Como é trabalhar na Itália, um país que não tem salário mínimo

Junto com Finlândia, Suécia, Dinamarca e Áustria, a Itália é um dos últimos países da União Europeia onde não há salário mínimo e o valor a ser pago para os trabalhadores é determinado em negociações entre empregadores e sindicatos.

A reportagem conversou com brasileiros que vivem no país e que contam como é trabalhar por lá.

O que aconteceu

A Itália é um dos cinco países da União Europeia que não tem um salário mínimo pré determinado pelo governo. Uma diretriz da UE define normas para o salário mínimo, mas não impõe aos Estados membros a obrigação de implementá-las.

O que deve ser pago para o trabalhador é definido por meio de acordos entre sindicatos e empregadores. Além de um salário mínimo, os acordos entre sindicatos e empregadores definem a carga horária de trabalho, número de dias de férias e folgas, entre outros direitos.

A lei na Itália determina diversos tipos de contratos de trabalho que podem ser estabelecidos entre empregados e empregadores. Alguns deles são: contrato de trabalho a tempo parcial, contrato de colaboração, contrato coletivo, de aprendizagem, de inserção, intermitente e por plantão.

Essa questão de trabalho e contrato é bem complicada, você tem que escolher entre ter um contrato bom e trabalhar em um ambiente tóxico, ou trabalhar em uma empresa boa que você gosta, mas talvez ter um contrato que você sabe que não vai durar tanto, que não te oferece nenhuma garantia e nenhuma segurança também.
Nicole Monteiro, 30, brasileira que trabalha na Itália

Como é trabalhar na Itália

Diferente do que acontece no Brasil onde o salário sofre um aumento mínimo com base na inflação, na Itália isso não ocorre. Em seu novo mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) voltou a garantir, inclusive, um aumento real do salário mínimo, ou seja, acima da inflação.

Para se ter um aumento real de seu salário, o brasileiro André Campos*, 28, que vive em Milão teve que pedir direto para seu chefe, esse tipo de negociação é o mais comum no país. "Quando cheguei em Milão, comprava por 99 centavos meio quilo de macarrão e agora custa quase dois euros e meu salário não teve reajuste", conta.

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A oposição de centro-esquerda na Itália chegou a apresentar um projeto de lei para criar um salário mínimo de 9 euros brutos por hora (cerca de 48 reais), mas a iniciativa foi rejeitada pela coalizão de direita e extrema direita liderada por Giorgia Meloni. Na foto, Giorgia Meloni, primeira-ministra da Itália.
A oposição de centro-esquerda na Itália chegou a apresentar um projeto de lei para criar um salário mínimo de 9 euros brutos por hora (cerca de 48 reais), mas a iniciativa foi rejeitada pela coalizão de direita e extrema direita liderada por Giorgia Meloni. Na foto, Giorgia Meloni, primeira-ministra da Itália. Imagem: GUGLIELMO MANGIAPANE/REUTERS

Mesmo com uma promoção, não é fácil conseguir aumento salarial. "Na Europa em geral, pelo menos minha experiência, é bem difícil conseguir um aumento expressivo, mesmo com um aumento de cargo", comenta o brasileiro Daniel Rizzato, 34, que já morou na Alemanha, Inglaterra e Austrália antes de se mudar para a Itália.

Acho que se tivesse um reajuste automático e meu salário se ajustasse todo ano seria mais simples do que eu pedir um aumento que efetivamente não é tanto aumento assim, porque isso está cobrindo as mesmas despesas que cobria antes.
André Campos

Diferente do Brasil, há casos em que o aumento salarial negociado é pago anualmente e não por mês. "Se você ganha, por exemplo, 1000 euros de aumento, esse valor é dividido pela quantidade de meses que você recebe no ano", explica Jenifer Carpani, 33, que trabalha como assistente de projeto. Ela conta que o fato de ser terceirizada dificulta essa negociação, uma vez que geralmente é feita com o chefe de cada área da empresa.

