Por que trabalhadores de apps reclamam de empresas, mas não querem ser CLT
Gabriela Bulhões
Colaboração para o UOL, em São Paulo
04/10/2023 04h00
A Justiça do Trabalho em SP condenou em primeira instância a Uber a contratar formalmente todos os motoristas vinculados ao aplicativo após entender que a empresa realizou "atos planejados" para "não cumprir a legislação do trabalho". O registro em carteira não tem o apoio unânime da categoria, que discute com o governo e empresas uma proposta de regulamentação.
O que está acontecendo
Desde maio, representantes de trabalhadores e das plataformas vêm se reunindo em Brasília para discutir uma proposta de regulamentação. No entanto, motoristas e entregadores têm resistido às propostas. O governo instituiu um Grupo de Trabalho para elaborar proposta de regulamentação das atividades executadas por intermédio de plataformas tecnológicas, incluindo definições sobre a natureza jurídica da atividade e critérios mínimos de ganhos financeiros.
'Plataformização do trabalho' está no foco da questão. A popularização do formato de trabalho através de plataformas já está presente em vários setores da economia. Cada vez mais as empresas aderem a essa tecnologia, o que embasa a necessidade de regulamentação, defende Ana Claudia Moreira Cardoso, socióloga e cientista política.
Motoristas dizem que não querem perder a liberdade de horários. Juliano da Silva Prates, 34 anos, é motoboy fixo em uma padaria e se divide entre este trabalho e as entregas de apps. Caso fosse contratado com carteira assinada, ele teme não conseguir mais conciliar as funções e ainda receber uma renda menor do que tem atualmente. Para ele, seria bom ter os benefícios de uma carteira assinada, mas com flexibilidade.
A preocupação é com uma regulamentação que proteja os motoristas. Mesmo sendo contra a contratação no regime CLT e não concordar com a proposta de horas trabalhadas, Luisa Pereira, 41 anos, que se tornou motorista de app após ficar desempregada, argumenta que é necessário uma regulamentação para frear os abusos das plataformas. Para ela, o ideal seria medir a jornada por quilômetro rodado, assim há o controle da quantidade de trabalho por corrida feita.
Eles querem ser autônomos, e exigem tarifas mais justas. Denis Moura, diretor da Fembrapp (Federação dos Motoristas de Aplicativo do Brasil), afirmou à colunista Paula Gama, do UOL, que o motorista precisa é de tarifa justa, e não carteira assinada. "O que a gente quer é uma tarifa justa e reajustável de acordo com a inflação e uma taxa de plataforma fixa de 25% - que hoje oscila de 20% a 50%. Essa decisão ajustada à CLT só favorece ao governo, com auxílio sindical, ISS das plataformas e INSS dos motoristas. Isso acabaria com nosso trabalho no Brasil", diz.
Trabalhadores e empresas ainda não chegaram a um acordo sobre regulamentação de piso mínimo. A Amobitec, que representa empresas como Uber, 99, iFood, Buser, Flixbus, Lalamove, Amazon e Zé Delivery, disse que "o diálogo entre as partes continua" para a análise detalhada das propostas "para a construção de um modelo regulatório que busque ampliar a proteção social dos profissionais e garanta um ecossistema equilibrado para motoristas, passageiros e apps".
Associação ofereceu o piso de R$ 21,22 por hora efetivamente trabalhada para o transporte privado individual de passageiros, e R$ 12 por hora, 200% do salário mínimo, para o delivery por motocicleta, segundo a última proposta reapresentada em 12 de setembro.
Às vezes o dinheiro é tão pouco para esses motoristas, que passam por tantas humilhações para a conta fechar no fim do mês. O ideal é chegar a um meio termo que dê os direitos e não cause desemprego, já que contratar um milhão de pessoas CLTs pode ser inviável.
Catia Vita, advogada especialista em direito trabalhista
Uber foi condenada a pagar uma indenização de R$ 1 bilhão. A decisão foi dada em primeira instância pelo TRT-2 (Tribunal Regional do Trabalho da 2ª região) e a companhia terá que contratar formalmente todos os motoristas vinculados ao aplicativo. A Uber diz que pretende recorrer até que todos os recursos sejam esgotados.
