Eleição de Javier Milei impacta a economia brasileira?
Do UOL, em São Paulo
28/11/2023 04h00
Uma das bandeiras de Javier Milei, o controverso economista que acaba de vencer a eleição presidencial na Argentina, era o rompimento das relações com o Brasil. Como os países vizinhos são grandes parceiros comerciais, esse desentendimento chegou a preocupar até o ministro da Fazenda brasileiro, Fernando Haddad. Mas agora, após a vitória, os ânimos se atenuaram. UOL conversou com especialistas para entender o que pode realmente mudar na relação comercial entre o Brasil e a Argentina daqui em diante.
Campanha de Milei preocupou Haddad
Milei venceu o oponente Sergio Massa, atual ministro da Economia do governo de Alberto Fernández. O novo presidente recebeu 55,7% dos votos válidos, número consideravelmente maior do que o que as pesquisas apontavam, e assumirá o cargo em 10 de dezembro. O país passa hoje por uma profunda crise econômica, com uma inflação anual na casa dos 142%.
O novo presidente é ultraliberal e de extrema direita. Durante a campanha, demonstrou sua antipatia pelo presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a quem chamou de "comunista" e "corrupto", e também fez críticas à China. Milei chegou a ameaçar romper relações também com o país governado por Xi Jinping, disse que não faria negócios com o Brasil e até defendeu a saída da Argentina do Mercosul, mas recuou.
Como Milei não simpatiza com o governo brasileiro, sua vitória fez com que se questionasse a possibilidade de a relação entre os países mudar. Fernando Haddad disse em 19 de outubro, em uma entrevista à agência internacional de notícias Reuters, que uma possível vitória do então candidato "preocupava o Brasil".
É natural que eu esteja [preocupado]. Uma pessoa que tem como uma bandeira romper com o Brasil, uma relação construída ao longo de séculos, preocupa. É natural isso. Preocuparia qualquer um... Porque em geral nas relações internacionais você não ideologiza a relação.
Fernando Haddad, ministro da Economia
Algo vai efetivamente mudar?
O governo brasileiro diz que não. Uma nota publicada na página da Secretaria de Comunicação Social diz que "é fake que as relações foram rompidas" ou que o "o governo brasileiro teria a intenção de retirar investimentos de obras em parceria com o país vizinho". Um trecho do comunicado diz que a parceria entre as duas maiores economias da região é "essencial para a construção da integração sul-americana". Essa relação também é estratégica em outros blocos multilaterais.
Não é provável que a eleição afete a relação entre os países de forma oficial, já que são parceiros comerciais muito fortes. O Brasil é o principal parceiro comercial da Argentina, dizem economistas, e a Argentina é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil. Segundo o governo federal, de janeiro a outubro deste ano, o fluxo comercial entre os países foi de US$ 25 bilhões, com saldo positivo de US$ 4,7 bilhões para o Brasil.
Welber Barral, sócio da BMJ Consultores e ex-secretário de Comércio Exterior do governo federal brasileiro (2007-2011), diz que tem muito de "bravata" no discurso do presidente recém-eleito na Argentina. Ele afirma acreditar que, talvez, a relação entre os países não seja tão alinhada, da mesma forma que não foi entre Fernández e Jair Bolsonaro (PL) até o ano passado. Mas, ainda que os governos fossem ideologicamente distintos, a essência da relação econômica não mudou.
Claro que o Milei fez vários discursos críticos ao Brasil, principalmente no primeiro turno. No segundo turno, mitigou um pouco. Na prática, em termos de impacto econômico, talvez não seja tão grande, mas sim na política internacional. Se o Massa tivesse ganhado, havia expectativa de que a Argentina entrasse no Brics. Com Milei, dificilmente vai entrar. [Ele deve] Tentar entrar na OCDE, pleito suspenso durante o governo Fernández. [Deve] Ter uma aproximação maior com os EUA. [A eleição] Tem mais impacto nas relações internacionais do que na relação econômica bilateral.
