Restaurante de PF a R$ 1 tem gari, aposentado, tributarista e ex-jornalista
Às 10h de um dia útil ensolarado, as pessoas vão se aglomerando e tomando seu lugar na fila, que logo se estenderá por dezenas de metros, até quase lá na esquina com a avenida São João, sob o elevado Presidente João Goulart (Minhocão), no centro de São Paulo.
É a porta de entrada de um restaurante popular da rede Bom Prato, projeto de segurança alimentar do governo estadual paulista, que abrirá às 10h30 para o almoço. Preço da refeição: R$ 1.
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A essa hora, são quase todos homens, a maioria deles já aposentados. Assíduos, alguns se conhecem e se cumprimentam, na camaradagem. Um homem vestido com roupas velhas, e rasgadas, estaciona a carroça de madeira junto da guia, o veículo que conduz pelas ruas e com o qual recolhe garrafas, latas, papelão para poder pagar o pão (e a carne), e toma seu lugar na fila também.
Com a crise econômica brasileira, a inflação que consome vencimentos e o desemprego lá no alto, o público que busca o restaurante, por uma refeição com preço acessível, tem se multiplicado e se diversificado. Chamá-lo de "restaurante da crise" é apropriado.
Projeto originalmente dedicado a alimentar pessoas em situação de extrema vulnerabilidade, como moradores de rua, hoje congrega jovens e idosos com perfis diferentes, empregados em diversas atividades, manuais ou de escritório, subempregados e desempregados, todos com uma impossibilidade em comum: não ter dinheiro bastante para pagar sua refeição no comércio tradicional. O almoço simples, um prato feito nos bares e restaurantes da capital paulista dificilmente sai por menos de R$ 10, R$ 15. E facilmente supera R$ 20, R$ 30.
Segundo pesquisa do governo paulista com "fregueses" em 51 unidades do Bom Prato no Estado (são 52 restaurantes no total), de 2015 para 2016, a porcentagem de presença de desempregados nos restaurantes subiu de 8% para 17,4%. Os frequentadores com carteira assinada recuaram no mesmo período de 24% para 20% do total.
Mais desempregados e jovens
A comparação com base na renda também mostra mudança no perfil do "freguês": em 2015, 41% dos frequentadores ganhavam até um salário mínimo (R$ 937) e 45% deles de um a três mínimos, segundo a pesquisa feita pelo governo paulista.
Em 2016, o grupo dos que ganham um a três mínimos tornou-se majoritário no Bom Prato: 69% contra 9% que ganham o piso. Houve, assim, aumento da procura por uma faixa pouco acima de renda, sugerindo aperto no orçamento familiar e necessidade de economizar na hora de comer.
Quanto à idade, a pesquisa mostra avanço da presença sobretudo na faixa entre 17 e 24 anos, de 17% para 28% de 2015 para 2016. Na faixa até 16 anos, o número de "fregueses" dobrou, de 1,5% para 3%. Os idosos acima de 61 anos continuam sendo o principal grupo atendido: 40% do total dos frequentadores (pouco menor em relação a 2015, 43,7%).
"A crise piorou a vida das pessoas e aumentou a demanda dos restaurantes do Bom Prato, alterando o perfil dos frequentadores", confirma o secretário estadual do Desenvolvimento Social, Floriano Pesaro, filiado ao PSDB, partido do governador Geraldo Alckmin.
Nas 52 unidades são servidas todos os dias 86 mil refeições, a um custo anual de R$ 80 milhões. A promessa é abrir um novo Bom Prato ainda este ano, em Barretos, no interior; e mais três até junho de 2018, em Ribeirão Preto (segunda unidade), São Bernardo do Campo e Araçatuba.
"Quanto à mudança de perfil, basicamente, tem havido aumento da presença de idosos ao longo dos últimos anos. Visivelmente houve também aumento da população em situação de rua. E também muitos jovens, estudantes, que se utilizam do Bom Prato muitas vezes como a única refeição completa que têm no dia. O jovem não tem dinheiro, chega tarde em casa e sai cedo."
Segundo o estudo do governo, mais de 70% dos jovens que frequentam o Bom Prato afirmaram que aquela era a única refeição completa deles no dia.
"Comemos aqui para economizar"
As portas se abrem, a fila anda, é dia de dobradinha. A humanidade com fome passa pela reportagem --e entra.
Ademir Conceição Stella, 66, há cinco meses aposentado, vem todos os dias de Mauá (Grande São Paulo) para comer ali por causa das amizades que fez. "Se fosse pagar para comer, o dinheiro não dava", assume. E compartilha o que a vida lhe ensinou: "A vida é uma roda-gigante. Uma hora se está em cima, outra, embaixo."
Esguio, de cabelo levemente roxo e muito bem penteado, terno marrom riscado, calçando um lustroso sapato preto envernizado, assoma agora Euclides Vicente, 77. Está na região a trabalho - presta serviços para uma empresa ali do centro paulistano. Uma vida dedicada às finanças, como tributarista, para grandes empresas, como Rhodia e Ford do Brasil. "Agora quero sossego. Se o negócio é interessante, pego, se não é, não pego."
O segredo da boa forma dele é comer muita fruta e não beber. "Assim a gente fica com a aparência muito melhor."
