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É uma crise de conhecimento, e não financeira

Hernando De Soto*, do New York Times

22/12/2011 12h00

Aqui estamos, com três anos de crise financeira global, e continuamos voando às cegas. Nem sequer sabemos o que não sabemos.

Grande parte do financiamento para o empacotamento de hipotecas veio de derivativos financeiros idiossincráticos que não foram registrados de qualquer maneira. Isso os torna difíceis de localizar, avaliar, calcular seu risco e encontrar os recursos para cobrir esse risco.

O valor estimado desses derivativos é de cerca de US$ 600 trilhões - 40 vezes o que os EUA produzem em um ano. É muito conhecimento desaparecido.

As regras de contabilidade hoje permitem que as empresas em certas situações estabeleçam o valor de seus ativos usando outras medições que não os preços de mercado. Países como Grécia e Itália emprestaram através dos fundos de curto prazo dos "mercados de recompra", que eles não precisam relatar como empréstimos, fazendo-os parecer mais solventes do que são. O conhecimento não apenas foi degradado e retido, mas também distorcido.

Tendo passado 150 anos abrindo suas economias feudais, patrimoniais, clausuradas e não transparentes para permitir que os mercados funcionem, certos setores da indústria financeira, e outros nos governos dos EUA e da Europa, dedicaram os últimos 15 anos a rasgar as próprias reformas que garantiram que o capitalismo tivesse o conhecimento para funcionar adequadamente em uma escala global.

Permitiu-se que a atividade econômica cruzasse do sistema de propriedade governado por regras, onde fatos e interesses são registrados e formam um conhecimento útil, em um espaço legal incompleto de finanças globais, onde interesses arbitrários falseiam os fatos e o papel rodopia fora de controle.

Como alguém pode ficar à vontade para estender empréstimos se os balanços não indicam todos os fatos? Se aqueles que detêm os ativos e os riscos não podem ser facilmente localizados? Como você sabe quais bancos e países são solventes se você não pode determinar quantos ativos tóxicos eles detêm; se os proprietários legais de hipotecas não podem ser encontrados; se os bancos não podem limpar seus livros por que os tribunais continuam impedindo as execuções porque os títulos não são claros; se há pouca informação sobre se aqueles que alegam que podem cobrir as moratórias de risco têm os ativos para fazê-lo?

Esta, portanto, não é uma crise financeira comum. A economia em queda é o sintoma. A diminuição do conhecimento é a doença. Sem registros de propriedade e transações que nos permitam inferir os potenciais lucros e prejuízos, os mercados não podem funcionar; os fatos verossímeis necessários para gerar crédito simplesmente não existem.

É isso que estamos tentando fazer nos mercados emergentes hoje - e porque estamos emergindo, do meu Peru natal à Tanzânia, Índia e China. Estamos nos esforçando para trazer as pessoas que nunca foram registradas em livros, para fazer as autoridades aceitarem padrões de modo que todo mundo possa ser mensurado e responsabilizado, e assim trazer nossas economias da sombra para o regime da lei.

Na Índia, por exemplo, o ex -CEO visionário da Infosys, Nandan Nilekani, está trabalhando com o governo para identificar e localizar cada um dos 1,2 bilhão de habitantes do país para que possam conquistar a confiança das empresas e bancos.

A Tanzânia recentemente criou o Mkurabita, um programa para formalmente registrar e atualizar conhecimentos sobre ativos, passando-os da economia informal para a formal. A partir de 1990 minha organização reformulou o sistema de propriedade do Peru. Hoje sabemos que os imóveis informais que foram registrados segundo a lei em 1997 valiam em média 700% a mais em 2010; compare isso com a bolsa de Nova York, que no mesmo período só subiu 79%.

Seguindo nossas reformas no Peru - destinadas a fazer as empresas na sombra se tornarem legalmente visíveis -, o projeto "Fazendo Negócios" do Banco Mundial hoje fornece aos mercados emergentes dados para ajudá-los a implementar reformas semelhantes. Praticamente todo mercado emergente - até a Rússia e a China - aprovou leis nos últimos anos para registrar ativos e transações.

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Nós nos mercados emergentes hoje temos mais conhecimento que nunca sobre nossas economias formais. É por isso que o drama das "subprime" que marcou o início da crise nos EUA e na Europa provavelmente não acontecerá conosco.

