrimônio líquido do seu pai e queremos que chegue a US$ 1 bilhão (R$ 5,4 bilhões)'", relembra.
"Minha reação instantânea foi: 'Não, não'. Valer US$ 1 bilhão (aproximadamente R$ 5,4 bilhões) parecia profundamente errado para mim."
Tudo isso foi abalando sua relação com a família.
"Não sei como fui parar naquela família, estava convencida de que tinha havido uma confusão terrível quando entregaram os bebês na maternidade. Nunca me senti confortável", desabafa.
Ela se recorda do momento em que se deu conta de que não "pertencia" àquele ambiente.
"Para mim, a ficha caiu dentro de um jatinho particular, que oferece a você a oportunidade de não se misturar com outros seres humanos", diz ela.
Na ocasião, ela estava a caminho de uma reunião de negócios da família.
"O avião decolou, e eu subi na cama de casal, que tinha um cinto de segurança gigante. Era para eu dormir o tempo todo, mas simplesmente não consegui porque ficava pensando: 'Isso está errado, isso está errado, isso está errado.. isso é um exagero'."
A partir daquele momento, ela diz que parou de usar o jatinho da família. E conta que, em vários momentos, chegou a pensar em doar toda sua fortuna.
"Foram milhares de momentos assim", afirma.
Até hoje, ela estima já ter doado mais de US$ 70 milhões (aproximadamente R$ 375 milhões) do seu patrimônio.
"Basicamente, consegui manter o valor base, o mesmo valor por muito tempo, enquanto fazia contribuições bastante significativas para o bem-estar de outras pessoas."
No fim da vida dos pais, um episódio marcante evidenciou o que ela considera ser o impacto destrutivo do dinheiro na sua família:
"Meu pai e minha mãe eram as pessoas mais próximas e unidas que você pode imaginar. Eles cresceram juntos, e ele a pediu em casamento quando ela tinha 19 anos. Aos 20 anos, ela era a senhora Roy Disney."
"Quando ela estava com 70 anos, e começou a ter sintomas de Alzheimer, eles estavam casados havia 50 anos, e ele a deixou por uma mulher da minha idade", revela.
"Foi devastador para minha mãe acima de tudo, que passou um ano e meio perguntando: 'Para onde seu pai foi?', porque ela esquecia e você precisava repetir. E isso foi incrivelmente doloroso. Mas foi devastador para mim estar lá com raiva do meu pai."
Abigail atribui o colapso da família à relação que desenvolveram com o dinheiro:
"Esse foi, honestamente, o sinal definitivo do tipo de podridão que o dinheiro cria no coração. Havia realmente tomado conta", avalia.
Era o fim do pseudo conto de fadas da família Disney:
"Quando meu pai deixou minha mãe, houve essa exposição pública de um traço cruel da sua personalidade, e senti um alívio que você nem imagina, de que pelo menos agora a nossa imagem pública correspondia ao que eu sabia que era de fato no privado."
Hoje, Abigail tenta passar adiante seus próprios valores na criação dos filhos.
"Eu e meu marido decidimos priorizar certas qualidades que não têm nada a ver com dinheiro. Uma delas é generosidade. Todo mundo que é generoso que eu conheço também é uma pessoa feliz. Também ensino e falo muito sobre justiça", explica.
"Me certifico de que eles entendam que o dinheiro e o sobrenome não querem dizer nada sobre quem eles são."
E como será que ela se sente em relação à fortuna atualmente?
"Me sinto muito mais confortável do que antes", responde.
"Na verdade, eu sempre me imagino como o Mickey Mouse em "Fantasia", quando ele rouba a vassoura do feiticeiro, e ela fica fora de controle. É exatamente isso. Você pode usar (o dinheiro) muito mal se for arrogante, impulsivo ou não pensar com clareza; se não for realmente maduro, atencioso e empático em relação ao efeito que tem nas pessoas ao seu redor, você pode fazer coisas horríveis com ele."
"Ou pode ser uma bela ferramenta", finaliza.
Ouça aqui (em inglês) a íntegra do programa de rádio Outlook
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