Fentanil chinês cria nova era de chefes do tráfico de drogas
(Bloomberg) -- Do lado de fora dos portões de um complexo residencial chamado Oak Bay, um frenesi de construção acomete a cidade de Wuhan, na região central da China, uma metrópole de 11 milhões de pessoas que tenta alcançar Pequim e Xangai. O barulho de britadeiras e caminhões de cimento desaparece nos muros do complexo. No interior, um oásis frondoso de jardins bem cuidados e calçadas sinuosas de tijolos vermelhos atrai os moradores para sessões matinais de tai chi às margens do rio Yangtze.
Entre os 5.000 apartamentos, no 20º andar de um arranha-céu, mora Yan Xiaobing, um distribuidor de produtos químicos com cabelos curtos e espetados. Sua esposa, Hu Qi, dirige uma empresa de ensino de inglês. Nas redes sociais, o casal e seus dois filhos pequenos aparecem sob o céu azul na praia e posando em pontos turísticos da Europa e do Japão. Uma foto mostra Yan lendo para alunos em uma sala de aula.
Com óculos de meia armação, chinelo de plástico azul e camisa de botão, Yan parecia um trabalhador de escritório comum quando os repórteres da Bloomberg News o encontraram no final do ano passado. Preenchendo a porta de entrada do apartamento com sua estatura de 1,80 metro, ele expressou perplexidade com o retrato que o Departamento de Justiça dos EUA pintou dele: não um modesto empresário, mas um novo tipo de traficante internacional de drogas. "Isso é horrível", disse ele. "A investigação deles deve ter cometido um erro."
Em setembro, promotores federais no Mississippi acusaram Yan, de 41 anos, de comandar um império construído com a fabricação e a venda de drogas relacionadas ao fentanil, um dos narcóticos mais mortais e lucrativos do mundo. Tão forte que chegou a ser estudada como arma química, a droga saturou as ruas dos EUA com uma velocidade de tirar o fôlego: mata mais pessoas do que qualquer outro opiáceo, incluindo remédios controlados e heroína, porque pode causar uma overdose facilmente. As autoridades afirmam ter vinculado Yan e sua empresa, a 9W Technology, a mais de 100 distribuidores nos EUA e em pelo menos 20 outros países. Os investigadores esperam dezenas de detenções enquanto desmantelam sua suposta rede.
Um mês após a acusação, o vice-procurador-geral Rod Rosenstein concedeu uma entrevista coletiva em Washington para chamar a atenção para Yan e outro homem, Zhang Jian, de 39 anos, que é acusado de um esquema similar. A acusação deles, disse Rosenstein aos jornalistas, representou "um marco importante em nossa batalha para impedir que o fentanil mortal chegue aos EUA".
Yan é o primeiro cidadão chinês adicionado pelos EUA à sua lista de "alvo prioritário e consolidado da organização", indivíduos que supostamente comandam as redes mais prolíficas de tráfico de drogas e lavagem de dinheiro. Investigadores dizem que a estratégia dele era oferecer compostos semelhantes ao fentanil chamados análogos - que diferem ligeiramente em nível molecular, mas produzem efeitos similares - para explorar as discrepâncias entre as leis dos EUA e da China. Rosenstein expressou otimismo de que seus colegas chineses responsabilizariam Yan.
Mas se Yan não parece um traficante comum, o fentanil também não é uma droga comum. Ele mudou a forma como os traficantes fazem negócios e como essa atividade é policiada. A Bloomberg News examinou centenas de páginas de documentos judiciais e relatórios governamentais e entrevistou traficantes de drogas e agentes da lei, refazendo um caminho bizantino que levou investigadores de um estacionamento do Mississippi até Wuhan.
O que surgiu não se assemelha muito à fantasia dos filmes, com armas e carros de luxo, e parece mais com uma operação que agencia chaveiros de brinde ou cosméticos falsificados. Despachar drogas fatais é quase tão fácil quanto despachar qualquer outra mercadoria que os americanos importam todos os dias do país de 1,4 bilhão de habitantes.
Fentanil
A ascensão da droga coincidiu com o surgimento da dark web, dos aplicativos de mensagens criptografadas e de criptomoedas como o bitcoin, elementos que ajudam os fabricantes a permanecerem anônimos. Eles podem transportar centenas de milhares de doses através do correio dos EUA ou da FedEx - deixando para trás agentes da lei acostumados a rastrear grandes carregamentos de narcóticos.
