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Venezuelanos recorrem a criptomoedas contra hiperinflação

21.fev.2019 - Venezuelanos compram produtos em Pacaraima (RR), fronteira com o Brasil. País sofre com hiperinflação e escassez de produtos - RICARDO MORAES/Reuters
21.fev.2019 - Venezuelanos compram produtos em Pacaraima (RR), fronteira com o Brasil. País sofre com hiperinflação e escassez de produtos Imagem: RICARDO MORAES/Reuters

Nicolas Martin

25/04/2021 09h57

Para o venezuelano Gabriel Jiménez, voltar para o país natal seria perigoso. O programador de 31 anos vive exilado há dois anos nos Estados Unidos, de onde tenta promover uma revolução de criptomoedas na Venezuela com uma moeda digital chamada Reserve.

Em circulação desde março deste ano, a nova criptomoeda tem como objetivo contornar a altíssima inflação da Venezuela. Os políticos socialistas no governo "não têm soluções para nosso país" e nem para sua moeda corrente depreciada, o bolívar, disse ele à DW.

Oficialmente encarregado de projetar a primeira criptomoeda da Venezuela há três anos, Jiménez —então um jovem fundador de startups de 27 anos de idade— viu uma chance de vencer a hiperinflação e se vingar clandestinamente do detestado governo socialista do país.

Antes que o governo de Nicolás Maduro o abordasse para discutir a criação de uma moeda digital, Jiménez fazia parte do movimento antigoverno, tendo participado de vários protestos de rua. Na época, a economia do país sul-americano rico em petróleo já estava em queda livre.

Petro: a primeira criptomoeda estatal do mundo

Jiménez viu uma oportunidade de mudar seu país a partir de dentro. Se uma criptomoeda parecida com o Bitcoin fosse feita da maneira certa, pensou, ele poderia dar ao governo o que ele queria —uma maneira de contornar as sanções financeiras excruciantes impostas pelo governo do ex-presidente americano Donald Trump—, enquanto também introduziria furtivamente uma tecnologia que daria aos venezuelanos certo grau de liberdade.

A perigosa empreitada transportou Jiménez da vida de um ativista para o centro das sombrias instituições de poder da Venezuela. No entanto, a primeira moeda digital estatal do mundo, a Petro, que ele ajudou a criar, não se tornou o tipo de revolução que ele esperava.

Por estar ancorada nas reservas de petróleo da Venezuela, a Petro quebra os princípios do Bitcoin e de outras criptomoedas, cujos valores não derivam de recursos naturais ou moedas fiduciárias do governo, mas apenas das leis da matemática. Antes e depois do lançamento da Petro, em fevereiro de 2018, Jiménez também foi repetidamente forçado a alterar o chamado "relatório branco" do token, informando em qual plataforma de blockchain a moeda era negociada.

"Fui ingênuo na época e ainda me dói muito ver como a Petro está sendo mal usada como arma política do governo", disse ele, acrescentando que acabou sendo forçado a fugir para o exílio para escapar de prisão e punição.

Inflação e uso de moedas digitais disparam

Suas negociações com o governo Maduro fizeram de Jiménez uma figura controversa e que perdeu muita confiança dentro da criptocomunidade global. Ele se diz, no entanto, ainda determinado a combater a inflação descontrolada de seu país, que em março forçou o governo a emitir uma nota de 1 milhão de bolívares - no valor de cerca de meio dólar.

Só no ano passado, a taxa de inflação anual chegou a 6.500% na Venezuela, fazendo com que as economias dos venezuelanos virassem fumaça e acelerando o movimento de fuga para o dólar americano.

Segundo o think tank venezuelano Ecoanalitica, cerca de 66% de todas as transações financeiras no país já são feitas na moeda americana. Ao mesmo tempo, as negociações de criptomoedas pagas com bolívar venezuelano aumentaram, mostram os dados da plataforma de criptomoeda LocalBitcoins.

Analistas de blockchain da Chainalysis, de Nova York, também dizem que os criptotraders da Venezuela estão entre os mais ativos do mundo, próximos aos dos EUA e da Rússia quando se trata de negociações peer-to-peer (P2P) de criptomoedas baseadas em dólar.

José Maldonado, jornalista que escreve para a plataforma especializada de notícias Cointelegraph, diz que hoje é possível pagar até vendedores ambulantes com moedas digitais em algumas das maiores cidades venezuelanas, como Caracas, Maracaibo ou Valência. A tendência também está se espalhando para lojas tradicionais, disse ele à DW por e-mail.

"Quer se trate de móveis, roupas ou mantimentos - praticamente tudo pode ser comprado com criptomoedas", disse ele, acrescentando que as moedas preferidas dos venezuelanos são principalmente Bitcoin, Ether, Dash e Eos.

Maldonado observa ainda que a bolsa global de criptomoedas Binance se tornou tão conhecida quanto o maior banco comercial do país, o Banco da Venezuela.

Brinquedo de ricos, de expatriados e do governo

Na Venezuela, são sobretudo as elites e os membros da classe média alta que podem se aventurar no mundo das criptomoedas. Em muitas partes do país, a conexão de internet costuma ser muito fraca para permitir o acesso ao comércio de moedas. "Para a maioria da população, o uso de moedas digitais continua sendo uma ilusão", disse Maldonado.

Ainda assim, as criptomoedas são a salvação financeira para muitos venezuelanos, pois são uma maneira fácil e econômica de permitir que seus parentes no exílio enviem dinheiro para casa. O descontentamento generalizado com os governantes socialistas do país obrigou 5 milhões de venezuelanos, de uma população total de 30 milhões, a deixar seu país.

Petro luta por reconhecimento

No final do ano passado, cerca de 8 milhões de funcionários públicos recebiam meio Petro cada, cerca de US$ 30, como bônus de Natal. Quem tivesse interesse precisava se registrar em uma plataforma digital do governo. Desde 2021, o pagamento de tributos também pode ser feito em Petros.

O esforço do governo para promover o uso de seu token digital parece estar dando frutos. Em meados de 2020, operadores de postos de gasolina relataram que cerca de 15% de todos os pagamentos de combustível foram feitos com a Petro.

Mas também há relatos de que as autoridades estão usando cada vez mais o token para transferir suas riquezas para o exterior, porque, da mesma forma que o Bitcoin, o comércio de moedas digitais é uma forma ideal de acobertar dinheiro ilegal.

Jiménez acredita que trabalhar no projeto Petro foi um erro, que agora o leva a trabalhar ainda mais duro como forma de compensação. A única coisa boa que saiu disso tudo, afirma, foi uma aceitação mais ampla das criptomoedas na Venezuela.

Embora o uso cresça lentamente entre a população em geral, aqueles que utilizam moedas digitais estão gradualmente recuperando partes cada vez maiores de sua liberdade financeira.

E mesmo que o risco de grandes oscilações de valor seja alto, argumenta Jiménez, as criptomoedas ainda são um investimento que vale a pena, dada a queda aparentemente sem fim da moeda oficial da Venezuela.