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Opinião

MT Gox: A corretora que quebrou e devolveu bitcoins após mais de 10 anos

Em 2010, ano em que a Mt. Gox foi lançada, o bitcoin era basicamente um experimento para ver se seria possível criar uma forma digital de dinheiro escasso usando um software, para fazer transferências de dinheiro sem intermediários. Satoshi Nakamoto, o misterioso idealizador do livro razão distribuído, ainda respondia perguntas e postava atualizações no fórum bitcointalk para um pequeno grupo de entusiastas de tecnologias criptográficas.

Demanda por bitcoins cresce

Nos primeiros meses após o lançamento do bitcoin, o processo de mineração era acessível, e uma pessoa com um computador mediano tinha uma chance factível de conquistar a recompensa de 50 tokens que eram criados com cada novo bloco.

Porém, à medida que novos participantes ingressaram na rede, o protocolo ajustou a dificuldade do processo de mineração, aumentando o volume de poder computacional necessário para competir pelo subsídio de blocos e efetivamente criando uma barreira de entrada proibitiva para os novos interessados no experimento de transferência descentralizada de valores.

Uma porta de entrada para o mundo on-chain

Jed McCaleb, um programador californiano, acompanhava o crescente interesse na rede lançada por Nakamoto e anteviu a demanda por um mercado onde os tokens da rede poderiam ser comprados e vendidos em dólar.

Ainda incerto sobre o futuro dessa tecnologia inovadora, Jed decidiu reciclar um domínio de um projeto antigo que visava criar um mercado para compra e venda de um jogo de cartas chamado "Magic: The Gathering".

Assim, em julho de 2010, um ano e meio após a rede bitcoin criar o seu primeiro bloco, foi lançada uma das primeiras exchanges de bitcoin, a Mt. Gox. Nos primeiros meses da sua operação, bitcoins eram negociados na sua plataforma abaixo de US$ 0,06.

Os tokens eram tão baratos que duas pizzas foram compradas por 10.000 bitcoins (valor atual: US$450 milhões), marcando o primeiro caso registrado de bitcoins sendo usados para comprar um bem do mundo real.

Dinheiro de internet passa valer mais que o dólar

Contudo, logo no próximo ano, o bitcoin começou a dar os primeiros sinais que era algo além de um dinheiro de mentirinha da internet. O preço do token superou o patamar de US$ 1 em fevereiro, US$ 8 em maio e US$ 30 em junho. Menos de um ano após o lançamento da Mt. Gox, o preço de mercado do bitcoin tinha crescido mais de 300 vezes.

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Junto à alta do bitcoin, veio a demanda pelos serviços da Mt. Gox, que multiplicou o seu número de clientes em 10 vezes entre janeiro e junho rumo a mais 60 mil contas individuais, rapidamente se consagrando como a principal corretora de bitcoins do mundo.

Startup promissora ou bomba relógio?

Hoje, com o benefício da retrospectiva, podemos afirmar que, no início de 2011, a Mt. Gox era uma das startups financeiras mais promissoras do mundo. Apesar desse tremendo potencial e trajetória inicial de sucesso, McCaleb decidiu que queria vender a corretora de bitcoins — justificando o seu desejo com a suposta falta de tempo hábil necessário para dedicar ao projeto.

A verdade é que McCaleb já tinha passado grandes apuros após fundar uma empresa inovadora com milhões de usuários. Edonkey, uma plataforma de compartilhamento de arquivos, serviu como ponte entre a revolução tecnológica criada pela Napster e pela Limewire e a sua eventual sucessora, a BitTorrent. Essa história acabou em batidas da polícias e processos jurídicos milionários

Dada essa experiência, McCaleb pode ter chegado à conclusão que o seu projeto paralelo em breve viraria um dos cofres mais valiosos do mundo. A responsabilidade de custodiar essa tecnologia inovadora e desconhecida era um desafio que, além de estar fora do seu alcance, o tornaria protagonista de embates que ele não estava disposto a enfrentar; independente da quantia de dinheiro que estava em jogo.

Proposta irrecusável

Hoje, uma exchange que concentra um volume de transações como o da Mt. Gox seria uma candidata perfeita para um IPO ou, ao menos, uma série de investimentos de fundos de venture capital rumo a uma eventual abertura de capital.

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Porém, naquela época, McCaleb transferiu a corretora para o nome de um terceiro sem receber um único centavo. Mark Karpelès, um dos funcionários terceirizados que contribuiu para o desenvolvimento da exchange, foi surpreendido com uma oferta de venda por e-mail.

