Recenseadores coletam dados de moradores até em sauna para tentar concluir Censo
As dificuldades em conseguir obter os dados da população faz com que os recenseadores tenham de ser criativos, desde que o trabalho de campo começou, no início de agosto passado. Seja pelo interfone, com os moradores descendo até a portaria ou batendo de porta em porta, o que vale é entrevistar o maior número de pessoas possível. Até questionário no elevador, com uma moradora que insistia que não tinha tempo para atendê-lo, Wesley já fez.
O resultado na sauna, porém, tem sido exceção. No último dia 26, quando o Estadão acompanhou o trabalho de Wesley em Higienópolis, bairro nobre da capital paulista, apenas um terço dos apartamentos respondeu o questionário. Ao todo, os recenseadores podem ir cinco vezes a um mesmo endereço, em horários diferentes, para tentar levantar as informações.
"Existe uma certa desconfiança sobre qualquer coisa que o poder público faz, mas há também uma falta de conhecimento. Às vezes, acham que é uma coisa de dez a 15 minutos individualizada", explica o recenseador de 24 anos, ao pontuar que os questionamentos podem ser feitos em cerca de um minuto.
Só que não era para Wesley estar trabalhando nesta época do ano. O trabalho de campo, que já se arrasta por quase seis meses, deveria ter sido concluído na metade desse tempo - pelo cronograma inicial, a coleta de dados iria de 1º de agosto ao fim de outubro. No último dia 27, ainda faltava cobrir 13,5% dos "setores censitários", divisão operacional do território para organizar as visitas domiciliares. Até a mesma data, o IBGE contou 184,3 milhões de brasileiros, enquanto uma estimativa feita com base numa prévia do Censo 2022 apontou para uma população total de 207,8 milhões.
A resistência das pessoas é um obstáculo, mas fica mais restrita às famílias mais ricas do País, contingente relativamente pequeno em relação ao total da população. Desde que começou a informar sobre a prorrogação do trabalho de campo, o IBGE vem apontando a dificuldade em contratar recenseadores - que, como em todos os Censos, são temporários - como principal problema. A crônica de problemas estava anunciada desde a virada de 2018 para 2019, quando o órgão começou a ter dificuldades para aprovar o orçamento necessário, e passou por mudanças de metodologia, uma pandemia que parou o mundo e a polarização política durante as eleições.
Os atrasos associados a esses obstáculos poderão prejudicar a qualidade dos dados obtidos em campo, segundo especialistas ouvidos pelo Estadão/Broadcast. "Você tem que fazer a coleta concentrada em dois meses, mais um mês para o rescaldo. Quanto mais longe da data-base, mais fracas são as informações. Se somar isso a uma rede de recenseadores enfraquecida, com treinamento limitado, as chances de você ter uma base de dados ruim é muito grande. É muito preocupante fazer uma coleta em dezembro e janeiro para uma informação referenciada em julho", explicou Roberto Olinto, ex-presidente do IBGE, hoje pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV).
Defasagem
O problema da distância em relação à data-base, citado por Olinto, é pacífico entre especialistas. O Censo 2022 tem como data de referência o dia 31 de julho de 2022. Isso significa que, em todo o período de coleta, iniciado em 1º de agosto de 2022, as perguntas se debruçam sobre as condições em que os respondentes viviam naquela data. "Quanto mais distante essa data vai ficando, mais difícil recuperar essas informações. Você pergunta em janeiro (de 2023) qual era o rendimento das pessoas em julho (de 2022)", explicou Bruno Perez, diretor da executiva nacional do sindicato dos trabalhadores do IBGE, o Assibge.
A entidade sindical também tem criticado os atrasos. Em comunicado, alertou, ainda em dezembro, "que o simples prolongamento da coleta traz riscos à qualidade da informação". O diagnóstico é que o problema foi sistêmico, uma vez que houve atraso em todos os Estados. "Já em 2019 a Assibge alertava que o corte orçamentário do Censo e a alteração de seu projeto técnico - determinados pelo ministro Paulo Guedes (da Economia, no governo Jair Bolsonaro) e acatados pela direção por ele nomeada no IBGE - traziam sérios riscos à operação censitária", declarou o sindicato, em dezembro.
