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Cidade do RJ repassa R$ 130 por mês para 25% da população e vira laboratório da renda básica

Moeda social pode ser usada com um cartão nos quase 3.000 estabelecimentos credenciados, como mercados, farmácias e lojas de sapatos - Mariana Schreiber/BBC
Moeda social pode ser usada com um cartão nos quase 3.000 estabelecimentos credenciados, como mercados, farmácias e lojas de sapatos Imagem: Mariana Schreiber/BBC

Mariana Schreiber - @marischreiber - Enviada da BBC News Brasil a Maricá (RJ)

15/01/2020 05h38

Resumo da notícia

  • Maricá tem um dos maiores programas de renda básica do mundo
  • Desde dezembro, 40 mil pessoas recebem o benefício
  • Recursos vêm dos royalties de exploração de petróleo; cidade é a que mais recebe compensação no Brasil
  • Programa recebe críticas dentro da própria cidade

Graças a seu litoral de 46 quilômetros virado para campos com produção crescente de petróleo na Bacia de Santos, Maricá, município fluminense de 161 mil habitantes a cerca de 60 km do Rio de Janeiro, se tornou a cidade brasileira que mais recebe compensações pela exploração do produto.

Aproveitando a enxurrada de recursos em forma de royalties e participação especial (R$ 1,9 bilhão previstos para 2020), a prefeitura comandada por Fabiano Horta (PT) começou a implementar no final de 2019 um dos maiores programas de renda básica do mundo, com objetivo de distribuir para cada morador da cidade um benefício mensal equivalente a R$ 130.

Desde dezembro, 40 mil pessoas com renda familiar de até três salários mínimos estão ganhando o benefício, ao custo de R$ 62,4 milhões ao ano, e a meta é chegar a todos os habitantes — não importa se rico ou pobre — até 2022. A fim de estimular a economia local, o benefício é pago em mumbucas, uma moeda social que circula apenas dentro do município desde 2014, e pode ser usada com um cartão nos quase 3.000 estabelecimentos credenciados, como mercados, farmácias e lojas de sapatos.

"A renda básica é vista como um direito do ser humano. Queremos tornar Maricá um dos polos desse debate de que todo mundo deve ter uma vida digna, mostrar que o sonho é possível. É a cidade das utopias", afirma o secretário de Economia Solidária do município, Diego Zeidan.

A ideia de que todos devem receber um benefício individual mínimo para sua subsistência sem qualquer exigência em troca tem ganhado fôlego no mundo na medida em que cresce a preocupação com a precarização do mercado de trabalho e a destruição de empregos devido aos avanços tecnológicos e à globalização.

Críticos da proposta, porém, dizem que, além de cara e inviável para a maioria dos governos, ela é menos eficiente na redução de desigualdades e criação de oportunidades do que programas de renda focados nos mais pobres e na qualificação das pessoas.

Resistência local

Na cidade de Maricá, a ideia de dar dinheiro para todos sofre resistência, assim como em outros países. Em geral, moradores e comerciantes ouvidos pela BBC News Brasil elogiaram a moeda social e a recente ampliação do benefício (antes a prefeitura pagava 130 mumbucas por família de baixa renda, não por pessoa), mas é raro encontrar quem apoie dar dinheiro até aos que têm boa condição de vida.

"Dizem que é direito de cada cidadão (receber parte dos royalties). Na teoria tá certo, o petróleo é de Deus, da natureza. Mas pra alguns (R$ 130) não faz nem cócegas. Devia focar os pobres", disse à BBC News Brasil a dona de casa Kátia Regina Antunes, 49 anos, moradora do bairro Mumbuca, comunidade próxima ao centro de Maricá, que margeia o rio de mesmo nome.

Beneficiária do programa desde 2014, quando o benefício chegava a R$ 70, ela cria sozinha o filho de 11 anos diagnosticado com autismo e viu o valor recebido por sua família dobrar agora de 130 para 260 mumbucas. Com esse recurso, que reforça o salário mínimo garantido a ele pela Lei Orgânica da Assistência Social, os dois conseguem ter uma alimentação melhor.

"Eu uso o cartão mumbuca para comprar gás pra cozinha, fruta, carne. O pai não ajuda em nada, não tem pensão", conta ela, na porta de sua casa, em uma rua recém-pavimentada pela prefeitura. "Antes, o rio subia e era só lama aqui."

Gerente de um pequeno mercado a poucas quadras da casa de Kátia, Inês Pontin Guimarães, de 45 anos, diz que os beneficiários "compram alimentos, coisa básica mesmo". Ela elogia a expansão do programa pelo impacto no comércio da cidade, mas diz que não solicitará o benefício, mesmo que ele passe a ser destinado a todos: "Eu abro mão, já sou beneficiada com as vendas".