As autoridades chinesas controlam o fentanil, mas demoraram a proibir novos análogos. E só começaram a restringir os dois ingredientes mais comuns do fentanil neste ano, mais de uma década depois que os EUA. Além das operações clandestinas, segundo a Administração de Alimentos e Medicamentos dos EUA (FDA, na sigla em inglês), laboratórios legítimos também fabricam o opiáceo ilícito. E, ao contrário dos EUA, qualquer pessoa pode vender ou comprar prensas de comprimidos, que os traficantes usam para enganar os dependentes e levá-los a pensar que estão comprando drogas mais leves, como OxyContin, quando na verdade estão recebendo fentanil.
Autoridades americanas falam com diplomacia ao abordar a cooperação com a China. Elogiaram a inclusão de mais de 130 drogas sintéticas - incluindo pelo menos 10 análogos do fentanil - à lista de substâncias controladas desde 2015. Em Pequim, os presidentes Xi Jinping e Donald Trump discutiram em novembro maneiras de melhorar a coordenação sobre drogas em geral e sobre o fentanil em particular.
Mas as autoridades chinesas rejeitaram a alegação dos EUA de que a maioria do fentanil ilícito é originária de seu país. "A maior dificuldade que a China enfrenta no controle de opiáceos é que há uma enorme demanda por essas drogas nos EUA", disse Yu Haibin, da Comissão Nacional de Controle de Narcóticos da China, em dezembro, segundo o China Daily.
Acusado pelos EUA
De acordo com a acusação feita pelos EUA, Yan é um fora-da-lei astuto. Pessoalmente, ele tem uma resposta para cada acusação. Sim, ele enviava análogos de fentanil e outros compostos para os EUA, mas isso foi antes de eles se tornarem ilegais na China, e ele não se envolveu com outros que eram proibidos.
A empresa de Yan, 9W Technology, mudou de nome para 5A Pharmatech em março de 2016, de acordo com o Registro de Empresas de Hong Kong. Em seu site, a 5A listava no ano passado sua sede em Wuhan e duas fábricas: uma especializada em produtos químicos a granel de até 500 quilogramas e a outra em "produção por tonelada". Ela se gabava de fornecer ingredientes para gigantes do setor farmacêutico, como Pfizer, Abbott Laboratories, Merck & Co. e Johnson & Johnson.
Yan disse que essas alegações eram apenas exagero para fazer com que a empresa parecesse bem estabelecida. Em vez disso, ele afirmou que era um mero agente. Ele comprava produtos químicos de laboratórios chineses, comercializava-os pela internet, usava empresas de frete para despachá-los e recebia pagamentos por transferências internacionais. Ele afirmou ter usado pseudônimos como uma forma de contornar uma cláusula de não concorrência de um trabalho anterior. A Bloomberg News não pôde comprovar nenhuma dessas afirmações.
Yan e a esposa inicialmente concordaram em conceder entrevistas para limpar sua reputação. Mas nas semanas seguintes, o site da 5A Pharmatech desapareceu e Yan parou de responder a e-mails. Quando os repórteres da Bloomberg visitaram a torre de escritórios listada como endereço da 5A, outra empresa ocupava o espaço e seus funcionários disseram que nunca tinham ouvido falar da companhia. Em abril, Hu apresentou documentos para dissolver a 5A Pharmatech.
Sete meses após a entrevista coletiva de Rosenstein, a China não extraditou Yan nem o outro mandachuva acusado, Zhang. E, em uma rara entrevista que foi ao ar em dezembro, Yu, da Comissão de Controle de Narcóticos, disse à Vice que os EUA não conseguiram provar que nenhum desses dois homens violou a lei chinesa.
"Ainda não chegamos ao ponto de indiciá-los ou prendê-los", disse Yu. "Os EUA acusaram unilateralmente esses dois cidadãos chineses, o que causou dificuldades práticas em nossa investigação subsequente." A comissão não respondeu a diversos pedidos de comentários para esta matéria.
--Com a colaboração de Natalie Obiko Pearson e Michael Smith.
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