Diante da falta de recenseadores, até dias atrás o IBGE ainda tentava recrutar trabalhadores temporários para atuar em seis diferentes municípios de Mato Grosso: Nova Bandeirantes, Novo Mundo, Peixoto de Azevedo, Porto dos Gaúchos, Ribeirão Cascalheira e Vila Rica.
"Janeiro é um mês de férias, o que significa que muita gente se mexe, pra ir de um lado para outro, não é um mês indicado para fazer coleta. Da mesma forma que dezembro não é um mês indicado, porque as pessoas estão saindo de férias, ou para o Natal. São períodos muito inadequados para uma coleta de Censo Demográfico", afirmou Olinto, acrescentando que a pesquisa só está em campo graças ao esforço e à capacidade do corpo técnico do IBGE.
Desde o ano passado, a diretoria do IBGE tem culpado o aquecimento do mercado de trabalho, que surpreendeu ao gerar mais empregos ao longo do ano passado do que o inicialmente esperado, pela dificuldade em contratar recenseadores, mais do que a baixa remuneração oferecida aos temporários. Só que a limitação de recursos paira como um obstáculo desde antes da pandemia.
Em fevereiro de 2019, na posse da primeira presidente do IBGE da gestão Bolsonaro, Susana Cordeiro Guerra, o ex-ministro Paulo Guedes defendeu um Censo mais enxuto, para justificar cortes orçamentários em sua operação. Em tom de brincadeira, sugeriu que o IBGE vendesse seus edifícios com "vista para o mar" para destinar recursos para o Censo e disse que "quem pergunta muito acaba descobrindo demais". "Vamos tentar simplificar. O Censo de países desenvolvidos tem 10 perguntas, aqui tem 150", afirmou Guedes.
Seguiram-se sucessivos cortes orçamentários e discordâncias entre especialistas em torno da simplificação dos questionários, pedida pelo ministro. Os problemas causados pelas reduções no orçamento seriam agravados pela pandemia, principal motivo para adiar o Censo 2020.
A falta de recursos seguiu atrapalhando. Até que o Supremo Tribunal Federal (STF) agiu, em ação movida pelo então governador do Maranhão, Flávio Dino, hoje ministro da Justiça. Em maio de 2021, a Corte obrigou o governo a destinar recursos para a realização do Censo e permitiu que a pesquisa fosse feita em 2022.
Quando finalmente foi a campo, a pesquisa enfrentou dificuldade para contratar e, principalmente, manter os recenseadores efetivamente trabalhando. O IBGE precisava mobilizar cerca de 180 mil trabalhadores temporários para visitar todos os domicílios brasileiros, em todo o País e em poucos meses.
Os recenseadores não recebem um salário-base. O IBGE libera uma ajuda de custo semanal, que varia geralmente de R$ 200 a R$ 300, por cada setor onde a coleta de dados irá ocorrer. O valor recebido pelos questionários aplicados em cada domicílio também é variável e é pago se o morador atender o recenseador ou se ele tentar o contato mais quatro vezes.
Desde o início do trabalho de campo, reclamações sobre a remuneração baixa e a demora no pagamento fizeram muitos dos profissionais recrutados abandonarem o serviço, além de ameaçar greve. O IBGE tem dito que correu para ajustar valores, mas foi insuficiente.
O demógrafo Eduardo Rios-Neto, presidente do IBGE em 2021 e 2022, disse que a maior parte das reclamações teve a ver com o fato de que os pagamentos só podem ser feitos com o trabalho concluído - e lembrou que, como nunca antes, as redes sociais espalharam a insatisfação dos recenseadores, afastando novos interessados.
