Morou no estacionamento do Google para pagar pensão e bancar sítio no Havaí
O Google é conhecido pelos muitos benefícios oferecidos aos funcionários. Moradia não está no pacote, mas, nos últimos anos, alguns colaboradores nos Estados Unidos deram um jeito –extraoficial-- de mudar isso. Compraram automóveis espaçosos (van, motorhome, caminhão-baú), equiparam esses veículos com o básico para viver e os estacionaram na sede de Mountain View (Califórnia), região onde se paga caríssimo para viver.
Com comida grátis, chuveiro, banheiro e academia, eles tinham suas necessidades básicas atendidas pela empresa, mesmo sem seu consentimento --procurado pela reportagem, o Google não se pronunciou. Por outro lado, tinham de viver sem água, sem luz e com as ocasionais abordagens de seguranças (que não davam em nada).
O esforço se mostrou válido para ao menos dois ex-funcionários: um economizou para dar entrada em uma casa, enquanto outro conseguiu manter o pagamento de um sítio no Havaí, para onde pretende se mudar no final deste ano.
Não há informações de atuais residentes --quem falou demais já foi “despejado”, como relatado abaixo--, mas a prática ficou bastante conhecida. A ponto de funcionários criarem uma página interna para trocar dicas, segundo o ex-colaborador Ben Discoe.
Três desses “inquilinos” contaram ao UOL suas experiências no estacionamento do Google e, também, como elas ajudaram a viabilizar seus sonhos.
“Eu usava tudo: banheiro da academia, comida, lavanderia”
Ben Discoe, 13 meses em um GMC Vandura
Em 2011 o programador Ben Discoe, hoje com 47 anos, havia acabado de se separar e encararia, pelos próximos quatro anos, uma pensão que totalizaria US$ 120 mil (cerca de R$ 389 mil). Também estava em sua lista de despesas um sítio comprado no Havaí. Com esses gastos, considerou inviável alugar um imóvel na valorizada região de San Francisco quando contratado pelo Google.
Foi então que decidiu comprar uma van, na qual pagou US$ 1.800 (cerca de R$ 5.730), e estacionar o veículo na sede de seu novo empregador: “Isso foi tudo o que gastei para morar em 13 meses”, resume.
Morar na van significava cerca de US$ 2.000 a mais todos os meses [custo do aluguel], o que me permitiu continuar pagando o sítio. Sem isso, naquele momento, não teria sido possível
A instalação precária sobre rodas contrastava com a famosa infraestrutura do Google. “Eu usava tudo: o banheiro da academia, a comida, o serviço de lavanderia”, lembra Discoe, segundo quem os colegas sabiam de sua situação. “Eles nem ligavam. Isso é uma verdade sobre o Google em geral: as pessoas ignoram qualquer coisa que não esteja diretamente ligada ao seu trabalho.”
A situação poderia ser diferente em relação à chefia e à segurança, mas o ex-funcionário garante que não.
Os seguranças vieram logo de início, mas, quando perceberam que o cara da van branca misteriosamente estacionada era um excêntrico Googler [funcionário] e não um unabomber [terrorista], nunca mais voltaram
Discoe deixou o Google em 2012 e, desde então, trabalha em San Ramon (Califórnia), onde mora em uma casa tradicional, daquelas sem rodas. Ele diz ter gostado muito da experiência e que faria de novo, caso precisasse. “Tenho saudade dos US$ 2.000 extra todos os meses, mas não sinto falta dos dias mais quentes do verão [37º Celsius] nem dos dias mais frios do inverno [0º Celsius].”
O programador vai se aposentar no final deste ano, quando pretende viver em seu (já quitado) sítio no Havaí --a mudança será com sua mulher e o bebê do casal, que deve nascer em fevereiro. Focado nessa nova vida, ele planeja agora vender sua antiga casa sobre rodas. “Espero conseguir um bom preço, considerando que ela ficou famosa [por causa das reportagens em que apareceu]”, brinca Discoe.
“Maior vantagem era o sistema de comida grátis”
Kara e Peter; 20 meses em um Winnebago Lesharo
“Começamos a namorar há cerca de um ano e decidimos que queremos nos tornar moradores em tempo integral de uma van, um estilo de vida normalmente reservado à população de aposentados.” Com este post escrito em dezembro de 2010, Kara e Peter D’Andrea anunciavam o início da história que lhes garantiria a compra de uma casa e atenção da imprensa internacional, como o “casal que morava no estacionamento do Google”.
Pete, 35, e Kara, 30, não moram mais na van: eles têm uma filha de três anos, Francesca, um cachorro de idade indefinida, chamado Little (pequeno). “Talvez desse para viver lá com o cachorro, mas com o bebê seria um grande desafio. O espaço é muito limitado, e o ambiente não oferece segurança às crianças”, contou Peter, que ainda mantém o veículo comprado por US$ 1.900 (cerca de R$ 6.042; eles calculam ter gasto outros US$ 2.000, ou R$ 6.360, em melhorias).
O objetivo inicial da mudança para uma casa sobre rodas era viverem juntos de maneira barata e conseguirem empregos fixos, na esteira da crise que atingiu os Estados Unidos em 2008. Em meados de 2011, Pete conseguiu uma vaga temporária no Google, onde trabalhou como gerente nos projetos do carro autônomo e do extinto Google Glass. Com MBA em administração, ele havia servido na marinha por seis anos, atuando nas áreas de engenharia mecânica e ciência nuclear.