Os sonhos da cidade, no entanto, podem ruir caso o STF autorize uma distribuição mais igualitária dos recursos do petróleo com todo o país, no lugar das regras em vigor que favorecem regiões produtoras. Depois de muitos adiamentos desde 2013, o julgamento está previsto para abril deste ano.

Segundo a Agência Nacional do Petróleo (ANP), Maricá perderia 69% das suas receitas com royalties e participação especial. Mas, como o Estado e a cidade do Rio também perderiam alguns bilhões nos próximos anos, a prefeitura minimiza o risco. "Se cortarem mais verba para a cidade do Rio de Janeiro e para o Estado, ambos falem. Então, é difícil mudar qualquer coisa a médio prazo", estima Zeidan.

Mantida a regra atual, a ANP projeta que Maricá receberá R$ 4,7 bilhões nos próximos quatro anos. A prefeitura está depositando parte do dinheiro num fundo, para usar os rendimentos quando o repasse do óleo perder força, o que o governo prevê que deve acontecer depois de 20 anos. O saldo da aplicação está próximo de R$ 200 milhões e espera-se chegar a R$ 2 bilhões em uma década.

'O benefício é bom, mas eu preferia que dessem emprego'

Enquanto a ameaça paira sobre o cofre de Maricá, moradores de baixa renda que ainda não conseguiram o cartão Mumbuca aguardam ansiosos sua vez.

Desempregada há dois anos desde que perdeu o trabalho com carteira assinada que tinha como doméstica, Elisângela da Silva, 40 anos, contou à BBC News Brasil que tentou entrar no programa em novembro, quando a prefeitura abriu o cadastramento dos novos beneficiários. No entanto, seu pedido foi rejeitado porque seus dados não estavam atualizados no Cadastro Único, sistema do governo federal que registra as famílias de baixa renda para programas sociais. Essa é uma das exigências, além da comprovação de residência no município de ao menos três anos, para evitar uma onda de imigrantes.

"Tinha que estar tudo certinho, vi gente na fila chorando (porque teve o pedido recusado). Minha irmã conseguiu e eu vou tentar de novo ano que vem (2020)", disse esperançosa, embora a prefeitura diga que só vai reabrir o programa após a eleição municipal de outubro, quando Horta tentará continuar no cargo, para evitar questionamentos da Justiça sobre uso eleitoral do programa.

Apesar de o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) mostrar que a criação de vagas formais em Maricá cresceu 12% no acumulado do ano encerrado em novembro, a família de Silvia enfrenta dificuldades para conseguir uma oportunidade com carteira assinada. Ela conta que hoje vive de fazer faxinas, enquanto o marido realiza bicos como pedreiro. O casal e dois filhos moram no bairro Parque Nanci, em uma rua onde o asfalto chegou "há um ano e pouco", mas falta água encanada e rede de esgoto.

Ela conversou com a reportagem no final de dezembro sentada no banco de uma praça no Centro de Maricá, enquanto a filha de nove anos brincava com uma estátua do Papai Noel. A decoração fazia parte do Natal Iluminado, investimento de R$ 5 milhões da prefeitura que enfeitou a cidade com 1,5 milhão de microluzes de led, trenós, presépios, além de ter promovido desfiles natalinos com carros alegóricos, shows e oficinas de arte, com objetivo de estimular o turismo.

"Para quê esse monte de luz, se não tem água", crítica. "O benefício (do Programa Mumbuca) é bom, mas eu preferia que dessem emprego", disse também.

Outra que não pôde entrar no programa Mumbuca é a baiana Maria Aparecida de Aragão dos Santos, 29 anos. Ela conta que chegou à cidade há meia década com duas filhas pequenas fugindo da fome em Jaquaquara, pequena cidade no interior da Bahia, mas não conseguiu ainda comprovar que já reside em Maricá há três anos.

Recentemente, conseguiu um emprego com carteira assinada em um mercado no bairro Mumbuca onde ganha um salário mínimo (R$ 1.039), do qual R$ 400 vão para o aluguel de uma abafado quarto e sala onde mora com as filhas, hoje com seis e oito anos. Santos chora ao contar que quer o benefício da renda básica (R$ 390 no caso da sua família) para garantir "arroz e feijão" para as filhas.

"Eu passei muita fome, já quis me matar. Comia banana verde, jaca verde. Minha avó conta que chupava o bagaço da cana que alguém já tinha chupado por não ter o que comer", diz, com o rosto inchado, ao lembrar da vida na Bahia.

