Felipe Salto

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Opinião

É preciso dar um jeito, meu amigo

O filme "Ainda Estou Aqui", de Walter Salles, já é vitorioso. Poderá, ainda, ser coroado na premiação do Oscar. Mas ao ajudar a vencer o pensamento reacionário, por si só, já é o campeão.

Fernanda Torres, Selton Mello e todo o elenco compõem uma obra necessária, como muitos têm dito, mas também uma ode à democracia, por meio do registro sensível, emocionante e precioso da tragédia particular da família do deputado Rubens Paiva e da tragédia coletiva ensejada pela ditadura militar no Brasil.

A história de Eunice Paiva e de sua família, a partir do desaparecimento de Rubens Paiva, já havia sido contada no livro de seu filho, Marcelo. É que o filme causa uma justificada e renovada comoção social, particularmente bem-vinda neste momento da vida nacional.

Em primeiro lugar, porque revela uma sensibilidade tão bela e, em segundo, porque apresenta os horrores promovidos pela ditadura, mas como quem defende o presente e o futuro desse passado nefasto.

Em meio a tanta desinformação e aos múltiplos ataques às instituições democráticas, incluída a imprensa, "Ainda Estou Aqui" é um farol alto sobre a história do país para iluminar o futuro. As novas gerações, aquelas que não vivenciaram o golpe e os anos de chumbo, podem sentir, em cada cena, como a usurpação da liberdade e dos direitos fundamentais se prolifera para instaurar a desesperança e a aflição.

Os tentáculos do horror se estendiam sobre as escolas, as famílias, a vida coletiva, os costumes, as artes, a música, a alma do povo brasileiro. Foram anos de espera até que Eunice Paiva pudesse segurar nas próprias mãos um atestado de óbito exarado pelo Estado brasileiro. Isso só ocorreu mais de duas décadas depois do desaparecimento de seu marido.

O silêncio na sala de cinema me impressionou muito.

A ternura e a alegria daquela família, que poderia ser a de qualquer um de nós e, na verdade, é também a nossa própria família, é apresentada para, então, ser sequestrada pela ação de agentes do regime. Invadem a casa de Rubens Paiva, levam-no para depor e nunca mais ele sentiria o carinho e o cuidado dos seus.

Fernanda Torres nos emociona, porque encarna essa história com uma beleza e um brilho únicos.

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Será que a arte tem o condão para nos tornar mais humanos, de novo, mais sensíveis ao que realmente importa? Será que o espanto, o asco e o ódio à ditadura poderão voltar a fazer parte do nosso imaginário social? Será que poderemos voltar a celebrar as conquistas das últimas décadas, obtidas com tanta luta e tanto esforço?

Em tempos de revelações de articulações tenebrosas, à luz do dia, vamos conseguir nos reunir e nos unir, novamente, para buscar uma realidade mais justa, mais fraterna, menos desigual e que jamais volte a dar guarida a tentativas de golpe e de destruição das instituições democráticas?

Eis a minha esperança.

Saí da sessão refletindo sobre como é grande a responsabilidade de cada um de nós. Vivemos em um Brasil conflagrado, marcado por ataques contínuos ao jornalismo profissional e pelas sandices derivadas de um "ideário" que, da forma mais trágica e reveladora, materializou-se no ato daquele homem-bomba na praça dos Três Poderes.

Há muito por fazer. São muitas as famílias em situação de pobreza e miséria, a política está desorganizada. Destacam-se o vazio de ideias progressistas e propostas dos partidos políticos e a dificuldade de erguer-se novo conjunto de lideranças para confrontar os estapafúrdios atores que tripudiam da própria política nessa maluquice em que se transformou a chamada rede social.

Um filme como "Ainda Estou Aqui" é um alento, apesar de contar uma história familiar tão triste e nos lembrar de um período da vida nacional marcado pelo horror. Talvez por isso mesmo, na verdade, ele tenha conquistado tantos expectadores.

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É um meio para ajudar a resgatar o que importa: o respeito, a coletividade, a democracia, a liberdade e a alegria de viver sob um Estado que garanta tudo isso a nós e àqueles que amamos e que querem construir uma realidade mais fraterna.

"Mas não vou ficar calado no conforto acomodado como tantos por aí", canta Erasmo Carlos no filme de Salles. E é precisamente esse o sentimento inspirado por sua história. A preservação e o fortalecimento da democracia demandam atenção constante, luta permanente e uma certa capacidade de imaginar um futuro que jamais volte a namorar com a arbitrariedade, o militarismo, a tosquice, o desatino, a burrice, a desumanidade, a morte, o horror.

Vamos todos dar um jeito, meus amigos. Vamos dar!

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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