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'Ele jogou dinheiro no lixo': como gerir finanças quando o Alzheimer surge?

Descontrole das finanças pode indicar doença de Alzheimer Imagem: Getty Images

Do UOL, em São Paulo

18/12/2024 05h30

Dois cartões de crédito estourados, limite negativo em quase R$ 7.000 e perda de noção das parcelas foram os sinais de alerta de que José Lopes estava sem controle das finanças. Em paralelo, vinha se esquecendo de conversas recentes e como voltar para casa quando saía. Ele tinha 82 anos.

"Ele sempre cuidou bem da saúde, mas como convencer uma pessoa que sempre cuidou de tudo financeiramente que o tico e teco já não estavam batendo direito?", questiona Camila Lopes da Silva, 27, neta dele.

Era difícil, ainda mais para ele, formado em ciências contábeis, que sempre atuou na área e cuidou das contas da casa.

Já José Ribeiro, então com 63 anos, esquecia de pagar contas e de onde guardava o dinheiro em casa. Depois, perdia as notas que carregava em um saquinho dentro do bolso da camisa.

"Um dia, ele estava chupando mexerica e foi jogar as cascas no lixo. Quando fui tirar o lixo, reparei que o saquinho estava lá. Ele tinha jogado dinheiro no lixo", conta a neta Jennyfer Macedo, 29.

Após esses episódios, as famílias buscaram ajuda, e os idosos foram diagnosticados com doença de Alzheimer.

Esquecimento custa caro

Um estudo liderado por pesquisadores da Escola de Saúde Pública da Universidade Johns Hopkins e do Sistema de Reserva Federal dos EUA mostrou, em 2020, que pessoas diagnosticadas com Alzheimer tinham problemas financeiros até seis anos antes do diagnóstico.

Eles avaliaram mais de 81 mil beneficiários do Medicare, um seguro de saúde do governo para pessoas com 65 anos ou mais. Aqueles com a doença eram mais propensos a deixar de pagar contas no período e baixar a pontuação de crédito dois anos e meio antes, comparados com quem não foi diagnosticado.

Gleisson Rubin, diretor do Instituto de Longevidade MAG, diz que o processo demencial adiciona uma camada extra de dificuldade no manejo das contas, que é um desafio independentemente da condição de saúde.

Uma conta não paga será cobrada com juros. Se esquecida por muito tempo, a família pode acabar com um grande problema se não agir rapidamente.
Gleisson Rubin, diretor do Instituto de Longevidade MAG

Segundo a Serasa, o Brasil tinha 73,1 milhões de inadimplentes em outubro, último período divulgado. Desses, 19,2% eram pessoas acima de 60 anos. Nessa faixa etária, a maioria das dívidas (42%) é com contas de água, gás e luz, seguida por bancos e cartões (26%).

Falha no sistema

A doença de Alzheimer é uma condição neurodegenerativa ainda sem cura que piora ao longo dos anos. Tipicamente, a memória recente é a primeira a ser prejudicada.

"Ela fica armazenada no hipocampo, onde começam as primeiras perdas de sinapses, que são a comunicação entre os neurônios", explica Márcia Cominetti, professora do Departamento de Gerontologia e coordenadora do Laben (Laboratório de Biologia do Envelhecimento), ambos da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos).

No começo, a pessoa perde autonomia e não consegue, por exemplo, fazer compras, organizar finanças e planejamentos complexos.

Em estágios avançados, outras regiões do cérebro são comprometidas, como o córtex, onde ficam as memórias antigas. A independência se perde e há dificuldade para cuidados pessoais, como higiene e alimentação.

Nas finanças, os sinais mais comuns são esquecer senhas, de pagar contas ou fazer pagamento duplicado.

Alguns descobrem que o familiar com processo demencial está gastando ou emprestando dinheiro, com pessoas se aproveitando da situação.
Christiano Barbosa, diretor-presidente da Apaz (Associação de Parentes e Amigos de Pessoas com Alzheimer)

Segundo o Ministério de Direitos Humanos e Cidadania, idosos são o maior alvo de violência patrimonial, que inclui golpes virtuais e presenciais. Até setembro deste ano, a pasta tinha registrado 74,2 mil casos, sendo 35,5 mil contra esse público. A idade somada à demência torna a pessoa duplamente vulnerável.

Camila conta que o avô já recebeu uma ligação avisando, falsamente, que o cartão dele havia sido clonado. Ele seguiu a orientação de entregá-lo a um motoboy que foi à casa dele. "Quando conseguimos cancelar o cartão, já tinham feito compra de quase R$ 2.000. A gente não pagou ainda, está em contestação até hoje."