Embora não tenha ainda conseguido o benefício, a baiana elogia a prefeitura pelo transporte gratuito (14 linhas de ônibus circulam com tarifa zero), a limpeza da cidade e a decoração de Natal. "É a cidade mais linda", diz, mostrando opinião bem diferente da do ex-prefeito do Rio Eduardo Paes (DEM), que, ao comparar Maricá com Atibaia (SP) em uma conversa com ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) grampeada pela Operação Lava Jato, disse que a cidade era "uma merda de lugar".

Exemplo para o mundo ou sonho para poucos?

A ambição da renda básica oferecida pela Prefeitura de Maricá atraiu atenção internacional: o centro de pesquisa americano Jain Family Institute (JFI), baseado em Nova York, firmou parceria com o departamento de economia da Universidade Federal Fluminense (UFF) para avaliar os impactos sociais e econômicos do programa. No primeiro ano, serão feitas 1.700 entrevistas com maricaenses, e mais 170 conversas mais longas.

A indiana Sidhya Balakrishnan, diretora de pesquisa do JFI, diz que a organização está empolgada com o programa Mumbuca porque ele se diferencia dos programas piloto, de curta duração e focados em poucas pessoas, que vêm sendo realizadas em países como Canadá, Quênia, Espanha, Holanda, Índia e Estados Unidos. A cidade de Stockton, na Califórnia, por exemplo, está pagando US$ 500 (R$ 2.035) por mês a 125 pessoas de baixa renda por um período de 18 meses.

Já em Maricá, ressalta ela, a proposta é ter um programa permanente pagando um benefício significativo para um número grande de pessoas. Os pesquisadores avaliam que o valor equivalente a R$ 130 terá impacto relevante na vida dos maricaenses, considerando que a linha da pobreza no Brasil é de R$ 178.

"O programa Mumbuca é o maior de renda básica na América Latina e um dos maiores do mundo. O uso da moeda social é inovador e vai facilitar acompanhar como as pessoas gastam o dinheiro e analisar impactos macroeconômicos nos preços e no mercado de trabalho", explica.

Em um comunicado, o instituto americano diz que "as lições aprendidas em Maricá" podem servir para uma implementação mais ampla da renda básica no Brasil. Enquanto o petista Eduardo Suplicy, principal entusiasta da renda básica no Brasil, considera que a pesquisa desenvolvida pelo JFI e a UFF "contribuirá para uma discussão sem precedentes sobre renda básica universal no mundo".

A abundância de recursos que se vê em Maricá, no entanto, é rara no Brasil, o que torna difícil a replicação do programa. Com orçamento projetado em R$ 3,3 bilhões em 2020, sua prefeitura é possivelmente a que tem a maior quantidade de recursos para gastar por habitante no país: mais de R$ 20 mil.

Em 2018, quando Orçamento correspondia a R$ 13.159 por maricaense, já aparecia como segunda cidade com mais dinheiro per capita, segundo o ranking mais recente do Observatório de Informações Municipais. Para efeito de comparação, São Paulo, a maior cidade do país, tem orçamento previsto de R$ 68,9 bilhões em 2020, o que dá cerca de R$ 5.600 por paulistano.

Experiências que mais se aproximam da renda básica universal usam dinheiro do petróelo

Embora nenhum governo tenha implementado até o momento um programa de renda básica universal, duradouro, em larga escala, o Irã e o Estado americano do Alasca já usam há anos recursos do petróleo para fazer transferências de dinheiro a seus cidadãos.

No caso do país persa, onde o benefício mensal foi criado em 2011 para substituir subsídios ao consumo de pão e combustíveis, seu valor caiu à metade por causa da inflação e hoje vale cerca de US$ 20 (quase R$ 80). Além disso, o governo decidiu recentemente excluir pessoas de maior renda — o alcance do repasse, que já chegou a 97% da população, está em 90%, e o objetivo é cortar para 70%, explicou à reportagem o economista iraniano Djavad Salehi-Isfahani, pesquisador na universidade americana Harvard que acompanha o tema.

Ele vê pouca viabilidade em programas de renda básica universal em países que não são ricos em petróleo: "Em países sem essa riqueza, o programa deve ser financiado com impostos, o que introduz distorções (econômicas) e pode não ser politicamente aceitável. Geralmente, também é baixo o apoio político para pagar pessoas com renda acima da média", afirmou.

Já o Alasca paga desde 1982 um benefício anual a todos os cidadãos do Estado que costuma variar de US$ 1.000 (R$ 4.070) a US$ 2.000 (R$ 8.140). A experiência não é considerada um programa de renda básica universal perfeito pelo fato do pagamento não ser mensal e de o valor ser variável e insuficiente para a subsistência, já que o custo de vida lá é alto.

