UOL - O senhor acredita que o SUS (Sistema Único de Saúde) tenha uma boa gestão?
Sidney Klajner - Se eu falar que está bem gerido, teríamos uma saúde populacional melhor do que está. Sobram oportunidades e melhorias de gestão. Primeiro porque ele é obsoleto. Nós não temos no país hoje como obter a informação correta com relação à saúde porque os dados regionais da saúde do nosso cidadão não se comunicam de modo a serem compreendidos da melhor maneira.
Existe a necessidade de uma melhoria tecnológica, utilizando uma transformação digital, aspectos de big data que nos permitam entender onde os recursos devem ser investidos. Existe uma necessidade de oferecer uma educação adequada para o próprio paciente se engajar no cuidado com a sua saúde, por meio de campanhas.
Obviamente que não somente diz respeito à saúde, porque muito da nossa saúde está influenciada pelas condições de vida. Numa cidade igual a São Paulo, sem calçadas seguras para caminhar, com risco de ser assaltado ou de se machucar em buracos, sem uma área verde adequada, há uma interferência na geração de doenças. Não é só saúde, mas também condição de meio ambiente, infraestrutura da cidade, isso se interliga.
Na gestão do SUS, existe o papel do município, do Estado e do governo federal. A organização é comparada com uma pirâmide. Ela deve prover atenção primária na grande base da nossa população, com centros de atenção secundária em número menor -os Estados teriam esse papel. E o governo federal fornece a atenção de alta complexidade, a terciária, como oncologia [tratamento de câncer], transplantes, situações de alta complexidade em doenças cardíacas, e isso não acontece.
Vemos uma proliferação de hospitais de alta complexidade dentro de municípios com 10 mil, 20 mil habitantes, o que contribui para não haver equipamentos que sejam utilizados de maneira correta, um fluxo de volume de escala que permita a formação, o treinamento e o resultado de um desfecho de saúde melhor.
O resultado é uma taxa de ocupação menor, leitos vazios. Apesar de o país precisar de um número maior de leitos, ainda contamos com hospitais fechando e leitos não ocupados.
Existem "expertises" no nosso país, do setor privado, por exemplo, com uma capacidade ociosa que poderiam de alguma maneira interagir com o sistema público para coibir esses "gaps" que há na gestão da saúde.
O senhor defende então a parceria público-privada?
Sim. Eu dirijo uma organização, que hoje não é um hospital, mas um sistema de saúde, que tem em sua missão o propósito de entregar vidas mais saudáveis ao país. O Einstein foi fundado com uma missão filantrópica de retribuir à sociedade brasileira o acolhimento que a comunidade judaica teve no Brasil em época do pós-guerra.
E essa missão é realizada por meio de parcerias que temos com o setor público. Hoje podemos falar que o Einstein de alguma forma trata ou influencia a saúde de 1,2 milhão de pessoas na nossa região, no município de São Paulo e também à distância, já que parte desse projeto capacita profissionais de outros estados.
Hoje temos mais leitos de UTI espalhados pelo país, sob os cuidados dos especialistas virtuais do que propriamente físico. Essas UTIs têm diariamente a visita por telemedicina de um neurologista, um cardiologista do Einstein que vai interagir com o intensivista local para tomar a melhor conduta para cada caso.
Isso já provou que reduz mortalidade. Temos casos no Piauí e em outros estados em que isso funciona.
Hoje nas comunidades que envolvem o nosso hospital principal no Morumbi (zona sul de São Paulo), nós temos a Unidade de Paraisópolis (comunidade com mais de 40 mil habitantes), que é muito mais do que uma unidade médica.
O Einstein cuida de orientação pré-natal, combate à exclusão social, possui cursos profissionalizantes para adolescentes e também tem, em parceria com a prefeitura, um ambulatório de especialidades pediátricas.
Além disso, temos com a prefeitura mais 22 unidades entre AMA (Assistência Médica Ambulatorial) e UBS (Unidade Básica de Saúde) por meio de uma parceria como uma organização social, colocando médicos e fazendo a gestão dessas unidades básicas.