A empresa teria que reconhecer o vínculo empregatício de mais de 1 milhão de motoristas. O custo estimado seria de cerca de R$ 2,7 bilhões por mês, o que pode inviabilizar a operação no Brasil em seu atual formato de trabalho.
Remuneração que atraía motoristas ficou menor
Trabalho com apps tem características tanto de autônomo como de empregado. Motoristas ouvidos pelo UOL afirmam que são subordinados a um algoritmo da empresa que gerencia e avalia o trabalho — como um empregado de uma empresa formal. Ao mesmo tempo, eles têm a flexibilidade de escolher quando estar disponível.
Trabalhadores passaram a ter que trabalhar mais para manter renda. No início da implementação da Uber e outras empresas desse ramo no Brasil, a ideia era atrair os motoristas com taxas baixas, diz Ana Claudia Moreira Cardoso, socióloga e cientista política. Foi o que aconteceu com Juliano da Silva Prates. Ele trabalha como motoboy e motorista desde 2016. Quando começou, a percentual do repasse para a Uber era de 10%; agora, fica entre 30 a 40% em cima do valor de cada corrida. O aumento da taxa fez a jornada diária dele subir de 8h por dia para 12h ou mais.
Liberdade de trabalho passou a exigir dedicação exaustiva. Vitor Hugo Dias, 43 anos, motorista de aplicativo em Porto Alegre (RS), precisou deixar de tirar férias e trabalhar mais horas para conseguir a mesma renda. Ele conta que, trabalhando cerca de 50 horas por semana, consegue uma renda líquida mensal de R$ 2.500, após descontar a fatia do dinheiro que fica com a Uber, as despesas com gasolina e o aluguel do carro.
Remuneração varia de acordo com as horas trabalhadas. Para os motoristas, a renda líquida média mensal varia entre R$ 2.925 e R$ 4.756 com uma jornada em torno de 22 a 31 horas semanais. Já para os entregadores, varia de R$ 1.980 a R$ 3.039 e trabalham cerca de 13 a 17 horas semanais, segundo pesquisa do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e da Amobitec (Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia), com base em dados do iFood, Uber, 99 e Zé Delivery com mais de 3.000 trabalhadores. O salário mínimo era o vigente até 1º de janeiro de 2023: R$ 1.212.
Não há benefícios como contribuição previdenciária, salário-maternidade ou pensão por morte de dependentes. Para eles, um dos maiores problemas é não ser auxiliado pela Uber quando precisam e não estarem protegidos em casos de acidente, roubos ou doenças.
Já tive amigos que perderam a vida trabalhando para o aplicativo, um assalto e outro acidente, e não deram respaldo nenhum
Juliano da Silva Prates, motorista de aplicativo em São Paulo
A ilusão que eu tinha de ser autônomo com o tempo foi mudando e percebi que não mandava nada, quem manda é a plataforma. Já passei 12h trabalhando por dia e esse ritmo me deu duas hérnias na coluna.
Vitor Hugo, motorista de aplicativo em Porto Alegre
Perfil de quem trabalha como motorista de aplicativo
A maioria dos motoristas são homens negros entre 40 e 59 anos. A pesquisa "Dirigindo pela Uber", coordenada pelo professor Fábio Tozi da UFMG, entrevistou 400 condutores vinculados à Uber, entre outubro e novembro de 2022, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. O perfil predominante são homens (96,3%) que se autodeclararam negros (64,4%) e se cadastraram na plataforma em busca de um trabalho remunerado (49,6%).
E são pessoas de baixa classe que precisam trabalhar. Os profissionais muitas vezes estão endividados e precisam de um trabalho que seja a renda principal, aceitando qualquer acordo, afirma Ana Carolina Paes Leme, autora do livro "De Vida e Vínculos" e doutora em direito pela UFMG.
Em 2016, eram menos motoristas e ganhavam mais. Já em 2018, haviam cerca de 200 mil pessoas cadastradas na plataforma, em 2023, o número saltou para mais de um milhão só em motoristas. Se englobar a classe de motoboys, pode chegar a 5 milhões, estima Leme.
Quer saber como economizar e investir, além do que está acontecendo na economia? Conheça e siga o novo canal do UOL "Economize e Invista" no WhatsApp.