O sentimento de culpa de pais que trabalham em tempo integral
É difícil equilibrar as pressões da família e do trabalho. E pesquisas indicam que, quando os pais sentem vergonha da forma como estão gerenciando o "equilíbrio impossível", quem perde é a carreira.
A vergonha é um sentimento familiar para Gill, especialista em carreiras do Reino Unido, que trabalha muitas horas por dia.
Ela se vê frequentemente lutando contra a culpa quando acelera a rotina da hora de dormir para voltar ao seu computador, ou quando um compromisso do trabalho significa que ela vai chegar tarde para pegar suas crianças na escola. "Eu não suporto o olhar dos meus filhos quando eles são os últimos a serem levados para casa", ela conta, acrescentando que precisa reprimir ativamente os sentimentos negativos para que eles não prejudiquem seu trabalho.
Pais que trabalham muitas vezes se sentem inferiores. Mães que trabalham, particularmente, lamentam com frequência os conflitos para conciliar as exigências profissionais e seu desejo de estar presente com seus filhos.
Novas pesquisas indicam que esses sentimentos negativos podem causar impactos diretos sobre as carreiras das pessoas. Pais que relatam sentimentos de vergonha tendem a ser menos produtivos no trabalho. Isso ocorre quando eles se sentem mal sobre sua conduta como pais e se afastam da atividade que, segundo eles, está causando problemas. Isso pode prejudicar o desenvolvimento de suas carreiras ou até fazer com que alguns deixem o mercado de trabalho.
Neste momento em que os pedidos de demissão - especialmente entre as mulheres que trabalham - estão atingindo recordes de alta em alguns países, é importante compreender a relação entre a vergonha dos pais e o desempenho no trabalho. Dedicar tempo para avaliar como podemos normalizar e suportar o equilíbrio que tantos cuidadores procuram poderá não só melhorar a vida dos pais, mas também manter as mulheres no mercado de trabalho nesta época de turbulências econômicas sem precedentes.
'Ameaça da identidade parental'
Os pais - e particularmente as mães - há muito tempo vêm sendo levados a formar identidades que combinem o trabalho e a paternidade. A ideia de "ter os dois" ganhou proeminência nos anos 1980, quando as mulheres entraram em massa no mercado de trabalho.
Mas, nos últimos anos, especialistas fizeram recuar a noção de que os indivíduos podem gerenciar, de forma feliz e eficaz, o sucesso no trabalho, a casa e a vida familiar simultaneamente. Eles indicam que este é um alto padrão impossível para ter como objetivo. Hoje, existe maior aceitação dos desafios de combinar os papéis profissionais e familiares, mas muitos pais ainda sentem a pressão para fazer melhor.
Para Cynthia Wang, professora clínica de administração e organizações da Universidade do Noroeste, nos Estados Unidos, sua experiência pessoal despertou o interesse pelo estudo da vergonha parental. Wang e sua equipe de pesquisa - formada por profissionais de universidades do Reino Unido e dos EUA - também são pais. E, embora eles valorizem suas carreiras e seus filhos, todos eles sentem muita pressão para que sejam pais e funcionários perfeitos.
Wang e seus colaboradores decidiram examinar o que acontece quando pais que trabalham sentem que não estão atendendo às expectativas sociais de equilibrar bem a família e a casa. Eles pediram a centenas de pais que trabalham que respondessem uma pesquisa online para determinar sua estabilidade emocional e sua capacidade de lidar com situações estressantes antes de começar o dia de trabalho.
Depois, eles pediram aos participantes que avaliassem o quanto eles concordavam com afirmações como "alguém observou meu papel como pai de forma negativa". Wang e sua equipe estavam procurando algo que eles chamavam de "ameaça da identidade parental", que descreve a forma como os pais se sentem quando seu papel como cuidador é ameaçado pelas exigências da carreira e o equilíbrio entre ambos torna-se insustentável.
"A ameaça da identidade parental é algo que acontece no trabalho e faz você questionar se é um bom pai", explica ela. "Um colega de trabalho pode perguntar, por exemplo, quem cuida do seu filho quando você trabalha até tarde ou a escola do seu filho pede voluntários para acompanhar uma excursão, mas você não pode comparecer porque será no seu horário de trabalho. Esses casos fazem os pais sentirem vergonha."
Pediu-se aos mesmos pais que relatassem, depois do término do dia de trabalho, se eles haviam se sentido envergonhados, constrangidos ou humilhados quando sua identidade parental foi ameaçada e qual foi a sua produtividade no trabalho naquele dia. A pesquisa indicou que, quando os pais sentiam altos níveis de ameaça à sua identidade parental, eles também relatavam níveis mais altos de vergonha e menores níveis de produtividade.
"Quando os pais são críticos sobre a forma como eles próprios criam seus filhos, o resultado é o abandono das situações que acionem esses sentimentos de vergonha - ou seja, eles se afastam das suas responsabilidades no trabalho", afirma Wang. "Ao distanciar-se do trabalho, os funcionários tentam gerenciar a culpa sinalizando que eles não permitirão que o trabalho prejudique suas tarefas como pais. Assim, eles não podem ser julgados por se dedicarem mais ao trabalho que aos seus filhos."
'O que ela vai se lembrar é do quanto eu trabalhava'
Para muitos pais que trabalham, a pandemia exacerbou os desafios existentes ao diluir os limites entre o tempo de cuidar dos filhos e o dia de trabalho.
Angela é mãe de uma criança que trabalha como consultora nos Estados Unidos. Durante a pandemia, ela lutou contra o estresse causado pelos conflitos entre o seu trabalho e a vida doméstica.