Parte de você negociar o valor por hora. Se você tem uma experiência prévia e principalmente se você fala italiano, você consegue algum tipo de negociação. Caso contrário é mais difícil.
Sandra Melo, brasileira que trabalha na Itália

A negociação está presente, inclusive, quando o assunto é alimentação, tempo máximo de horas trabalhadas e transporte.

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André Campos possui um contrato de trabalho conhecido como Contrato Coletivo Nacional de Trabalho. Ele é definido pelos sindicatos de cada categoria e estabelece direitos básicos. Por meio desse contrato André conseguiu garantir benefícios como vale-refeição e direito a férias remuneradas.

Pesquisas mostram que 70% dos italianos concordam com o estabelecimento de um salário mínimo no país. Na foto: pessoas em Milão após título da Itália na Eurocopa.
Pesquisas mostram que 70% dos italianos concordam com o estabelecimento de um salário mínimo no país. Na foto: pessoas em Milão após título da Itália na Eurocopa. Imagem: Piero Cruciatti/Anadolu Agency via Getty Images

Outro contrato comum no país é o contrato sazonal utilizado para empregar trabalhadores em setores que têm um aumento significativo na demanda durante determinados períodos do ano, como o turismo no verão. Esse tipo de contrato geralmente é aceito por pessoas que estudam durante o inverno e possuem o verão livre. É o caso de Julia Manera, 26. A brasileira foi para o país estudar moda e até o momento só conseguiu trabalhar com esse tipo de contrato. Ela está à procura de um contrato indeterminado, conhecido por ser mais estável e com mais benefícios como férias remuneradas e seguro saúde.

É comum também para os estudantes e trabalhadores sazonais trabalharem mais tempo do que determina seu contrato de trabalho enquanto recebem esse valor extra das horas a mais trabalhadas em dinheiro e por fora do que foi acordado.

Mesmo havendo uma grande variação de tipos de contratos, muitas vezes eles não são respeitados. Tamiris Bologniese, 36, que trabalha como chefe de cozinha em Cisternino, na região da Apúlia, no Sul da Itália, conta que isso é comum. "Às vezes, registram você como part-time (meio período, geralmente de 20 horas), mas você trabalha full-time (período completo, geralmente de 40 horas semanais). Esse é o problema da Itália", diz. Outras fontes ouvidas pela reportagem confirmam essa falta de respeito que frequentemente ocorre em relação aos contratos e ao tempo de serviço diário.

Muitos imigrantes trabalham na agricultura ganhando dois euros por hora e ficam ali pois não têm documentação e não tem como serem contratados e ficam nesse regime de quase escravidão, bem difícil.
Nátali Lazzari, 36, brasileira que vive na Itália há mais de 10 anos

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Há também o fato de que nem todos que trabalham na Itália possuem algum tipo de contrato. Mariana Almeida, 27, trabalhou por um tempo dessa forma. A brasileira que vive em Rimini trabalhou em um serviço de limpeza sem nenhum contrato durante 25 dias. Em teoria, ela trabalharia cerca de sete horas por dia e ganharia sete euros por hora trabalhada. No entanto, Mariana recebeu apenas 390 euros, sendo que deveria ter recebido 1.225 euros. "A mulher que me contratou ainda ficou revoltada porque eu falei que ela pagava muito pouco", conta Mariana.

De acordo com a Constituição italiana, "o trabalhador tem direito ao descanso semanal e às férias anuais remuneradas", o que, no entanto, não acontece sempre na prática. No trabalho de Mariana Almeida no serviço de limpeza, contudo, não havia direito a descanso semanal, ela trabalharia sete dias por semana.

A Itália é uma terra sem lei, essa é a sensação que eu tenho desde que cheguei nesse país. Não existe legislação para nada, a população não tem nenhum direito. Essa é a impressão que eu tenho.
Mariana Almeida

Como está o mercado de trabalho italiano

Os entrevistados da reportágem contam que viver em cidades como Milão e Roma é extremamente caro e, com o salário que recebem, não conseguiriam sustentar uma família, por exemplo. André Campos conta que divide apartamento e não conseguiria morar sozinho com seu salário. Na foto: Milão, Itália.
Os entrevistados da reportágem contam que viver em cidades como Milão e Roma é extremamente caro e, com o salário que recebem, não conseguiriam sustentar uma família, por exemplo. André Campos conta que divide apartamento e não conseguiria morar sozinho com seu salário. Na foto: Milão, Itália. Imagem: Getty Images/iStockphoto

A taxa de emprego na Itália é de 64,8% , o que a deixa na última posição no ranking dos 27 países da UE. O país superou negativamente a Grécia que ocupava a posição mais baixa em 2021 e cuja taxa de emprego em 2022 ficou em 66,3%.

