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Escândalo da carne de cavalo revela brechas nas leis e maus-tratos a animais

Lasanha da marca francesa Findus está entre os produtos com suspeita de conter carne de cavalo - Jean François Frey/EFE
Lasanha da marca francesa Findus está entre os produtos com suspeita de conter carne de cavalo Imagem: Jean François Frey/EFE

Susanna Forrest

Der Spiegel

22/02/2013 06h00

"O nosso sistema é o pior de todos, porque nos leva a isso -em vez da venda pública de cavalos saudáveis, sob uma supervisão controlada e realizada por açougueiros registrados, temos a venda furtiva de carne suspeita em sótãos, porões, por traficantes, por prostitutas, por homens de má reputação sem profissão”, escreveu Isidore Geoffroy Saint-Hilaire, em 1856.

Isidore Geoffroy Saint-Hilaire foi diretor do Museu de História Natural de Paris e membro da Sociedade Protetora dos Animais da França. Ele foi um entre um grupo de cavalheiros letrados de meados do século 19 que propôs que a França consumisse carne de cavalo abertamente pela primeira vez desde que o papa Gregório 3º proibiu a prática pagã da hipofagia em 732 dC.

A proposta era racional: como resultado da revolução industrial, um vasto número de cavalos de tração precisava ser descartado humanamente, e um vasto número de trabalhadores não tinha dinheiro para comprar carne vermelha

"Bouchers chevalines", ou açougueiros de cavalo bastante regulamentados era a solução óbvia: no fim de sua vida de trabalho, os cavalos descansavam, eram bem alimentados e depois abatidos, sua carne saudável e rica em ferro era vendida ao público.

Será que Saint-Hilaire poderia imaginar que 157 anos mais tarde, depois da legalização da venda de carne de cavalo em todos os países europeus, e a introdução de resmas de legislação sobre o bem-estar animal e mais burocracia, o continente seria surpreendido por um novo escândalo envolvendo fraude em grande escala, carne potencialmente insegura para o consumo e maus-tratos dos equinos?

Problemas intrincados

Os hominídeos caçavam e comiam os ancestrais do cavalo atual há mais de 500 mil anos, mas tudo isso ficou bem mais complicado 459 mil anos mais tarde quando o primeiro morador do Cazaquistão jogou uma perna por cima do lombo de um cavalo selvagem.

Os equinos são colocados em categorias burocráticas e culturais, sendo criados para a alimentação, como animal de trabalho e de estimação. Isso leva a problemas intrincados na rede de alimentação industrializada moderna.

O escândalo de 2013 que começou sob a alcunha de "Burger Gate" na Irlanda, expandiu-se para abranger um número estimado de 13 países e 28 empresas. A carne de cavalo vinha sendo servida sem que se soubesse em lasanhas, molho a bolonhesa e até “carne fresca” pelas cantinas escolares, redes de bares, prisões, hospitais e pais desavisados.

Alguns especulam que é possível que a fraude já acontecesse há anos. O preço da carne quase dobrou nos últimos seis anos, enquanto o preço dos cavalos entrou em queda livre, graças à recessão. O consumo de cavalo em 2013 é tão lógico quanto a proposta de Saint-Hilaire. Só que não é legalizado – pelo menos não se não for rotulado como carne de cavalo.

Como isso aconteceu? O Burger Gate foi resultado de anos de trapalhada burocrática, cortes austeros e suas consequências não intencionais porém inevitáveis. Poucos cavalos são abertamente criados para produção de carne –o prato do jantar vem como uma segunda vocação, muitas vezes inesperada, depois de uma vida de esporte ou trabalho.

Isso significa que os cuidados com os cavalos não estão sujeitos às mesmas regulações rígidas e documentação quanto a criação de gado: qualquer movimento de vacas entre fazendas precisa ser documentado, mas isso não ocorre com os cavalos. O resultado é uma abundância de brechas, campo fértil para exploração por parte de comerciantes inescrupulosos.

A trilha de pegadas que levam à lasanha Findus começa em 2007, na Romênia. Num esforço para reduzir o número de acidentes de trânsito envolvendo cavalos e apaziguar a UE (União Europeia), a Romênia proibiu o uso de carroças puxadas por burros ou cavalos nas estradas principais.

O resultado: um excedente súbito de cavalos que deixaram de ser um bem econômico para se transformar num dreno de recursos. Alguns foram abandonados e outros foram vendidos em leilões por seus proprietários, com destino ao sul para serem abatidos e poderem se transformar em salame com o rótulo “Made in Italy”.

Os cavalos são fisicamente mal adaptados para o transporte a longa distância, uma vez que têm um centro de gravidade alto (que leva a quedas) e são mais propensos à desidratação do que os bovinos durante as viagens.

A campanha para que os cavalos de abate viajassem “no gancho e não nos cascos” terminou há mais de um século, mas embora o Parlamento Europeu tenha votado no final de 2012 para introduzir novas restrições, a Comissão Europeia parece relutante em mudar as leis atuais.

