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Devedores Anônimos reúne quem tem dívidas e é viciado em gastar

Aiana Freitas

Do UOL, em São Paulo

21/03/2012 07h00

É manhã de domingo de sol em São Paulo. Um grupo de 11 amigos se reúne em um casarão antigo de um bairro nobre da cidade. Eles contam histórias da própria vida, riem e choram juntos. Alguns se conhecem há anos; outros há apenas alguns meses. A intimidade, no entanto, nasceu de um problema comum: todos têm, ou tiveram, dívidas que saíram do controle.

O grupo, formado por pessoas de classe média e média alta, se encontra todo fim de semana na reunião dos Devedores Anônimos (D.A.) do bairro do Pacaembu, zona oeste da capital paulista. A "irmandade", como chamam, funciona nos moldes dos A.A. (Alcoólicos Anônimos): o objetivo é, por meio da autoajuda, controlar o impulso pelo endividamento compulsivo seguindo 12 passos - que começam com o reconhecimento do problema.

OS 12 PASSOS DOS DEVEDORES ANÔNIMOS

Admitimos que éramos impotentes perante as dívidas, que tínhamos perdido domínio sobre nossas vidas.
Viemos a acreditar que um Poder Superior a nós mesmos poderia nos devolver a sanidade.
Tomamos a decisão de entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, como nós O concebíamos.
Fizemos um minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos.
Admitimos perante Deus, perante nós mesmos e perante outro ser humano a natureza exata de nossas falhas.
Ficamos inteiramente prontos para que Deus removesse todos esses defeitos de caráter.
Humildemente pedimos a Ele remover nossas imperfeições.
Fizemos uma relação de todas as pessoas que tínhamos prejudicado e nos dispusemos a reparar os danos a elas causados.
Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando fazê-lo significasse prejudicá-las ou a outrem.
10ºContinuamos fazendo o inventário pessoal e, quando estávamos errados, nós o admitíamos prontamente.
11ºProcuramos, através da prece e meditação, melhorar nosso contato consciente com Deus, como nós O concebíamos, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade em relação a nós e a forças para realizar essa vontade.
12ºTendo tido um despertar espiritual por meio destes passos, procuramos levar esta mensagem aos devedores compulsivos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades.

Dados da Confederação Nacional do Comércio mostram que, entre as famílias que recebem mais de dez salários mínimos por mês (ou mais de R$ 6.220), 50,6% têm algum tipo de dívida, ou seja, estão comprometidas com um financiamento. As famílias com contas em atraso são 10,8% nessa camada da população.

Os grupos dos D.A., assim como algumas clínicas especializadas, tratam do problema no seu estágio mais grave, quando já se transformou em uma doença.

"O motivo que leva as pessoas a procurarem os D.A. é sempre a dívida. Mas, nesses casos, ela vem acompanhada de depressão e outras doenças, como a hipertensão", diz um dos coordenadores, frequentador de reuniões há mais de dez anos. "Muitos participantes estiveram à beira de perder suas famílias e de colocar um fim à própria vida", diz.

'Tenho mais de 200 sandálias'

Uma dona de casa de 65 anos que frequenta o grupo do Pacaembu desde outubro de 2011 diz que só hoje reconhece que não tinha uma relação saudável com o dinheiro. "Sou compulsiva por compras. Tenho mais de 200 sandálias rasteirinhas", calcula.

A infância pobre, diz, fez com que, depois do casamento, ela perdesse o controle sobre o uso do dinheiro. "Meu marido sempre recebeu bons salários, e eu quis dar aos meus filhos tudo o que eu não tive. Só que a boneca que eu comprava para minha filha não era a que ela queria, mas a que eu nunca tinha tido quando era criança."

Apesar do histórico de compras excessivas, ela conseguiu esconder o problema da família até que, no ano passado, fez uma reforma na casa da família no interior de São Paulo e acumulou uma dívida de R$ 50 mil. Um erro do banco fez com que uma das contas dela chegasse por engano na casa do filho. "Tinha muita vergonha. Mas meu filho começou a me pressionar e eu contei tudo. Só no mercadinho da cidade eu devia R$ 3.000", diz.

Hoje, a dona de casa não administra mais o próprio dinheiro. Cabe ao filho pagar suas contas e até comprar seus remédios. "No começo, não queria. Eu sempre tinha tomado conta dos meus gastos. Agora, estou mais tranquila. Meu filho dirige toda a minha vida."

Os dois filhos, o marido e a nora da dona de casa costumam acompanhá-la nas reuniões dos D.A. "Pensava que vinha aqui apenas para ajudar minha mãe, mas também estou aprendendo. Eu não sabia nem que esse problema poderia ser uma doença", diz a filha.

‘Tinha muita vergonha da família’

Os casos relatados individualmente – e sem interrupção – pelos integrantes do grupo se assemelham em suas consequências. A maioria dos participantes teve o nome incluído nos cadastros de proteção ao crédito e perdeu o direito de usar cheque especial e cartão. Duas participantes relataram tentativas de suicídio.

Nem todos, no entanto, contam com o apoio e a presença da família. Uma jovem de cerca de 30 anos diz que o marido ainda não conseguiu entender com ela chegou ao ponto de deixar o casal com uma dívida de R$ 36 mil. "Ele diz que tenho de esquecer o que aconteceu, mas ele mesmo não me deixa esquecer. Sempre diz como está preocupado com a dívida que temos para pagar."

Ainda assim, para os participantes do grupo, a maioria de classe média e média alta, as reuniões permitem que olhem para o problema com mais leveza. Todos se mostram conscientes de suas próprias dificuldades e dizem levar ao pé da letra a regra dos "Anônimos", de viver "um dia de cada vez". "Solvência e serenidade" é o lema repetido ao fim de cada depoimento.

"Aprendi a importância de viver com simplicidade. Já consigo pensar na ideia de ficar sem carro por um tempo, se for preciso. As bobagens que fiz na vida me deixaram cansada", diz uma das integrantes.

Segundo o coordenador do grupo, a procura por ajuda tem aumentado nos últimos anos. Por isso ele já prevê que a "irmandade" terá de se organizar melhor e criar uma central para atender à demanda. "Em algum momento teremos de criar mais grupos."