Com o novo emprego em uma nova cidade, o casal que se conheceu em Chicago fez do estacionamento da sede do Google seu endereço fixo durante quase dois anos. Ou exatamente um ano e oito meses.
Não havia eletricidade nem água no veículo. Um painel solar garantia energia suficiente para o básico, como carregar eletrônicos, e a internet era um oferecimento do Google. O banheiro era “fictício”, sem conexão com o sistema de esgoto. Então, em caso de necessidade, um saco plástico era acoplado à privada (no prédio de escritório ao lado, relatou Peter, a realidade era outra: assentos aquecidos).
Para garantir o banho, Kara --que trabalhava em outra empresa-- se inscreveu em uma academia próxima, aberta 24 horas. Peter se banhava no escritório da empresa que, conhecida pelos benefícios, permitia aos dois manter esse estilo de vida. “A maior ajuda vinha do sistema de comida grátis. Eu enchia um recipiente para comer fora [do restaurante] e nós dividíamos. Também complementávamos com comida comprada e, com frequência, cozinhávamos na van”, lembra.
A princípio esse estilo de vida era uma necessidade, mas então vimos quanto poderíamos economizar vivendo assim
Nesse período eles mantinham um blog, no qual mencionavam pouco o Google para não chamar atenção --a princípio houve receio dos seguranças, que acabaram tornando-se conhecidos. “Todos no escritório sabiam que vivíamos no estacionamento. Tinha outro funcionário da equipe de desenvolvedores morando lá, mas eu e Kara éramos o único casal. As pessoas geralmente entendiam, porque eu tinha horários malucos e precisava descansar um pouco [na van] para atingir os objetivos dos projetos.”
Não dá para negar que seja esquisito [viver no estacionamento da empresa], mas meu trabalho era temporário, poderia ser cancelado a qualquer momento e não queríamos estar presos a um contrato imobiliário
Com gastos bastante reduzidos por quase dois anos, em meados de 2013 eles compraram uma casa em Santa Cruz (Califórnia) avaliada em US$ 530 mil (cerca de R$ 1,87 milhão), para onde se mudaram, deixando o estacionamento para trás. Segundo Peter, eles deram entrada de 20% e pagavam a hipoteca com a sublocação de duas casas de hóspede no terreno do imóvel, conseguindo assim manter suas economias.
“Continuamos vivendo frugalmente e investindo”, afirmou Peter, que deixou de trabalhar no Google e, em junho de 2016, vendeu a casa, mudando de Estado com sua família. Ficaram as lições da experiência de viver em uma van no estacionamento do trabalho. “Mantemos [esse aprendizado] até hoje em termos de finanças, comida, planejamento de espaço e definição de metas, para citar alguns exemplos.”
Aprendemos que um pouco de sacrifício pode gerar uma qualidade muito melhor de vida no futuro. Mas mais sacrifícios não necessariamente trazem mais qualidade: é preciso achar o equilíbrio certo para você
“Reação dos colegas foi de surpresa; eu escondia bem”
Brandon; seis meses em um caminhão-baú
O engenheiro de software Brandon*, 25, ainda mora em seu caminhão-baú, mas não no estacionamento do Google. Ele conta que há dois anos foi “despejado” do local após seu blog, o From Inside the Box, ganhar visibilidade na imprensa. Ao “oficializar” publicamente o endereço, diz, foi logo chamado para uma reunião “muito formal” em um escritório de sua então empresa.
Não vai rolar. Foi isso o que lhe disseram --com outras palavras e de maneira menos sucinta-- os executivos do Google. Ainda assim manteve o emprego e, na ocasião, seu gerente até lhe ofereceu o quarto de hóspedes. Mas deixar aquele local significava perder mordomias famosas no Google.
“Não sei por que foi tão difícil manter minha boca fechada. Eu sabia quais poderiam ser as consequências”, disse ele, que acabou mudando de emprego e de cidade (Brandon não revela essas informações).
Sua vivência como inquilino do Google começou em junho de 2015. Então recém-formado e recém-admitido no Google, o engenheiro de Boston estacionou na sede da empresa o caminhão pelo qual pagou US$ 10 mil (cerca de R$ 31,7 mil) --ele já vinha trabalhando nesse projeto, com objetivo de sair de casa gastando pouco. Três meses depois, seu principal medo virou realidade e ele foi enquadrado pelos seguranças do local. Mostrou o crachá, ouviu que tinha uma “estrutura bacana”, conversou um pouco e foi deixado em paz até o episódio do “despejo”.
Eu não parecia diferente. Chegava e saía no horário normal e não cheirava a caminhão. Meus colegas não sabiam [onde morava] até as reportagens saírem. A reação foi de surpresa, porque aparentemente eu escondia bem
Sem acesso a luz e água, Brandon usava o banheiro e chuveiro do Google, onde fazia todas as suas refeições --ele não deixa nenhuma comida no caminhão, para evitar bichos e insetos. Fora do pátio da gigante da tecnologia, ele se vira com uma academia de ginástica 24 horas e shakes que substituem as refeições.
O que mais sinto falta é de poder cozinhar e de chamar os amigos. Mas essas coisas são muito menores que os benefícios. Aprendi a viver de forma mais simples, sair de minha zona de conforto e ser feliz com menos
*O sobrenome não foi divulgado a pedido do entrevistado
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