Orçamento
Se o baixo valor da remuneração oferecida não foi o principal motivo para afastar os recenseadores, a crônica de cortes no orçamento do Censo é longa. Os técnicos do IBGE orçaram inicialmente a operação censitária em R$ 3,1 bilhões, para que ocorresse em 2020. No contexto da transição para o governo Bolsonaro, a verba acabou cortada para R$ 2,3 bilhões, e os questionários foram enxugados. O sindicato dos servidores avalia que o orçamento inicialmente proposto precisaria ser corrigido pela inflação para R$ 3,7 bilhões para que o Censo fosse conduzido de forma adequada.
"Em 2010, a população brasileira era 10% menor do que a atual, mas ainda assim o orçamento do Censo 2010, atualizado pela inflação, equivaleria a R$ 3,4 bilhões em 2022. A desidratação do orçamento implicou a compactação de toda estrutura do Censo: redução das equipes, diminuição na divulgação, corte no número de equipamentos e combustível, e finalmente, redução nos valores pagos aos recenseadores e supervisores", enumerou o Assibge, no comunicado divulgado em dezembro.
Para o Roberto Luiz do Carmo, professor do Departamento de Demografia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a falta de dinheiro está por trás dos problemas enfrentados desde antes de 2020. O corte no orçamento, de cerca de R$ 3 bilhões para pouco mais de R$ 2 bilhões, foi de cerca de 30%, lembrou o acadêmico, presidente da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (Abep), entidade acadêmica do campo da demografia, até o fim de 2022.
"Com 30% a menos, certamente ficou mais difícil realizar o que estava previsto. Se houvesse interesse do governo em realização de políticas públicas de qualidade, o Censo deveria ter sido priorizado. O que não foi o caso", afirma Carmo.
Eleições
Para o pesquisador José Eustáquio Diniz Alves, professor aposentado da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Ence), ligada ao IBGE, o adiamento causado pela pandemia ainda empurrou o Censo para um conturbado ano eleitoral. Por isso, o pesquisador era favorável a que se tentasse fazer a pesquisa em 2021.
"Eu achava que a polarização política iria prejudicar o trabalho dos recenseadores, como de fato ocorreu", afirmou Diniz Alves. Ele se referia à disputa que dividiu o País entre os apoiadores do então presidente Jair Bolsonaro, candidato à reeleição pelo PL, e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pelo PT, que foi vitorioso.
O recenseador Wesley Mendonça viu maior influência da polarização política durante o período de campanha eleitoral. "No começo de setembro eu fui fazer a coleta em um prédio onde moradores de uns dois ou três apartamentos falaram que era a 'pesquisa do Lula'. Eu disse que não, e expliquei exatamente aquilo que nos ensinam no treinamento", contou.
E a recusa a receber os recenseadores, comum entre os mais ricos, também atrapalhou. "Mesmo explicando, as pessoas às vezes desconfiam. Dão carteirada, falam que não vão passar determinado dado porque são formados em direito e tal", explica Wesley. Houve também ameaças e episódios de violência contra os pesquisadores. Para os críticos, faltaram recursos também para investir em propaganda, capaz de conscientizar a população da importância de responder ao Censo.
Efeitos colaterais
Além de ameaçar a qualidade dos dados, os sucessivos atrasos atrapalham a produção de informações socioeconômicas. O problema prejudica de pesquisas eleitorais às estatísticas conjunturais sobre mercado de trabalho, da alocação correta de quantidade de doses de vacinas para cada ponto do País à divisão de recursos públicos federais repassados a Estados e municípios, por meio dos fundos de participação.
Por causa da determinação legal de informar ao Tribunal de Contas da União (TCU), todo fim de ano, uma estimativa da população a ser usada nessa repartição, o IBGE optou por divulgar, no fim do mês passado, uma prévia do Censo 2022. Prefeituras insatisfeitas com a redução dos valores que recebem recorreram ao Judiciário, em ação movida pela Confederação Nacional de Municípios (CNM) - na segunda-feira, 23, o STF concedeu liminar suspendendo a decisão normativa do TCU que determina a repartição, com base nos dados do IBGE.
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