Como funcionam as moedas locais, como a criada por província argentina

Depois que o governo do ultraliberal Javier Milei cortou repasses e contribuições às províncias, a província argentina de La Rioja, no noroeste do país, decidiu ter uma quase-moeda própria para pagar funcionários públicos, a bocade. A maior parte da população em empregos formais trabalha no setor público, e não há recursos para pagar os salários.

Não é a primeira vez que a Argentina cria uma quase-moeda paralela. Em 2001, por exemplo, diversas moedas surgiram quando eclodiu uma grave crise econômica que pôs fim à paridade fixa de um peso igual a um dólar que vigorou durante o regime de "convertibilidade". Em 2004, quando estavam muito abaixo de seu valor nominal, as quase-moedas foram totalmente absorvidas pelo Estado nacional.

Mas o que talvez muita gente não saiba é que o Brasil também tem diversas moedas locais. São mais de 150 chamadas moedas sociais. No Brasil, essas moedas sociais brasileiras visam ampliar o acesso ao crédito, enquanto as versões argentinas buscam manter a economia local em funcionamento. O UOL ouviu especialistas para entender melhor as diferenças entre essas moedas e os desafios para a economia argentina.

Quais as diferenças entre os dois países

A situação dos dois países é diferente. Para Denise Cinelli Valdivia, diretora no Brasil da CryptoMarket, há grandes diferenças entre o real e o peso argentino. Por um lado, a economia brasileira confia em sua moeda, enquanto a Argentina possui uma economia majoritariamente dolarizada e tem desafios com a inflação.

Isso também afeta o câmbio. No ano passado, o dólar na Argentina começou 2023 valendo 350 pesos e encerrou o ano em 1025 pesos, o que representou um aumento de quase 200%, semelhante à inflação. Enquanto isso, o real brasileiro começou o ano de 2023 em R$ 5,36 e encerrou o ano em R$ 4,87, melhor competitiva em relação ao dólar de quase 10% em 2023, explica o economista argentino Guillermo Escudero.

A inflação na Argentina é muito alta. "A grande diferença está na estabilidade dessas economias e como isso impacta na desvalorização da moeda e nas taxas de câmbio. Enquanto a Argentina encerrou 2023 com uma inflação superior a 200%, o Brasil encerrou com uma inflação em torno de 4,5%", pontua Denise Cinelli Valdivia.

Já entre o peso e o real são sim comparáveis. Denise afirma que tanto o real quanto o peso argentino são moedas emitidas pelo Banco Central de cada país e são moedas de países sul-americanos.

Por que essas moedas são criadas

Moedas paralelas nascem da falta de dinheiro. Para o economista Licio da Costa, as moedas sociais brasileiras e a moeda argentina bocade nasceram de uma mesma carência básica: a falta de dinheiro circulante em uma determinada região. Para Saulo Abouchedid, professor de Macroeconomia e Economia Monetária na Facamp, não é possível comparar as moedas comunitárias brasileiras e argentinas.

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No caso brasileiro, as assim chamadas moedas sociais normalmente nascem voltadas para uma população mais vulnerável. A partir da criação da moeda social, essa população pode ter acesso a crédito e fazer a economia local girar. "De maneira geral, as moedas sociais não visam substituir a moeda nacional, apenas ampliar o alcance do sistema monetário para a população que não é bancarizada', diz Abouchedid.

No caso argentino, a diferença é que as moedas paralelas por lá florescem em períodos de crise da moeda oficial, o peso. "Isso já aconteceu em outros momentos, como por exemplo no final dos anos 1990. As províncias criaram suas próprias moedas para evitar o colapso total das economias locais. A mesma coisa ocorreu em outros países em situações similares, de desmanche da moeda nacional, como na Alemanha do início dos anos 1920, a partir do processo hiperinflacionário de 1923", diz Costa.

Além disso, a criação da moeda argentina é uma resposta à falta de repasse de recursos fiscais e uma alternativa em tempos de crise. A criação de moedas pelas províncias, que é algo que vem antes do Milei, é uma alternativa à falta de repasse de recursos, em peso, para as províncias.

No Brasil, a criação de uma moeda social, comunitária, gera benefícios, expansão do crédito e em última instância expansão da riqueza. Mas, na Argentina, essa alternativa é para evitar a destruição da riqueza, porque, se você não paga o salário dos servidores, eles vão precisar vender bens, casa, carro, para sobreviver.

As moedas são físicas ou digitais?

Teoricamente, ambas são moedas físicas e possuem cédulas de papel. Mas, na prática, mesmo no sistema financeiro tradicional, ambas são movimentadas com transações digitais e eletrônicas. Normalmente as moedas locais precisam de um banco próprio, privado ou público, provincial, responsável pelos depósitos e pelos empréstimos nestas moedas.

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Operações paralelas seguem com dinheiro físico. Escudero comenta que, por causa da alta inflação, na Argentina há um forte mercado paralelo, não declarado, o que faz com que uma parte significativa da economia continue a ser operada em dinheiro físico.

Criptomoedas avançam na Argentina. Em contrapartida, devido à evolução nos mercados digitais e criptomoedas, os argentinos também têm uma parte substancial da economia que só utiliza carteiras digitais para transações comerciais. As plataformas fintech na Argentina cresceram a uma taxa de 80%, conforme relatado pelo Finnovista Fintech Radar 2023.

Como funciona o câmbio entre as moedas?

As moedas locais são garantidas pela aceitação de uma entidade confiável, como um banco, a uma taxa fixa em relação à moeda nacional. A taxa de câmbio entre essas moedas locais e a moeda oficial normalmente é constante, geralmente 1 para 1, evitando flutuações. Mas o câmbio argentino já não é tão simples assim: há mais de 15 tipos diferentes de câmbio.

As moedas sociais ou locais circulam ao lado da moeda oficial. "Ela não expulsa a moeda oficial, mas cria as condições para que a economia local não afunde em um estado estacionário de baixo nível de produção, emprego e renda. É uma boa solução, se bem regrada e bem aplicada", declara Raimundo.

Quais as vantagens e quais os problemas dessas moedas?

As moedas paralelas facilitam o comércio local. Elas flexibilizam as transações e oferecem a escolha da moeda que mais atende as necessidades das partes envolvidas. Elas estimulam o comércio informal, que ocorre fora do sistema financeiro tradicional. Hoje em dia, as criptomoedas são bastante utilizadas no país, sendo utilizadas inclusive na compra e venda e imóveis, por exemplo.

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Dão mais acesso ao sistema bancário. Saulo ressalta que a moeda social ou local, emitida por uma instituição local, comunitária, dá acesso ao crédito a uma parcela da população que não está no radar dos grandes bancos.

Já as desvantagens desse tipo de moeda giram em torno das instituições que geram as moedas, os bancos comunitários ou populares para lidar com empréstimos, pagamentos e recebimentos. "Se há um mau desenho institucional isso pode gerar uma crise. Essas moedas comunitárias estão vinculadas ao peso argentino. Da mesma forma que no Brasil as moedas paralelas estão vinculadas ao real. Se essa taxa de câmbio não é estável, então se a moeda paralela começa a desvalorizar, se população começa a questionar essa moeda paralela, ela pode perder valor e ninguém mais a utilizar", diz Abouchedid.

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