Welber Barral, sócio da BMJ Consultores
"Não precisam gostar um do outro"
Depois do primeiro turno, que Massa terminou em primeiro lugar, Milei atenuou o discurso. Ele afirmou que não precisava falar com Lula, da mesma forma que Fernández não falava com Bolsonaro.
Lula disse algo parecido após a vitória do argentino. Sem citá-lo nominalmente, Lula declarou na terça-feira (21) que "não tem de ser amigo" de presidentes de países vizinhos, só tem de haver uma relação republicana entre eles.
Em entrevista ao canal de TV argentino Todo Notícia na noite de ontem, Milei disse que Lula será bem-vindo na posse. Não mencionou os ataques feitos a ao presidente brasileiro, mas reconheceu que "houve curtos-circuitos na campanha".
O novo presidente também recebeu uma carta de Xi Jinping. Após ter dito que a Argentina se afastaria de "países comunistas", Milei publicou a correspondência em seu perfil no X (antigo Twitter) agradecendo o presidente chinês pelas felicitações.
Roberto Padovani, economista-chefe do banco BV, reitera que os dois países são muito integrados comercialmente para que haja um rompimento. Por isso, a diplomacia "vai manter as relações", mas é natural que aconteça um esfriamento.
O Brasil não vai mais, como estava fazendo, sair muito afora defendendo ajuda para a Argentina, propor soluções para financiamento de comércio. Quando ele cita a China, o Brasil, ele está usando esses países como bandeira ideológica. Ele ganhou a eleição, não precisa manter essas disputas. O risco desses cenários populistas é manter a estratégia de "tensão permanente", vimos isso com Bolsonaro, [de] brigas, confltos. É possível que se mantenha esse clima, mas acredito que não se aprofunde.
Roberto Padovani, economista-chefe do BV
Os desafios de Milei
A vitória de Milei não contrariou as pesquisas, porém chamou atenção por ter se dado com uma vantagem consideravelmente maior do que se esperava. Os números projetavam um segundo turno muito mais apertado. Federico Servideo, diretor-presidente da Câmara de Comércio Argentino, diz que eleição foi surpreendente — o presidente eleito soube captar bem o sentimento de insatisfação da população, muito por conta da crise econômica.
Ele acredita, no entanto, que é difícil de prever o que pode acontecer. Para Servideo, a eleição de Milei traz muita incerteza.
Qual é a minha leitura inicial: a entrada [de Milei] traz um conjunto de incertezas. Milei, há dois anos, nem era político. Foi votado por quase 56%, um candidato que quase não tem estrutura partidária, tem poucos senadores, poucos deputados. É um mundo novo, muito desconhecido.
Federico Servideo, diretor-presidente da Câmara de Comércio Argentino
O candidato vencedor baseou muito da sua campanha em propostas radicais para a economia como forma de enfrentar a crise. Ele falou em dolarizar a Argentina e fechar o Banco Central do país.
Economistas afirmam que o discurso foi vencedor em um cenário em que a população argentina estava "cansada do peronismo". Colocá-lo em prática, no entanto, é muito mais complexo, principalmente no curto prazo. Servideo destaca que muito do que propõe, se concretizado, vai passar por acabar sendo questionado na Justiça.
Além disso, dolarizar uma economia com pouca reserva de dólares é inviável. Padovani pondera que a medida resultaria em uma contração monetária muito forte, com poucos resultados. O economista avalia que o caminho mais indicado é de ajuste fiscal no Estado.
Se ele conseguir reduzir os gastos do governo, ele dá os primeiros passos para controlar a inflação e estabilizar o ambiente econômico. Por exemplo, hoje um problema que existe: ele vai ter que impedir o Banco Central de comprar títulos públicos, é um fator muito importante de emissão monetária. Acho que os países ainda lutam para ter suas moedas. A dolarização é extrema, [acontece] quando um país não tem como administrar a própria moeda e terceiriza. Mas terceirizar torna a economia muito instável. Quando você adota a visão de outro país, você abre mão da gestão econômica. Acho que a Argentina tem espaço para lutar, para administrar o peso.
Roberto Padovani, economista-chefe do BV