Como Karpelès não tinha o dinheiro necessário para comprar a corretora, McCaleb fez uma oferta que, na época, parecia irrecusável. Fora assumir uma dívida de US$ 50.000, a empresa seria transferida para Mark sem qualquer pagamento inicial, somente um contrato que dava a McCaleb metade das receitas da corretora pelos primeiros seis meses, e 12% de toda receita futura após o término desse período.

Sob nova gestão

Ainda durante o período de transição da gestão - momento em que tanto McCaleb quanto Karpelès controlavam os cofres — os primeiros bitcoins foram roubados da Exchange. A corretora perdeu um terço da sua custódia. O endereço que recebeu os 159 depósitos das moedas roubadas continua inativo até hoje, ainda figurando como o sétimo maior balanço (79.957 bitcoins, US$ 3.352.008.601 em preços atuais) entre todos os endereços na rede.

Alguns meses depois, alguém tomou controle de uma das contas administrativas da corretora e alterou o saldo interno da sua conta. Como a corretora tinha um limite para saques de bitcoin denominado em dólares, o hacker optou por vender um número enorme de bitcoins para colapsar o preço em que otoken era negociado na corretora e sacar o máximo de bitcoins possíveis. O preço dos tokens caiu de US$ 17 para US$ 0,01 quase imediatamente.

O início do fim

Apesar das brechas de segurança, a corretora continuou a crescer durante os próximos dois anos, chegando a concentrar entre 70% e 80% de todo volume de transações de bitcoin em 2013 . No final do mesmo ano, o preço do bitcoin retomou a sua alta parabólica, subindo de pouco mais de US$ 200 para mais de US$ 1000 antes da virada do ano.

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A alta do preço do bitcoin deveria favorecer a corretora, mas a crescente demanda pelos seus serviços forçou a Mt. Gox a congelar os saques dos seus clientes. A exchange apontou uma suposta falha no próprio protocolo do bitcoin, causando uma queda repentina de 90% no preço do token.

Porém, alguns dias depois, um documento vazado revelou a verdadeira razão pelo congelamento: a corretora havia perdido 744.408 bitcoins de clientes e mais 100.000 do seu próprio balanço.

Juntos, os quase 850 mil tokens representavam 7% de todos os bitcoins existentes na época. Insolvente, a Mt. Gox declarou falência no Japão, onde a corretora foi incorporada, e nos EUA. Com isso, se iniciou uma grande investigação buscando desvendar quem roubou meio bilhão de dólares em bitcoin.

Desvendando um mistério

Naturalmente, tanto o Mark quanto Jed entraram na mira da justiça japonesa e dos Estados Unidos. Mark foi preso no Japão em 2015.

Eventualmente, Michael Gronager, um dos fundadores da corretora Kraken com amplo conhecimento da rede Bitcoin, decidiu usar o mistério dos bitcoins roubados como vitrine para sua nova empresa de inteligência de dados on-chain, a Chainalysis. Convencido na expertise de Michael, a justiça Japonesa o deu acesso a todos os dados internos da Mt. Gox.

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Durante a sua investigação, Michael descobriu que a corretora estava perdendo bitcoins desde o início de 2011 para um hacker. Durante os três anos em que os bitcoins foram roubados, a gestão da Mt. Gox nunca se deu conta que os seus cofre jorravam bitcoins.

Após uma longa investigação foi descoberto que um hacker russo, Alexander Vinik, era UM dos responsáveis pelo roubo, inocentando Mark. Vinik chegou a criar a sua própria exchange, Bitcoin-E, para lavar os bitcoins roubados. Vinik eventualmente foi preso durante uma viagem à Grécia em 2017.

Forçados a segurar até a lua

Antes de ser preso, Mark entregou uma carteira fria que havia caído no esquecimento no escritório da Mt. Gox à justiça japonesa. No final do ano passado, os bitcoins começaram a ser devolvidos aos clientes da Mt. Gox.

A carteira tem 141.686 bitcoins e 143.000 bitcoins cash (um token criado após uma bifurcação na rede bitcoin). Apesar de só representar uma fatia dos bitcoins que foram perdidos, após serem forçados a segurar uma posição de bitcoins que aumentou mais de 80 vezes em preço durante os últimos dez anos, os clientes lesados pela perda dos tokens em 2014 devem ser beneficiados com um belo retorno.

O legado de um desastre

A Mt. Gox tropeçou para que as exchanges modernas pudessem correr. Isso não significa que não existem riscos e desfalques que precisam ser endereçados. O colapso da FTX no final de 2021 mostra que ainda há muito progresso a ser feito.

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Porém, no que diz respeito às medidas de segurança, controles financeiros, transparência com usuários e escalonamento para atender a crescente demanda, a indústria de exchanges como um todo evoluiu anos-luz nos últimos dez anos, em grande parte como consequência dos erros e das lições aprendidas com a queda Mt. Gox.

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