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Dados mais recentes mostram que ,em 2022, o rendimento médio familiar de 35.995 euros aumentou nominalmente em 6,5%. Contudo, quando ajustado pela inflação acentuada registrada no ano, houve uma queda real de 2,1%.

Em 2023, cerca de 23% da população italiana encontrava-se em risco de pobreza ou exclusão social.

Acredito que um salário mínimo seria interessante para outros tipos de trabalhos que, talvez, não tendo um piso salarial, podem acabar pagando menos do que é possível para se manter dentro das cidades.
Jenifer Carpani

A distância do resto da Europa no que diz respeito à disparidade de género é bem grande. Na Itália, a taxa de emprego feminino é 19,7 pontos percentuais inferior à masculina, em comparação com uma média europeia igual a 10,7%.

Além disso, dentro do próprio país há uma grande desigualdade de renda e oportunidades. A diferença territorial entre o Sul e o Centro-Norte é de pouco mais de 20 pontos percentuais (52,2% no Sul, contra 73,5% no Centro-Norte).

As vantagens e desvantagens de uma política de salário mínimo

No Brasil, o salário mínimo foi estabelecido no final dos anos 1930. O intuito foi dar condição para um trabalhador ter o mínimo para poder gastar com comida, lazer, educação, e saúde, ou seja, para que o trabalhador garanta sua subsistência.

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O salário mínimo é uma referência que também ajuda os empregadores, a partir de uma determinada base, a estabelecer algum salário que seja maior.

A política de salário mínimo é uma política social uma vez que ela tem também como objetivo reduzir a pobreza. Quando um país possui altas taxas de informalidade, e uma grande desigualdade de renda, de acordo com Ana Luiza de Holanda Barbosa, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e do Grupo de Estudos em Economia da Família e do Gênero (GeFam), a política de salário mínimo "gera maior proteção principalmente para os trabalhadores com menor qualificação".

Quando um país não determina um salário mínimo é possível gerar acordos mais adequados por categoria. Os salários podem ser mais flexíveis e responder às condições de mercado de cada área. Barbosa ainda explica que cada setor possui seus custos e, dessa forma, o valor do trabalho pode ser diferente. "De repente, o mais eficiente seria cada setor ao estabelecer o próprio salário mínimo", diz.

Por outro lado, os sindicatos precisam ser fortes. Sem a mediação dos sindicatos de trabalhadores, coloca a pesquisadora, a tensão entre funcionários e empregadores pode fazer com que os direitos trabalhistas sejam minados.

Sem salário mínimo, você tem que ter um sindicato forte, com uma política de enfraquecer o sindicato e tirando o salário mínimo, realmente você quer que os trabalhadores continuem em um estado de precariedade total no mercado de trabalho.
Ana Luiza de Holanda Barbosa, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e do Grupo de Estudos em Economia da Família e do Gênero (GeFam)

Para não ter uma política de salário mínimo, é preciso ter uma forte política de distribuição de renda e bem estar social. "Esses países norte da Europa tem sindicatos fortes e uma boa política de bem-estar social e distribuição de renda Diferente de outros países que têm um mercado de trabalho mais complexo, trabalhadores bem precários e uma classe muito vulnerável da população que ainda precisa de algum respaldo por parte do Estado", comenta Barbosa.

Errata:

o conteúdo foi alterado

  • Diferente do que foi informado anteriormente, o nome da pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e do Grupo de Estudos em Economia da Família e do Gênero (GeFam) é Ana Luiza de Holanda Barbos e não Ana Luiza Guimarães.

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