Por mais trágico que fosse que vários donos de casas de meios modestos não pudessem pagar suas hipotecas e muitos estavam preparados para entregar suas casas aos credores, as dívidas descumpridas estimadas em menos de US$ 1 trilhão dificilmente seriam suficientes para provocar uma contração histórica de crédito persistente. Mas o fizeram, porque o crédito que estava se contraindo não estava ancorado em notas e moedas, mas no conhecimento contido nos sistemas de relatórios e indicação de propriedade, que havia deteriorado.

Quando esse papel deixa de ser confiável, quando não funciona mais como um sinal para colaterais, como uma garantia aplicável, uma segurança verossímil, ou uma medida de risco razoável, então o crédito privado desaparece. Assim como sua identidade quando você se aproxima do balcão da imigração e descobre que perdeu seu passaporte.

Foi o que aconteceu quando a crise das subprime explodiu. Os derivativos que financiaram as hipotecas devedoras estavam perdendo valor rapidamente, ameaçando causar uma corrida aos bancos porque havia - e continua havendo - tão pouco conhecimento sobre sua propriedade.

Quando os EUA tentaram comprá-las e removê-las do mercado com o Programa de Alívio de Ativos Problemáticos, as autoridades não conseguiram localizar, classificar e avaliá-las rapidamente. Elas também se tornaram vítimas da falta de conhecimento. O governo foi obrigado a improvisar, e o dinheiro foi usado em vez disso para aumentar o crédito público, baixar os juros e apoiar os bancos. Isso remediou os sintomas, mas a doença permanece: a documentação das propriedades continua se deteriorando, não fornecendo o conhecimento necessário para ampliar o crédito.

Nos mercados emergentes e transitórios, depois de ter injetado tantas notas e moedas em nossas economias em vão, é fácil compreender por que não há crédito sem conhecimento - não tem a ver só com dinheiro.

Feche seus livros e caminhe por uma rua movimentada e você verá que os negócios das empresas e os edifícios que não conseguem créditos significativos são os da economia informal, não registrados nos sistemas de propriedade: os desconhecidos. Instintivamente, temos consciência de que o que sabemos sobre a economia é praticamente o que temos registrado. Sem registros não há memória nem conhecimento - e assim não há campo para confiar nos mercados.

Restaurar a ordem no Ocidente está além da atuação de especialistas em finanças, que não necessariamente têm o conhecimento, a inclinação ou os incentivos para efetuar o trabalho sujo e minucioso de reparar os sistemas de conhecimento.

Consertar tudo isso é um empreendimento político. Os políticos precisam encontrar coragem para subir acima do enfoque estreito dos ajustes financeiros e levantar a questão da recessão ao nível das alturas necessárias; problemas institucionais entrincheirados de uma ordem deficiente devem ser abordados. Não estou pedindo mais ou menos regulamentação ou para injetar mais dinheiro na economia ou para gastar menos. Estou simplesmente propondo levar o mundo das finanças para o regime da lei e projetar luz em lugares escuros e desordenados.

Meus amigos no mundo financeiro insistem: "Está emaranhado demais para destrinchar".

Besteira.

Isso já foi feito antes. É o que os ousados reformistas fizeram para destrinchar alegações de propriedade conflitantes depois da corrida do ouro na Califórnia, para domar o Oeste Selvagem, para reconstruir a Europa destruída pela guerra, para reorganizar a ordem feudal do Japão em uma economia de mercado - e empurrar a China para uma - e para abrir o Leste Europeu depois da queda do Muro de Berlim. Os mercados não podem funcionar sem o conhecimento que os sistemas de propriedade organizados produzem. É assim que o capitalismo foi construído.

Quando estiver claro que esta recessão tem a ver com a organização do conhecimento ou, mais precisamente, a falta de organização, os governos ocidentais podem entrar para obter os fatos. Isso lhes permitirá encontrar e atacar a doença sem ficar presos na controvérsia esquerda versus direita sobre maior regulamentação e supervisão do governo.

Precisamos de mais verdade: o maior conhecimento do que existe e de quem é seu proprietário.

* Hernando de Soto, autor de "The Mystery of Capital" e "The Other Path", é presidente do Instituto para a Liberdade e Democracia no Peru. Ele ajuda governos de países em desenvolvimento e transitórios a tornar os mercados mais inclusivos