Em seu primeiro grande estudo sobre o tema, um documento de 337 páginas lançado em novembro, o Banco Mundial destaca que "financiar um UBI com impactos significativos na pobreza pode exigir uma combinação complexa de fontes (de recursos)", envolvendo aumentos de carga tributária "proibitivos politicamente". Ainda assim, o relatório ressalta que "o número crescente de experiências e pilotos, com variantes que datam da década de 1970, está mudando o UBI de um experimento teórico para uma opção política concreta".

Já uma simulação de 2018 da Organização Mundial do Trabalho indicou que a criação de uma renda básica universal no valor de 100% da linha da pobreza brasileira teria custo equivalente a 25% do PIB do país. Segundo o estudo, esse percentual ficaria em média em 30% nos países ricos e saltaria para 80% entre os mais pobres (como nações na África Subsaariana).

Contra o ceticismo com a viabilidade da proposta, o indiano Sarath Davala, vice-presidente da BIEN (Rede Mundial da Renda Básica), diz que o financiamento de renda básica universal pode vir das riquezas naturais, como no caso de Maricá, mas também de soluções inovadoras como cobranças sobre empresas de tecnologia.

"Dados são o novo petróleo. O que estamos ganhando das grandes companhias pelos dados que usam de nós? Nós todos contribuímos para Google Maps, Google isso, Google aquilo", argumenta.

Além da preocupação com as mudanças no mercado de trabalho, defensores da renda básica universal sustentam que esse tipo de programa elimina a burocracia para definir quem deve ser atendido por programas assistenciais, assim como o estigma sobre os beneficiários. Dizem ainda que a garantia de um dinheiro mínimo melhoraria a saúde mental das pessoas e daria segurança para elas empreenderem mais.

Renda básica x serviços públicos

Defendida dentro do PT há anos, a renda básica universal pode parecer aos brasileiros uma política tipicamente de esquerda. A proposta, porém, tem entusiastas e críticos em diferentes campos políticos.

Para parte da esquerda, um programa de renda básica universal retiraria recursos de serviços públicos que são importantes para reduzir a desigualdade social, como saúde, educação, e programas de moradia.

Uma fatia do campo liberal, por sua vez, defende a ideia porque apoia a redução do Estado e considera melhor que dinheiro seja dado na mão das pessoas para que elas decidam o que fazer com ele.

Esse debate está quente no Alasca no momento, onde o governador republicano Mike Dunleavy foi eleito prometendo aumentar o benefício anual pago com os recursos do petróleo para US$ 3.000, a despeito da crise fiscal do Estado. Ele tem promovido cortes no repasse para a Universidade do Alasca e em outros serviços, mas ainda não conseguiu cumprir a promessa.

Para a economista Celia Kerstenetzky, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, não é possível cravar que um programa de renda básica universal leve necessariamente ao encolhimento do Estado. Segundo ela, isso dependerá dos efeitos no mercado de trabalho e na arrecadação: por exemplo, se esse benefício vai movimentar a economia e gerar mais negócios, ou reduzir a disposição das pessoas para o trabalho. Na sua visão, o programa de Maricá é bem-vindo justamente para que se entenda melhor os efeitos dessa política.

Ainda assim, ela diz que não vê a renda básica universal como "uma bala de prata" para resolver os problemas sociais do Brasil, e defende que o foco principal deve estar num reforma tributária que torne a arrecadação mais progressiva (mais incidente sobre os mais ricos) e permita ao Estado financiar políticas públicas de bem-estar social.

"Não é preciso inventar a roda: isso foi o que países que conseguiram progredir socialmente, com redução significativa de desigualdades e pobreza, fizeram e continuam a fazer", respondeu à BBC News Brasil por email.

Em Maricá, governada pelo PT desde 2009, a prefeitura diz que o programa não compromete outras áreas. Segundo ranking da Federação das Indústrias do Estado do Rio (Firjan), o município abastecido pelo dinheiro do petróleo é o que mais investe entre os fluminenses. Entram nesse conta gastos com escolas, hospitais, pavimentação de ruas, iluminação pública, entre outros.

Para expandir a rede de saneamento básico, que atende apenas 4% da população, o governo diz que "serão construídas a partir de 2020 duas grandes estações de tratamento de esgotos e uma enorme rede coletora, interligada à rede pluvial, para impedir o lançamento in natura no complexo lagunar da cidade", com investimento de R$ 180 milhões.

Na saúde, o destaque é a construção do hospital Che Guevara — o nome causa controvérsia entre a população, mas a reclamação maior é com a demora da obra, que agora está em fase de finalização após três anos de atraso no cronograma original.