Os cavalos romenos estão entre os que mais viajam, e nas condições mais atrozes, mas houve uma interrupção em 2010, quando os EUA entraram em cena para restringir sua exportação porque a anemia infecciosa equina, “Aids dos cavalos”, era endêmica no país. Em vez disso, eles foram abatidos.

A carne foi comprada a 2 euros por quilo (US$ 2,68) por uma empresa com sede no Chipre chamada Draap Trading Ltd. e vendida aos processadores de alimentos franceses e Spanghero e Comigel, que intencionalmente ou não a transformaram em refeições congeladas que no rótulo diziam conter carne de boi.

A Draap, como apontaram vários comentaristas, é simplesmente a palavra holandesa para cavalo, soletrada ao contrário. Nem a Comigel nem a Spanghero foram dissuadidas pelo fato de o diretor da Draap, Jan Fasen, ter sido julgado por acusações de fraude em 2012 por vender carne de cavalo da América do Sul como se fosse carne bovina da Alemanha e Holanda.

Perdendo a pista

Da Spanghero e Comigel, o DNA equino que já havia viajado bastante foi transportado para as redes de supermercados britânicos e europeus e para um público sem dinheiro ou bastante econômico. A fraude não foi percebida pelas autoridades do Reino Unido mesmo meses após o início das vendas, porque as fábricas de processamento francesas não são inspecionadas pela Agência Britânica de Normas de Alimentos (FSA).

Para economizar dinheiro, o governo de coalizão dividiu os deveres do FSA entre outros ministérios, e não deixou nenhuma inspeção às fábricas de processamento. Este é o trabalho dos próprios supermercados e também dos departamentos de normas de comércio das autoridades locais britânicas. Mais uma vez, a austeridade teve seu papel: os orçamentos para as normas comerciais despencaram nos últimos anos.

Enquanto isso, numa ironia que teria deixado Saint-Hilaire perplexo, o escândalo apresentou ao público britânico sua própria e impalatável indústria de carne de cavalo, que dobrou a quantidade de cavalos que abate desde 2009. A carne de cavalo não está em voga até o ponto de ser divulgada pelos supermercados britânicos como oferta especial da semana, mas o negócio está crescendo.

A indústria também tem um lado obscuro: os rebanhos são frequentemente criados em más condições, sem inspeções de saúde ou preocupações com o bem-estar dos animais antes de serem finalmente vendidos para o matadouro.

A entidade beneficente Market Watch Equine diz que toda semana cavalos são vendidos, com o mínimo de supervisão oficial, com feridas abertas, doenças transmissíveis e outros sinais visíveis de negligência. Dos mercados, eles são enviados para o exterior como "animais de montaria", driblando assim as regulações em seu caminho para se tornarem uma refeição congelada ou para o abate na Inglaterra.

Quando o Burger Gate explodiu, a ITV divulgou uma matéria que revelava os maus-tratos num abatedouro de cavalos, e então os donos de duas fábricas britânicas foram presos sob suspeita de vender carne de cavalos que haviam sido tratados com um anti-inflamatório comum que pode causar doenças do sangue em seres humanos. O FSA foi obrigado a admitir que havia perdido o rastro da carne contrabandeada no continente.

Voltando a um pesadelo

As salvaguardas haviam falhado. Os cavalos europeus devem ter passaportes que detalham seu histórico médico e evitam que os animais errados entrem no sistema de alimentação, mas a BBC acaba de informar que mais de 7.000 passaportes não autorizados estão em circulação na Inglaterra desde 2008. A Base de Dados Nacional de Equinos, que tinha como intenção rastrear o mercado de cavalos foi desfeita no outono de 2012 como parte de medidas de corte de gastos.

De "carne suspeita" a "venda furtiva" e "homens de má reputação", nossa busca pela carne vermelha barata, nutritiva e produzida com segurança para o trabalhador, levou-nos de volta ao pesadelo de Saint-Hilaire.

E os cavalos? Como Boxer em “A Revolução dos Bichos", eles continuam recebendo um tratamento injusto levando em conta seu status especial. A primavera está chegando. As éguas dos rebanhos de abate logo terão filhotes, mas desta vez não haverá um mercado para hambúrgueres de carne de cavalo.

Os santuários para cavalos da Inglaterra já estão lotados depois de quatro anos de recessão e cavalos abandonados. Os animais de pouca lucratividade passarão de mercado em mercado até serem despejados para se virarem sozinhos.

Enquanto isso, um distrito de Bruxelas tem um novo esquema ecológico de coleta de lixo reciclável. Cavalos puxam carroças de lixo pelas ruas da cidade. É um pouco do charme do velho mundo, e ajuda a preservar as raças tradicionais de animais de trabalho que de outra forma não teriam outro uso a não ser ir para a mesa.

(Susanna Forrest é o autora de "If Wishes Were Horses: A Memoir of Equine Obsession” (Atlantic Books) e está atualmente trabalhando numa história sobre cavalos: A Era do Cavalo. Ela também escreve um blog)