Estrela Michelin verde ignora passado nada sustentável de sócio da Casa do Porco

Os chefs Jefferson Rueda e Janaína Torres são a face mais conhecida da Casa do Porco, considerado um dos melhores restaurantes do mundo. Eles frequentemente destacam a criação artesanal de porcos, além dos pomares orgânicos, do adubo feito no próprio galinheiro e da polinização das hortaliças por abelhas africanas, como um compromisso com práticas agrícolas sustentáveis.

Recentemente, o local foi premiado com uma estrela verde do Guia Michelin, a versão sustentável do renomado guia gastronômico. Ela é conferida desde 2020 para homenagear os profissionais mais empenhados "da gastronomia eco-responsável".

O que a publicidade da Casa do Porco não destaca é que o restaurante tem um terceiro sócio-administrador ligado a gigantes do agronegócio que acumulam denúncias de violações trabalhistas e invasão de terra indígena.

Trata-se de Júlio César de Toledo Piza Neto, um engenheiro agrícola com longa carreira como executivo na administração e no conselho de empresas de atuação controversa.

Até junho, Piza Neto era integrante do conselho da Terra Santa Propriedades Agrícolas, uma imobiliária rural dona de sete grandes fazendas em Mato Grosso, cinco delas arrendadas para a gigante SLC Agrícola, uma das maiores produtoras de commodities agrícolas do Brasil.

Uma das fazendas está sobreposta a área da Terra Indígena Batelão, segundo levantamento do observatório De Olho nos Ruralistas.

Lar do povo Kawaiwete (também chamado de Kaiabi), a área é reivindicada desde a década de 1980 e já foi identificada como indígena pelo governo federal, mas o processo de demarcação ainda não foi finalizado, apesar da decisão da Justiça Federal favorável aos indígenas em 2016. Com base na tese do "marco temporal", fazendeiros pedem na Justiça a posse do território, o que atrasa sua regularização.

Procurada, a Terra Santa não respondeu aos questionamentos da reportagem. A empresa é listada na Bolsa de Valores (B3). Desde 2017 na empresa, Piza Neto renunciou ao cargo de conselheiro em 3 de junho.

Em nota, a Casa do Porco informou que Piza Neto, embora seja sócio de Jefferson Rueda e Janaina Torres, não participa da operação do restaurante. "Todas as decisões criativas e gerenciais sempre couberam a Jefferson ou Janaína desde a inauguração da casa, em 2015" (leia a íntegra da nota). Além da Casa do Porco, Piza Neto é sócio de Rueda e Torres em outros negócios, como o Bar da Dona Onça, a Sorveteria do Centro e a lanchonete Hot Pork.

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Laços de família

A ligação de Piza Neto com os outros dois sócios da Casa do Porco veio do pai dele, o pecuarista, cafeicultor e ex-presidente da antiga Bolsa de Valores de São Paulo, Júlio César de Toledo Piza Filho, que morreu aos 80 anos em 2020. Descrito como pecuarista, boêmio e festeiro em obituário publicado pela Folha de São Paulo, Piza Filho foi um dos investidores do Bar da Dona Onça, localizado no Edifício Copan.

"Embora o sucesso da casa esteja ligado aos chefs Janaína e Jefferson Rueda, seus vizinhos do condomínio e organizadores das festas que oferecia, foi ele (Piza Filho) quem ajudou a financiar o empreendimento, aberto em abril de 2008", detalha o texto do obituário. Foi também o padrinho de casamento do casal, que se divorciou em 2022.

Nas festas, Piza Filho ficava sentado em sua poltrona, trajando terno risca de giz, colete, alfinete com pérola na gravata e sapatos sob medida: "Como um chefão mafioso aguardando o beija-mão".

Piza Neto, contudo, é mais discreto. São raras as entrevistas e aparições públicas. Ainda mais considerando o porte das empresas em que atua. Além de ter atuado na aquisição de terras para plantio de soja na Terra Santa, Pizza Neto é vice-presidente do conselho de administração da Kepler Weber, empresa líder na construção de silos para armazenar o grão.

Ele também faz parte do conselho da Hidrovias do Brasil, que opera os sistemas fluviais dos rios Trombetas, Tapajós e Amazonas e da hidrovia Paraguai-Paraná. Moradores, representantes de movimentos sociais e lideranças indígenas de Itaituba, no Pará, relataram ao Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) que a empresa proíbe a pesca em locais tradicionalmente acessados pelos pescadores e não dialoga de forma efetiva com a comunidade.

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As queixas fazem parte de um dossiê publicado em 2021. À época, a empresa repudiou o documento "por não refletir todos os esforços econômicos, sociais e ambientais executados pela companhia e por responsabilizar exclusivamente a empresa pelos impactos sinérgicos, cumulativos e históricos na região" (leia a íntegra da resposta aqui). Procurada pela reportagem, a empresa não quis comentar.

Outra empresa da qual Piza Neto faz parte do conselho é alvo também de denúncias trabalhistas. Funcionários da Boa Safra Sementes, maior produtora de sementes de soja do Brasil, denunciaram condições de trabalho que configurariam escravidão contemporânea, incluindo alojamentos superlotados e mal equipados e falta de instalações básicas, de acordo com reportagem do The Intercept.

A empresa atribui a responsabilidade a um subcontratado. Procurada, a Boa Safra Sementes disse que não faz mais parte do processo e que "repudia qualquer situação fora dos padrões éticos e legais de trabalho" (leia a resposta completa).

Entre 2008 e 2016, Piza Neto atuou como CEO da BrasilAgro, empresa focada na compra e venda de fazendas. Em sua página do Linkedin, o empresário lista ter comprado 320 mil hectares de terras agrícolas (mais de duas vezes a cidade de São Paulo), enquanto esteve à frente da empresa, além de ter expandido os negócios da empresa para o Paraguai, comprando 70 mil hectares.

A expansão da companhia é alvo de investigação do Incra desde 2016, que suspeita que a BrasilAgro tivesse 76% de seu capital na mão de estrangeiros na época, o que exigiria aval do Congresso ou do Incra para a compra de terras. Procurada, a BrasilAgro destacou que é uma empresa brasileira e listada na B3. O maior acionista da companhia é o grupo argentino Cresud, com 34,22% das ações.

Enquanto Piza Neto está no comando de grandes empresas do agronegócio brasileiro, o discurso de seus sócios na Casa do Porco é diferente. À Repórter Brasil, o restaurante destaca que rastreia a cadeia produtiva do porco e que trabalha com insumos orgânicos próprios e de pequenos produtores. Além disso, cria "menus sazonais de acordo com o que a natureza oferece de melhor e mais fresco no momento, reafirmando assim a escolha por uma economia sustentável e regenerativa".

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Afirmou ainda que as relações de trabalho do restaurante estão dentro das conformidades éticas e legais e que repudia qualquer ação que coloque em risco os direitos dos povos originários brasileiros.

Questionado sobre a concessão da estrela verde a um restaurante cujo sócio é ligado a empresas do agronegócio que acumulam denúncias de trabalhadores e indígenas, o Guia Michelin não respondeu.

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