Alzheimer, e agora?

Quando a rotina financeira fica pouco confiável, familiares e/ou cuidadores precisam acolher e apoiar o quanto antes. Algumas medidas podem garantir segurança e autonomia:

  • Colocar contas em débito automático;
  • Trocar o acesso por senha pela biometria;
  • Reduzir o limite do cartão;
  • Substituir o cartão de crédito pelo de débito;
  • Estabelecer valores para pagamentos por aproximação;
  • Deixar a pessoa com notas de menor valor;
  • Confiar a algum familiar a responsabilidade pelas contas.

Camila diz que, no começo da doença, o avô ainda mexia em planilhas no computador com acompanhamento da família. Mas ela assumiu a administração financeira da casa, fez fluxo de caixa, reduziu gastos e calculou em quanto tempo pagariam o prejuízo.

Depois, ele parou de lidar com tecnologia e, todo mês, ela mostrava a ele o que havia sido gasto, com o que e quanto tinha em conta. Ele anotava tudo em uma planilha impressa para o próprio controle. Com o avanço do Alzheimer, Lopes foi se lembrando cada vez menos do que precisava fazer. Este ano, deixou de lidar com as contas totalmente. "Ele só aceitou", diz Camila.

Na família de Ribeiro, a estratégia foi substituir as notas de R$ 50 ou R$ 100 que ele carregava no bolso por algumas de R$ 5 ou R$ 10. Quando percebeu que algo estava errado, ele confiou à neta o local onde guardava o dinheiro e a senha do cartão.

"É algo que me toca bastante, porque ele era bem relutante quanto a isso", diz Jennyfer, cujo avô morreu em 2022.

Como a doença varia de uma pessoa para outra, não há um marco que determine quando é hora de afastá-la do controle financeiro. Isso depende de outros fatores, como escolaridade, o quanto a pessoa se cuidou ao longo da vida ou se tem doenças associadas.

Cominetti diz que o mais importante é, na medida do possível, manter a pessoa ativa, fazendo o que estava acostumada. "Talvez ela não consiga cuidar das finanças sozinha, mas, se ia ao banco, alguém pode auxiliar no pagamento das contas junto."

Barbosa lembra que não é tão fácil impedir a pessoa de lidar com o próprio dinheiro. "Para fazer isso, demanda processo judicial e orientamos o familiar nesse aspecto." Além disso, afastá-la completamente pode ser pior.

Na tentativa de proteger, a família evita que faça qualquer coisa, mas na verdade está piorando o declínio cognitivo. Quanto mais ativa ela for, a doença progride mais lentamente.
Márcia Cominetti, professora e pesquisadora

Como se planejar para o futuro

Tendo ou não um comprometimento de saúde no futuro, o planejamento financeiro é essencial. Mas, com demência, os gastos aumentam devido ao tratamento, o que torna o cenário mais crítico.

"Famílias com muito dinheiro ficam sem para dar o melhor suporte", comenta Barbosa.

Com o aumento da expectativa de vida, o debate sobre uma nova reforma da Previdência volta à tona e, segundo Rubin, a longevidade financeira começa hoje. "A reserva financeira não será formada depois que se aposentar, porque terá perda de rendimentos."

Mas ele reconhece que, num país de desigualdade, a maioria das pessoas ganha o suficiente para sobreviver. "Falar em termos de poupança é mostrar insensibilidade, mas precisa olhar para parcela grande que não poupa por questão de hábito."

Para ajudar a criar e manter esse compromisso ao longo dos anos, um guia do instituto dá algumas orientações:

  • Poupe certo: comece o quanto antes, a partir do momento que se tem uma renda, e cultive o hábito, independentemente do valor. Vale estabelecer metas, mas se estiver com dívidas, quite tudo antes de iniciar a reserva.
  • Gaste bem: use o dinheiro de forma consciente, sem gastos desnecessários. Saiba quanto vale sua hora de trabalho e de quantas horas precisaria trabalhar para investir numa compra. Evite decisões financeiras em momentos de fortes emoções ou sob pressão.
  • Ganhe mais: investir na carreira para alcançar posições e salários melhores, fazer trabalhos freelancers, prestar consultoria vinculada ao trabalho atual, vender algo que você sabe fazer ou não usa mais são opções para ter renda extra.
  • Invista melhor: aproveite a "mágica" dos juros compostos para o dinheiro render mais por meio de investimentos. Escolha uma instituição financeira de confiança, avalie as taxas dos produtos, adeque ao seu perfil, diversifique sua carteira e busque auxílio especializado, se for o caso.

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