Em Paraisópolis, temos colhido frutos. Temos também o programa de saúde na família com a prefeitura que diminuiu para apenas 2,5% o número de mães que vão dar à luz sem ter um pré-natal adequado.
O índice de vacinação das crianças naquela região é de 100%, algo que o governo persegue, mas ele é conseguido com visita domiciliar, com engajamento dessas famílias num programa que tem muito sucesso. E isso é um exemplo de parceria público-privada que vale a pena ser replicado.
O senhor acha que o brasileiro busca serviços médicos de forma adequada?
Eu acho que não. Um dos grandes ofensores do sistema de saúde é não ter o paciente correto na porta correta. Quando um paciente de baixa complexidade procura uma organização de altíssima complexidade, ele está desperdiçando recurso. Isso acontece nos prontos-socorros.
Um pronto-socorro como o do Einstein do Morumbi está preparado para atender infarto, AVC (acidente vascular cerebral), trauma com ferimento por arma de fogo, e, na hora que você dispõe essa estrutura para atender uma gripe, nós estamos desperdiçando recursos.
Portanto, essa educação vai desde um entendimento do que significa cada condição. Ela vai da falta da interação com um profissional médico de família, que pode acalmar uma ansiedade e reavaliar uma febre depois de 24 horas, por exemplo, para ver se é algo a ser considerado ou é uma gripe de fato.
Eu perguntei para a vice-ministra da saúde na Holanda o que ela enxerga como diferenças de sistemas, e ela falou que uma diferença marcante é que um holandês quando está com gripe toma um Advil e vai dormir, e o brasileiro vai ao pronto-socorro ver se não é uma sinusite.
Isso faz parte de cultura, e também cabe a nós, profissionais que atuam com saúde, prover ensinamento com informação adequada, sem privilegiar interesses que vão culminar com o "over use".
Os brasileiros reclamam muito dos planos de saúde. Qual a sua opinião?
Primeiro, o sistema de saúde suplementar, como o próprio nome já diz, é suplementar, porque ele veio oferecer o que o sistema público não oferece.
As operadoras de saúde têm uma forma de relação com o consumidor como a de uma seguradora. Isso significa um cálculo em que uma base maior de pessoas saudáveis divide o custo daqueles que estão doentes.
Quando eu coloco as críticas no sistema de remuneração, obviamente esse sistema tem um risco enorme de não sobreviver.
Se a gente não cuidar para que não exista o desperdício, os reajustes irão cada vez mais afugentar os cidadãos desse sistema suplementar, colocando uma pressão ainda maior no sistema público, que, com menos recursos, vai ter que gerir mais vidas. É o que está acontecendo agora.
Quando se melhora a eficiência, diminui o custo e melhora a entrega em qualquer empresa. Quando falamos de mudança de modelo de remuneração, também estamos privilegiando a entrega do resultado e a saúde, e não o desperdício.
E principalmente: nós temos a obrigação da formação do médico. A formação do médico até hoje foi pautada por um ensino técnico muito forte, técnico da prática de cada especialidade sem levar muito em consideração o sistema de saúde.
A nova geração [de médicos] tem a obrigação de se formar com conceitos de liderança. Quem não se preocupar com a sustentabilidade do sistema de saúde agora está fadado a ficar de fora porque a coisa não vai sobreviver.
Existe a possibilidade de os planos de saúde acabarem?
Não vão acabar porque eles têm por trás alguém que precisa muito dessa relação, que são as companhias que dão a saúde como um benefício.
Mas o que está acontecendo hoje no mercado é que nós, organizações de saúde, estamos demandados a fazer parte das companhias para minimizar esse "over use", para educar, oferecer saúde primária e prevenir, em vez de só tratar.
A morte do plano não vai acontecer, as operadoras vão ter que participar dessa transformação, e algumas delas têm liderado essa transformação no sentido de só atuar em parceria com provedores por meio de um sistema que não seja remuneração do serviço, e sim do valor.