Falando inicialmente em alemão -- viveu em Stuttgart quando jovem, durante intercâmbio --, Oscar Aguilar, 67, ex-jornalista na Bolívia, onde nasceu, é a consciência crítica do pedaço, o tempero político do prato. "O Brasil é um país acolhedor, mas tem muitas contradições sociais e humanas, com desigualdades muito notórias. Mesmo assim, talvez um país do futuro com liderança na América Latina. Mas povo e governo precisam trabalhar juntos, como em todo país, mas aqui principalmente", afirma ele, hoje trabalhador autônomo.
Já sentada na ala destinada aos idosos, a ex-diarista Geni Pereira de Souza, 64, carapinha bem branca, diz que gosta de comer ali "porque não tem frescura". É separada, vive na casa da filha e recebe um salário mínimo da aposentadoria. Vem ao centro às quartas e sextas-feiras para cursos, entre eles, de trabalhos manuais. "Não posso ficar em casa dois dias, senão, fico nervosa. Minha filha diz: 'Mãe, vai fazer seu curso'. Enquanto eu tiver saúde, eu vou."
O sorridente Pedro João da Silva, 52, trabalha como flanelinha em três igrejas da região de Santo Amaro, na zona sul: "Hum, adoro isso aqui, buchada. Minha mulher não gosta, não." Ele e a cônjuge, Naiara, planejam arrumar um cantinho só deles, abandonando o quartinho da pensão onde hoje vivem, na rua Guaianases, bem na região da cracolândia. "Deus preparou uma companheira para mim faz quatro anos. Morar sozinho não vira, não. Queria uma uma mulher que não bebesse e essa só fuma um cigarrinho", sorri.
As garis Maria Elci, 44, e Lourdes de Jesus da Silva, 42, de uniforme e boné de tons verdes da equipe de varrição da prefeitura paulistana, dividem a mesa. "Trazer marmita às vezes azeda e a gente não tem onde esquentar, precisa comer fria. E também come aqui para economizar", contabiliza Maria, casada e mãe de 7 filhos, vivendo no Ipiranga, na zona sul.
Lourdes e Maria afirmam que melhoraram de vida, objetivo maior da vinda da Bahia para São Paulo. "Tenho casa própria e um carrinho velho na garagem, uma Brasília amarela", brinca Lourdes, que mora em Itaquaquecetuba (Grande São Paulo). "Minha casa está quitada, tenho minha família e meu trabalho, que é o pão de cada dia que levo para casa", valoriza Maria.
Bem perto da mesa delas estão os pintores Elionai Francelino, 24, e Jean Oliveira, 34, que moram no Grajaú, periferia sul de São Paulo. Eles estão trabalhando numa obra na região. "Nosso dinheiro já não é essas coisas [R$ 80 por dia]. Se for pagar para comer, sobram uns R$ 40 só", faz a conta Jean, subtraindo almoço e condução (dois ônibus).
"Comer no Bom Prato virou luxo para mim"
Wellington Ferreira, 32, que é pedreiro, está almoçando e jantando ali todos os dias, incluindo os fins de semana. Veio de Patos (PB) há menos de dois meses para tentar algum trabalho. "Pelo menos está virando, estou ganhando pouco, mas está bom."
Está reformando a pensão onde conseguiu uma vaga para morar, na alameda Dino Bueno, bem no coração da região da cracolândia. Não paga para morar e ainda sobra uns R$ 1.200 no mês. "Com R$ 1 e pronto, economizo bastante. Não tenho vício nenhum", orgulha-se.
Maria Mirako Inoue, 59, desempregada há anos e vivendo "de economias", comenta a ida ao restaurante: "Quando você fica apertado, tudo fica apertado. Hoje o básico, como comer no Bom Prato, virou um luxo para mim".
Descendente de japoneses, chegou a vender um anel de ouro para pagar tratamento dentário e hoje sua luta é para se livrar da taxa mensal de R$ 67 de condomínio do jazigo da mãe, pelo qual paga sozinha. Já recorreu a vereador e diz que vai ao bispo, à cúria, em busca de uma solução.
O último a deixar o refeitório, já depois das 14h30 e de 1.900 refeições servidas (a cota do restaurante), é Cleiton Ferreira, 38, que participa do programa para recuperar dependentes químicos, sobretudo do crack, lançado pela gestão anterior da prefeitura, do prefeito Fernando Haddad (PT), e cujo futuro segue incerto sob o prefeito João Doria Jr. (PSDB).
Dentinho, como ficou conhecido na cracolândia, ao longo de seis anos morando na rua, chegou a pesar apenas 51 kg no auge da drogadição, e hoje pesa 74 kg, fazendo todas as refeições no Bom Prato. Está com um livro em produção, em que narra seu itinerário pelo crack e pelas ruas, intitulado "O bem e o mal e a carne crua: Relatos de um morador de rua".
"O programa [antes denominado De Braços Abertos] valeu muito para mim. Hoje tenho uma estimativa de vida. As coisas estão progredindo", avalia. "A redução de danos [base da filosofia do programa da gestão Haddad] tem um efeito positivo, pode levar um, dois, três meses. As pessoas precisam acreditar."
Lá fora chega Renato, de preto, garçom entre tantas outras profissões, morador da zona oeste, tem um rosto familiar... (é do bairro do repórter!): "Ainda tem almoço?". Pena, hoje já fechou.
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