"Tínhamos aulas no Zoom ao mesmo tempo em que meu marido estava em reunião", ela conta. "Eu recebia mensagens da professora dizendo 'estamos ouvindo vocês em videoconferência durante a aula'. A nossa casa é pequena e realmente não temos um espaço reservado."
O conflito entre educar sua filha em casa e atender às necessidades dos clientes exacerba os sentimentos de culpa já existentes. Angela conta que tenta fazer o melhor pela sua filha, estabelecendo limites para dedicar mais tempo às tarefas familiares. Mas, mesmo quando ela perde prazos no trabalho para priorizar sua família, Angela ainda se preocupa com sua filha olhando para a infância no futuro como o tempo em que seus pais estavam constantemente concentrados no trabalho.
"Meu receio é que, de todas as coisas que faço para [minha filha] e todas as formas de estar presente na vida dela, o que ela irá se lembrar é de quanto eu trabalhava", afirma Angela.
Christy Pruitt-Haynes, consultora de recursos humanos do Instituto NeuroLeadership, nos Estados Unidos, conta que muitos pais enfrentam os mesmos desafios de Angela na pandemia.
"Muitas pessoas costumavam deixar o escritório como um sinal de que o dia de trabalho havia acabado e era hora de passar para o 'modo pai'", conta ela. "Quando o seu local de trabalho e a sua casa estão no mesmo lugar, fica difícil fazer essas mudanças mentais entre as identidades de pai e de funcionário. Acabamos descobrindo que, durante a pandemia, os pais trabalharam mais, viram as necessidades dos filhos aumentarem e lutaram para encontrar o equilíbrio."
Mais uma causa de vergonha
Para algumas pessoas, sentir vergonha como pai pode ter impacto apenas temporário sobre a produtividade. Mas, se as emoções negativas forem profundamente incorporadas ao dia de trabalho, os pais podem acabar abandonando partes mais significativas da vida no escritório.
"As pessoas que sentem culpa são menos propensas a colaborar em reuniões ou voluntariar-se para novos projetos e iniciativas", afirma Naomi Murphy, professora de psicologia da Universidade Nottingham Trent, no Reino Unido, cuja pesquisa concentra-se na vergonha parental. "Ela [a vergonha] pode também ter impactos sobre os relacionamentos com os colegas, tornando-os irritáveis e colocando-os em posição defensiva."
No pior dos casos, o efeito da vergonha parental sobre o desempenho no trabalho poderá gerar rotação de pessoal muito maior e pedidos de demissão de trabalhadores insatisfeitos - algo que causa impactos à estrutura do mercado de trabalho e ao papel das mulheres.
Dados indicam que, em meados dos anos 2020, a participação das mulheres no mercado de trabalho caiu para seu percentual mais baixo nos últimos 30 anos e um terço das mulheres no mercado de trabalho norte-americano reduziu seu volume de trabalho ou saiu dos seus empregos entre março de 2020 e agosto de 2021. Já uma pesquisa global demonstrou que as principais forças que impulsionaram as mulheres a deixar seus empregos foram o aumento das responsabilidades no trabalho devido à pandemia e as dificuldades para cumprir com essas responsabilidades enquanto também respondiam pela maior parte das tarefas domésticas.
O início do retorno ao escritório também trouxe mais uma causa de vergonha, segundo Melissa Huey, professora de psicologia do Instituto de Tecnologia de Nova York, nos Estados Unidos.
"Observar o tempo perdido com as carreiras e que poderia ter sido passado com as crianças pode ser desanimador", segundo ela. "Como resultado, a produtividade no trabalho é reduzida e as tarefas diárias repentinamente perdem o sentido ou parte da importância que tinham antes da pandemia. Esses sentimentos de culpa, mais o burnout que muitos estão sofrendo, podem ser uma das razões que agora nos levam a ver trabalhadores deixando seus empregos em números recorde."
Normalizar o conflito
Naomi Murphy acredita que tornar o local de trabalho um ambiente melhor para que os funcionários possam equilibrar suas carreiras e o cuidado com os filhos deveria ser prioridade para os empregadores.
"Pode ainda levar tempo até que se reconheça que a vergonha e a culpa são uma parte normal da criação dos filhos", afirma ela. "Os empregadores deveriam iniciar discussões para reconhecer que o seu funcionário está lidando com circunstâncias mais complexas da vida no momento e incluir isso no contexto de uma série de eventos que precisam ser gerenciados por diferentes pessoas em momentos diversos, como o luto, problemas de saúde ou o envelhecimento dos pais. A maioria das pessoas tem filhos ou sofre uma ou mais dessas circunstâncias em algum momento e compreenderá o sofrimento de um funcionário que está lutando contra a culpa."
Já Cynthia Wang afirma que encontrar fortes redes de apoio ou mentores emocionalmente estáveis pode ser uma forma de ajudar os trabalhadores a reduzir a sensação de vergonha parental, mas existe também muito trabalho a fazer sobre a reformulação da noção de vergonha.
"A sociedade impõe muita pressão para que os pais que trabalham sejam 'perfeitos'", afirma ela. "Acho que a compreensão de que nenhum pai ou funcionário é perfeito pode ser útil. Pesquisas indicam que, quando os indivíduos que enfrentam uma tarefa estressante sabem que suas emoções negativas não são prejudiciais, mas sim benéficas, eles demonstram menos vergonha e até realizam melhor suas tarefas."
Christy Pruitt-Haynes acrescenta que os locais de trabalho devem permitir que os funcionários falem sobre os problemas da vida real e sobre o "equilíbrio aparentemente impossível" entre ser um pai e trabalhar. "Nossa tendência é de sentir vergonha quando achamos que fizemos algo errado. Se uma empresa reconhece que é normal sentir-se puxado em duas direções, o funcionário não se sentirá tão mal. Eles simplesmente se sentirão normais", conclui ela.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.